A Repórter Brasil, a ONG pró direitos humanos que há 14 anos trabalha contra o trabalho escravo e cujo rosto é o jornalista Leonardo Sakamoto, 37, teve quase dois milhões de reais de receita ano passado. Desse montante, 25% vieram do poder público (parâmetro que a ONG afirma perseguir), obtidos por meio de projetos ganhos em editais. Os demais recursos, segundo a Repórter Brasil, vieram de diferentes fontes, como organizações internacionais, ONU, institutos, doações, crowdfunding etc.
A informação não é um furo do Draft: no site da ONG estão listados os nomes dos convênios, parceiros, apoiadores, patrocinadores, anunciantes e doadores. Há também links para os balanços anuais a partir de 2011, quando a Repórter Brasil passou a ser auditada, de modo a provar que tinha as contas em dia – um terreno que suscita discussão frequente, especialmente entre os detratores de Sakamoto, que, além de ser o coordenador geral da Repórter Brasil, mantém um blog no UOL desde 2010 (começou no IG em 2006), no qual escreve diariamente sobre política e direitos (e comportamento) humanos, com um viés que poderia ser descrito como “de esquerda”.
“É importante ressaltar de onde vêm nossos recursos porque, vira e mexe, alguém põe na internet que estamos mamando nas tetas do Estado, que a ONG é de fachada, que não faz nada. Eu digo para perguntarem paras as empresas [que foram autuadas pelo uso de trabalho escravo, a partir de investigações jornalísticas realizadas pela Repórter Brasil] se a gente não faz nada”, diz Sakamoto.
As críticas mais ferozes vêm de uma ilação: se Sakamoto é de esquerda (e essa é, declaradamente, a sua posição política), ele é também do PT (não é). Há pouco menos de um mês, logo depois das manifestações do dia 15 de março pedindo o impeachment de Dilma, o jornalista foi mais uma vez ameaçado de morte. Levou o fato a público, denunciou às autoridades e, dois dias depois, fechou o espaço de comentários do blog — originariamente aberto para debates, havia se tornado um meio de proliferação de ódio, ofensas e ameaças.
Sakamoto acredita que sua voz no blog incomoda, mas que sua atuação na Repórter Brasil incomoda ainda mais. “São quase 15 anos combatendo o trabalho escravo. E direitos humanos, infelizmente, ainda é questão de polícia no país.”
A ONG COMEÇA COMO PROJETO PARALELO
A Repórter Brasil nasceu em 2001 como projeto paralelo de um grupo de cerca de 35 amigos, a maioria jornalistas (embora houvesse também cientistas sociais e educadores) saída ECA (Escola de Comunicação e Artes, da USP), onde Sakamoto tinha se formado três anos antes. A ideia era criar uma ONG que aliasse comunicação com mudança social.
“Desde o começo, a missão da Repórter Brasil é identificar e tornar público casos de violação aos direitos socioambientais e trabalhistas de forma a mobilizar lideranças políticas, sociais e econômicas para efetivar os direitos humanos no Brasil”, diz Sakamoto.
A maior parte das pessoas que fundou e participou do lançamento da ONG compõe o time de 21 associados da organização e participa, eventualmente, de projetos especiais. O núcleo que encarava a ONG como atividade principal e punha gás no trabalho diário tinha cerca de cinco pessoas, Sakamoto incluído. Na época, ele dava aula na faculdade de jornalismo da ECA, já tinha feito a cobertura do conflito armado no Timor Leste, sido repórter especial do iG e passado por algumas redações da editora Abril.
Fato marcante em sua trajetória é que Sakamoto tinha feito uma incursão de cerca de três anos, Brasil adentro, para cobrir histórias de perto, com tempo, em profundidade. Fazer jornalismo à moda antiga, poderíamos dizer. Foi quando se deparou com a questão do trabalho escravo diante dos seus olhos:
“Me chocou muito na época e chocava cada amigo para quem eu mostrava. Raras vezes a gente vê coisas tão indignas, violentas e degradantes como o trabalho escravo. Por isso, quando a Repórter Brasil nasce, tem essa questão como uma das prioridades”
Outro ponto importante no projeto da Repórter Brasil, principalmente entre os jornalistas, era se diferenciar da imprensa tradicional por acreditar que havia um outro caminho a ser trilhado. O que significava, entre outras coisas, usar a rede como plataforma para construção e reconstrução da realidade e, claro, para divulgar informação. “A gente é visto como pioneiro por uma série de organizações ligadas a jornalismo e educação porque eles estão fazendo hoje o que a gente já fazia há 14 anos”, conta Sakamoto.
O jornalismo talvez seja a atividade mais conhecida da ONG — foi da Repórter Brasil que partiu a denúncia, em 2011, do uso de mão de obra escrava pela cadeia de lojas Zara, por exemplo — mas corresponde a apenas 30% de suas atividades.
A porcentagem não significa menor importância da área e sim que a ONG tem outros dois braços também bastante fortes na luta pelos direitos humanos: educação e pesquisa. Cada um desses três núcleos que compõem a Repórter Brasil desenvolve projetos específicos, que vão de aplicativos para celular a formação de lideranças populares. Tirando pesquisa, que é feita no Brasil todo e por isso requer mão de obra local, e alguns projetos especiais, a maior parte do trabalho é feita pelas 10 pessoas que hoje compõe o quadro da ONG — e por isso em regime de CLT — ou por associados.
Eis os três eixos de atuação da Repórter Brasil:
1) Jornalismo
Coordenado pela repórter e documentarista Ana Aranha, compreende o site, que é a agência de notícias e produz de reportagens, muitas delas investigativas. Também produz documentários para o cinema com temas socioambientais e trabalhistas como Carne, Osso, de Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros, de 2011, que participou de festivais pelo mundo e o novo Jaci – Sete Pecados de uma Obra Amazônica, também dirigido pela dupla e que está na programação do festival É Tudo Verdade, que começa este mês. Outro feito da área jornalística é aplicativo Moda Livre, que avalia o envolvimento das marcas de roupa no trabalho escravo e leva essa informação ao consumidor. Atualmente, lista 45 marcas. Disponível para iOS e Android, é gratuito.
2) Educação
Coordenado pela jornalista e cientista social Natália Suzuki e tem como principal projeto o Escravo, Nem Pensar! (ENP!), que capacita de professores e lideranças populares para que possam combater e desenvolver o trabalho escravo, apoia projetos, festivais e concursos comunitários e produz e distribui material didático. No kit, além de livros, há também um jogo de tabuleiro e um jogo virtual para que as crianças aprendam brincando. É considerado pelo governo federal brasileiro e por entidades participantes da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo o primeiro programa de prevenção à escravidão de âmbito nacional. Em funcionamento há 10 anos, está em quase 150 municípios (de dez Estados) e já beneficiou mais de 200 mil pessoas, direta ou indiretamente.
3) Pesquisa
Coordenado pelo jornalista Marcelo Gomes, que é também secretário executivo da casa, abriga o Centro de Monitoramento de Commodities e Agrocombustíveis (CMA), que faz pesquisas e análises sobre culturas agroenergéticas e agrocombustíveis e seus impactos socioambientais, trabalhistas, fundiários e econômicos e é a responsável pelo grande trunfo da ONG, o mapeamento cadeias produtivas de trabalho escravo, ampliando a transparência e fornecendo informação necessária para transformações. Em ação conjunta com o setor empresarial, o mapeamento de cadeias produtivas favoreceu a criação do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, acordo que reuniu 400 empresas comprometidas a não manter relações comerciais com quem explora trabalho escravo. Hoje, o Pacto é um instituto, o InPACTO e a Repórter Brasil já não faz mais parte da gestão. “Nosso objetivo é produzir conteúdo. A gente continua fazendo aquilo que sempre fez que é combater o trabalho escravo pela informação e pelo conhecimento”, diz Sakamoto.
UMA ARTICULAÇÃO PARA PRODUZIR MUDANÇAS REAIS
Existe ainda, na ONG, um grupo de coordenadores responsável por fazer a articulação entre o que é produzido pelas áreas de jornalismo, educação e pesquisa, e políticos tanto da situação como da oposição, empresários e setores sociais. Essa articulação é outra forma de garantia de que todo material produzido cause mudanças na sociedade. De acordo com Sakamoto, a Repórter Brasil, desde que existe, foi uma das principais responsáveis pela aprovação de leis do combate ao trabalho escravo. “Pode parecer meio arrogante, mas falamos isso com um certo orgulho porque não surgiu do nosso marketing e sim da nossa ação”, afirma.
Uma das articulações mais importantes da ONG é ter ajudado a aprovação da PEC do Trabalho Escravo que prevê o confisco de propriedades nas quais forem encontradas esses tipo de condição de trabalho e sua destinação para reforma agrária ou para uso habitacional urbano. “Outra que tem nosso dedo é lei paulista de combate ao trabalho análogo ao escravo, do deputado Carlos Bezerra, do PSDB. Ela caça o direito de uma empresa existir no Estado de São Paulo por 10 anos se for flagrada com trabalho escravo e há uma série de leis assim em outros Estados”, conta.
Em 2003, quando começou o mapeamento das cadeias produtivas, a Repórter Brasil já se baseava na lista suja do trabalho escravo criada no mesmo ano pelo governo federal. Na lista são divulgados nomes de empresas autuadas pelo uso do trabalho análogo à escravidão a partir da fiscalização do Ministério do Trabalho e que tiveram autuações confirmadas após um processo administrativo. Em dezembro do passado, o ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski concedeu liminar de suspensão imediata da lista durante o recesso de final de ano, aceitando o pedido da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), que reúne algumas das principais empreiteiras do país.
FIM DE FÉRIAS DA LISTA SUJA
Mas semana passada, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH) assinaram uma Portaria Interministerial e uma nova lista será publicada. Agora, serão 400 nomes de empregadores que foram flagrados por auditores fiscais usando trabalho análogo à escravidão e que tiveram suas infrações confirmadas pelo MTE desde dezembro de 2012.
Para se ter ideia do motivo de tanta pressão e vaivém político, basta pegar um case de sucesso da Repórter Brasil, a Cosan, maior empresa de açúcar e álcool do mundo que entrou na lista suja do trabalho escravo em dezembro de 2009. A ONG entrou em contato com empresas que compravam da Cosan para alertá-las de que estariam compactuando com o crime (tenha em mente que a empresa é dona dos postos Esso e vende açúcar das marcas Barra e União). Na primeira semana de janeiro de 2010, o Wallmart suspendeu toda a compra de açúcar da Cosan, seguido pelo Carrefour, e o BNDS suspendeu centenas de milhões de reais em crédito. Ou seja, é uma pancada no sistema. Sakamoto explica essa ligação:
“Quem usa trabalho escravo no Brasil não é um pequeno fazendeiro, é principalmente gente grande. Às vezes são contratos bilhões de reais que têm de ser cancelados”
Os nomes ficam por dois anos na lista, período durante o qual a empresa tem de mostrar que resolveu o problema. Se sim, tem o nome excluído da lista, caso contrário, corre o risco de ser novamente rastreada pela Repórter Brasil, que irá atrás de toda sua cadeia produtiva. O que não é tarefa simples se você pensar que um produto como a pluma algodão, por exemplo, pode ter tido trabalho escravo em quatro indústrias diferentes: costura, fiação, para produção de negócios, para a produção do próprio algodão. O que é quase nada se comparado ao gado: há 52 tipos de produtos a partir do gado que vão da gelatina ao couro passando pincel, remédio e combustível.
A todas essas, e exatamente pelo trabalho que realiza, Repórter Brasil segue crescendo, junto com os investimentos que recebe. A média das receitas obtidas pela ONG nos últimos anos – 2011 (1,183 milhão de reais), 2012 (1,293 milhão) e 2013 (1,193 milhão) – cresceu mais de 60% em 2014 (aproximadamente 1,9 milhão de reais). Por se tratar de uma ONG, não existe lucro e o aumento da receita está diretamente ligado à execução de mais projetos e programas – bem com a um aumento no número de doações.
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