Ou, em outras palavras, como Gilberto Dimenstein largou a Folha de S.Paulo para fazer o Catraca Livre, um portal de jornalismo sobre serviços acessíveis ao grande público.
Ele fala rápido. Se você prestar atenção, consegue ver o cérebro trabalhando atrás dos óculos, as palavras tentando acompanhar. Seus anos de experiência como jornalista produzem frases diretas, que facilitam o trabalho do repórter para organizá-las. Pois, vejamos. O que segue abaixo é Gilberto Dimenstein, microfone aberto:
Sem medo de errar, meu dia começa às 06h e termina à 01h. Sem exagero também. Hoje são duas atividades profissionais, o Catraca Livre e a rádio CBN. O lado ruim é que perdi feriado. O tempo real não tem feriado, só isso. O Catraca é uma produção indepentende, pequeno, na Vila Madalena, hoje o portal tem 28,5 milhões de usuários únicos por mês. A Folha de S.Paulo tem 30 milhões, então compara. No Facebook o nosso alcance é 87 milhões de pessoas, quase toda a internet brasileira. Virou uma escravidão, de certa forma.
Sempre gostei de trabalhar, mas a minha geração não foi treinada para o tempo real
A ideia era a seguinte: você fica na redação, termina e vai beber com os amigos, isso dá conta do trabalho e todo mundo fica bem. Sou de uma geração analógica. Na redação da Folha tinha a gráfica na entrada, tem ainda, aquelas bobinas e o papel rodando. Eu nunca quis saber da máquina, nunca fui ver como ela funcionava. Mas no tempo real é diferente, tem que trocar pneu com o carro andando então precisa agregar conhecimentos rudimentares de engenharia, SEO, redes sociais. A redação absorveu a máquina, trouxe a engenharia para o dia a dia do jornalista. Minha capacitação achava que a última mídia que prestava de verdade era o jornal e todas as outras eram subalternas a ele.
Minha primeira mutação veio quando morei em Brasília. Comecei a cobrir temas relacionados à infância. E já tinha uma visão sobre o jornalismo próximo à educação. Daí tive uma ruptura muito violenta na carreira, que nem tenho certeza se já resolveu. Foi uma série de matérias sobre violência infantil. As reportagens mais importantes que já fiz, sem dúvida. Aquilo mexeu mesmo, mostrou que eu poderia fazer mais.
O jornalista é um observador, o ativista torce para a realidade ficar melhor. Olhei para esse cenário e vi que a realidade ia ter que se adequar. Eai como faz? Torce por uma ideia, divulga, defende ela. Criei a ANDI (Agência de Notícias dos Direitos da Infância), em Brasília, com a jornalista Ambar de Barros.
Junto com isso, há muito tempo eu já olhava para o prazer local, para a cidade como eixo definidor de nossas atividades e habilidades. A cidade é um serendipity, é a maior invenção da humanidade, você tem a diversidade e a presencialidade. E o território recheado de potências, de grupos, de possibilidades.
Trabalho com o conceito de bairro escola desde 1998, mas foi há sete anos que surgiu a ideia: porque não mapear essas forças, organizar esses atores? Em 2008, nasceu o Catraca Livre para divulgar serviços acessíveis, fazer jornalismo sobre possibilidades gratuitas ou quase gratuitas, unindo comunicação e ativismo comunitário.
Não era uma empresa, só uma coisa que a gente fazia, eu e meus dois filhos, Marcos e Gabriel. Não tinha contabilidade, não tinha nada, o investimento inicial foi algum dinheiro e muitas horas de trabalho. Mas a gente puxou uma cordinha e viu uma comunidade de aprendizagem com mil ativos ao redor.
UMA INICIATIVA SOCIAL ANTES DE SER UMA EMPRESA
Isso foi caminhando meio assim, indefinido, sem conseguir se resolver, até que recebi um convite de Harvard, em 2010, para uma incubadora onde poderia olhar metodologicamente o Catraca e tentar resolvê-lo. Harvard já tinha feito um estudo sobre bairro escola e a partir desta experiência me convidaram. Foi lá que enxerguei uma empresa e não uma ONG.
Mas a verdade é que o modelo do Catraca não é replicável. Ele é baseado numa ilusão e essa ilusão sou eu. Tenho muitos contatos e essas pessoas apoiaram e apoiam essa ideia. Muitos dos meus amigos toparam apoiar essa ideia. Uma pessoa sem essa rede não conseguiria.
E qual é a verdade? Que pessoas que têm alguma influência podem construir projetos sociais utilizando o seu poder
Por isso, para o Catraca se sustentar no longo prazo ele precisa me matar. Para ser o veículo que pretende ser, que vá se sustentar unindo jornalismo e ativismo comunitário, ele precisa tirar de campo a ilusão que eu causo. E já está fazendo isso, aos poucos. Mas eu ainda sou compulsivo e trabalho até a 01h. Chegamos a 26 milhões de usuários, crescendo 2 milhões por mês.
O Catraca se define em três palavras: comunicar para empoderar. E a partir daí surge mais uma definição — cidadania pop. Não quero falar para o Baixo Augusta e nem para a USP. Quero falar com coisas que pessoas estão curtindo na internet e dar um viés de empoderamento. Empoderamento, aqui, significa saber onde se baixa um curso sem pagar nada, onde se compra um livro mais barato, usar o aplicativo de carona. O sentido é fornecer informações a partir das quais a pessoa vai poder utilizar para aumentar o seu alcance o seu poder. É como dar uma notícia sobre as vagas para terceira idade que existem na USP. Comunicar para empoderar.
A maior parte do recurso que garante nossa sustentação vem de conteúdo com marcas. Começou a fazer sentido para elas apoiar essa comunicação em cidadania, associar esse conteúdo às suas marcas. Só fazemos conteúdo que tenha sentido para a gente. Se um dos esforços da Ambev é água, se o da Porto Seguro é trabalhar gentileza, se o Itaú Cultural quer levar mais gente para lá, como produzir conteúdo sobre isso?
Entendemos o que as marcas querem falar de forma honesta e produzimos conteúdo, não para elas, mas afinados com a intenção comum
Mas este não é um modelo de negócios bem sucedido. Ele está começando a se aproximar de ser um modelo bem sucedido. Tem um outro campo que a gente quer fazer, que é e-commerce. Queremos pegar vários produtos legais com bons preços e fazemos uma revisão para os leitores. Misto de e-commerce com review.
QUANDO VOCÊ DESCOBRE PARA O QUE NASCEU, TUDO PASSA A FAZER SENTIDO
Demorei muito para achar o meu papel na vida. Você tem dois momentos importantes: quando nasce e quando descobre por que nasceu. Aí descobre por que nasceu e como fazer de uma versão melhor disso tudo. Eu nasci para fazer da comunicacão uma experiencia educativa. Se não foi para isso, deveria.
A minha formação judaica traz essa coisa da palavra muito forte, discussão e debate. Até certa época eu achava que meu caminho era sacerdotal. Me sinto abençoado, esse papel de usar a comunicação como fator educativo. Eu traí muitas coisas na vida, mas essa coisa com Deus, com a divindade da criação, essa eu não traí. Tenho algum cheiro da minha infância, somos judeus do Pará, judeus marroquinos do Pará. E um deles é o do jasmin. Em todo lugar que estou tem que ter jasmin. E ele não solta aquele cheiro porque ele é bom, mas porque ele é aquilo. Não tem opção. O jasmin sabe por que nasceu.
No Catraca eu juntei ativismo comunitário, comunicação e educação, consegui fazer a síntese da minha vida. Quando eu morava em Cambridge, cidade de 100 mil habitantes ao lado de Harvard, eu tinha tempo para a reflexão. Fiquei lá de 2010 a 2013. Lá você encontra um prêmio Nobel no banheiro, de repente está ali o cara que inventou o email. E ninguém me falou que o Catraca que não fazia sentido. Ao contrário, todos me falaram para fazer maior.
A geração atual tem o sonho de ser empreendedor. Antes você tinha o sonho de ser da Folha, da Abril. As pessoas mais talentosas queriam ser chefes. Hoje, se a pessoa é muito boa, o sonho dela é usar essa experiência para aprender. Essa é uma cultura empreendedora que na minha época não existia. Isso de querer montar sua empresa, fazer as coisas do seu jeito, inovar. Mas o mundo das novas tecnologias faz com que qualquer um possa montar seu aplicativo, seu site, dá a ilusão de que qualquer um vai virar o Google — e não vai.
Acreditar que você vai conciliar o empreendedor com qualidade de vida é quase uma mentira de autoajuda. O empreendedor é uma pessoa 24h, chega um ponto onde um feriado e um fim de semana é quase um incômodo. O prazer de fazer e a dor são quase uma coisa só
Minha vida pessoal é construída ao redor do trabalho. Eu tenho uma mediocridade afetiva. Minha mulher me ama e os meus filhos não herdaram isso daí. Essa eu acho que ainda posso melhorar em vida. Tive uma regressão muito grande. Eu me emocionava mais com as poesias, as músicas, os filmes. Antes eu pegava um Drummond, um Pessoa, saia lágrimas. Pegava um Milton e eu encharcava. O Milton me pediu para escrever a entrada de um CD, eu fiz só com o coração. A doenca da compulsão me jogou muito no trabalho. Não recomendo, não. E não consegui balancear. Tirar férias, para mim, é um desperdício de tempo.
Eu era, para mim mesmo, um cara muito mais supreendente. Havia um tempo em que não sabia onde dormia, onde eu acordava. Eu me emocionava mais, chorava mais. Acho que não reencontro mais esse cara nessa encarnação.
Algoritmos, fake news, riscos à democracia. Nunca precisamos tanto de bom jornalismo. Conheça o coletivo independente Matinal Jornalismo, que equilibra o olhar para a realidade local e reportagens com denúncias de alcance nacional.
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