“Estive no inferno e precisei decidir se queria voltar a viver. É preciso sobreviver à morte”

Flávia Duarte - 1 dez 2017Flavia Duarte conta como sua vida mudou depois de duas mortes: a do homem que amava e a de quem ela era (foto: Raimundo Sampaio).
Sorrir de novo é parte da vida. Flavia Duarte conta como se transformou depois de duas mortes: a do homem que amava e a de quem ela era (foto: Raimundo Sampaio).
Flávia Duarte - 1 dez 2017
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por Flávia Duarte 

No mês retrasado, completaram-se quatro anos da minha morte. Morri sem direito a velório ou enterro. Tampouco fui cremada. Morri e tive que continuar vivendo. Passei, então, os últimos anos tentando renascer e recomeçar. Arrumei minhas malas, escolhi o destino e chegou a hora do meu parto. Deixei minha família, meus amigos, meu trabalho no Brasil e desembarquei em Barcelona há pouco mais de quatro meses. Na minha tentativa de ressureição, achei que um novo endereço ajudaria a lapidar a essência de uma nova identidade.

Deixei de ser jornalista, subeditora do maior jornal da capital do país, para virar uma estudante latina na Europa. Vim com planos de ficar por um ano, me dedicando a um mestrado em criação literária em universidade catalã.

Depois que morri, aprendi a viver, e uma das lições que levo comigo é a de não me permitir a ousadia de fazer planejamentos a longo prazo

Por hora, só me permito desenhar esse horizonte. O que vai acontecer nos próximos 365 dias, não posso controlar, assim como me vi de mãos atadas naquele 1° de outubro de 2013.

O anúncio de minha morte veio em forma de um diagnóstico fatal: um tumor de cérebro incurável e agressivo. A doença não estava na minha cabeça, mas ela adoeceria meu corpo e minha alma também. Era meu marido, de 36 anos, quem padecia de uma enfermidade letal. Junto com ele, naquele dia, eu me preparava para uma batalha com desigualdade de forças e sem chance de vitória.

Foi naquele dia que ele morreu. Perdeu o gosto pela vida. O sorriso que eu tanto amava, no seu último ano e seis meses de vida não vi mais. Foi ali que me despedi do amor que eu tinha, ao menos da forma que eu conhecia. Foi ali que também me preparei para a minha própria partida.

Quando alguém que você escolheu para dividir sua vida vai embora, seus planos se vão junto com ela

Naquele exato momento, acabava meu sonho de compartilhar uma casa e, quem sabe, construir uma família com ele. Estávamos juntos há 14 anos, mas só tínhamos nos casado em cartório e nos mudado para o apartamento recém-comprado quatro meses antes daquela madrugada em que fui acordada pelo ruído agudo provocado por uma convulsão. O tremor descontrolado do corpo dele era o primeiro sintoma de uma doença que, há anos, suspeitam os médicos, já carcomia o seu cérebro.

Nosso casamento na igreja estava marcado para o mês seguinte, resultado da insistência dos meus pais. Da parte de minha mãe, por ela ser extremamente religiosa. Da do meu pai, porque ele queria fazer o gosto dela. Mas, no fundo, eu estava mesmo era adorando a ideia de celebrar aquela tão esperada união com direito a festa e a exibir um belo vestido de noiva.

No dia em que descobrimos a doença, já estava tudo pago. O meu lindo vestido, comprado. Em poucos dias, eu faria o ajuste para que ele se acomodasse ao meu corpo. Os padrinhos já tinham sido avisados que abençoariam aquela união. A igreja, escolhida. As músicas também. Faltava degustar o cardápio, coisa que não fizemos porque, àquela altura, até a vida tinha perdido o sabor.

Os convites ficaram prontos no mesmo dia em que ele entrava na sala de cirurgia para lhe abrirem a cabeça e retirarem uma amostra de massa enferma. Precisavam comprovar se, naqueles resquícios de um corpo vivo, havia mesmo uma sentença de morte.

A festa foi cancelada. Quem pensaria em celebrar quando o que está diante de você é uma cruel despedida? Soube, quase um ano depois, que minha mãe queimou os convites que nunca vi. O vestido, ela também tratou de cuidar, mas nunca tive coragem de encará-lo ou saber onde está. Tudo isso foi embora com o homem que escolhi para ser meu marido. Meu casamento e minha nova família não faziam parte de um projeto solo e eu acabava de perder o meu companheiro daquela jornada.

Um gliobastoma (tipo mais fatal de tumor cerebral) foi confirmado e, com ele, a certeza médica de que a briga duraria, no máximo, dois anos. Restava a fé, a esperança em um milagre. Mas ele não veio e as estatísticas da ciência foram confirmadas: um ano e meio foi o que durou a tentativa dele de resistir.

Há dois anos e meio, ele foi embora. O dia do enterro dele, também foi o meu. Acabava, para sempre, a vida que eu tinha planejado. Tudo que eu pensava em fazer até aquele momento, desde os meus 19 anos, o incluía. Aos 33, eu não sabia como ser uma adulta sem a companhia dele. A Flávia que eu tinha conhecido, certamente não existiria mais.

Sozinha, estive no inferno. Passei boa parte desse tempo no purgatório. Precisava decidir se buscaria o paraíso de novo, se me daria a chance de reviver. Foi o que fiz.

Ele, que sempre adiou o presente com a expectativa de concretizar um futuro, não teve a chance de mais um dia. Eu ainda estou aqui e a morte dele me ensinou a viver diferente

Terapia, remédios, gente que me ama, tarólogos, autodenominados bruxos… todos fizeram parte desse réquiem dedicado a mim mesma. Precisei me despedir do meu marido e de quem eu era ao lado dele para encontrar uma nova identidade. Nessa busca, achei que ia enlouquecer muitas vezes. Outras tantas, despenquei de novo quando achei que tinha chegado ao topo. Chorei e me cansei a perder a conta. Fiquei exausta. Pedi ajuda. Fui ajudada. Esbarrei com gente que me fez me sentir viva outra vez. Encontrei aqueles que me mataram um pouquinho mais mas, hoje entendo, me ajudaram a dizer adeus a quem eu nunca mais seria.

O caminho foi longo e solitário muitas vezes. Descobri que autoconhecimento e resiliência são conduzidos por trilha sem fim. Mas há belas pausas para respiro e para apreciar a paisagem ao longo do trajeto. Estou vivendo justamente um desses intervalos, e a estrada me trouxe à Espanha. Desembarco aqui não em uma tentativa de fuga, mas por uma determinação de resgate.

Vim me reencontrar, refazer planos, me apaixonar de novo pela vida e por tudo que ela pode me dar. Porque a parada final é definitiva e é impossível saber em qual esquina ela vai estar.

 

 

Flávia Duarte, 37, é jornalista e trabalhou 16 anos no Correio Braziliense. Atualmente, vive em Barcelona, onde faz um mestrado em criação literária pela Universidade Pompeu Fabra. No blog Resete-se, compartilha sua experiência de formatação pessoal em solo espanhol.

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