Havia um câncer no meio do caminho

Lu Ferreira - 30 jul 2015Lu Ferreira: "Uma notícia terrível pode estar à espera de qualquer um de nós na próxima esquina. Só nos resta saber lidar com isso."
Lu Ferreira: "Uma notícia terrível pode estar à espera de qualquer um de nós na próxima esquina. Só nos resta saber lidar com isso."
Lu Ferreira - 30 jul 2015
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Por Lu Ferreira

 

Desde cedo aprendi a traçar objetivos em todas as áreas de minha vida, de modo a me tornar “bem sucedida”. Qualquer que fosse a minha definição de sucesso, que variou com o tempo, as metas deveriam ser bem definidas para que eu pudesse focar meu esforço naquilo que queria alcançar.

Ir bem na escola, entrar numa faculdade de primeira linha, criar filhos com caráter, ter uma carreira promissora, ser dona do meu próprio negócio, frequentar bons restaurantes, fazer viagens internacionais. Já tive muitos objetivos, muitos jeitos de significar a “felicidade”. Sempre acreditando que, quanto mais precisa eu fosse na definição dos propósitos em minha vida, mais fácil seria planejar e executar meus passos.

Não tem sido uma tarefa fácil assumir meu destino. E me tornar responsável por mim mesma. Sempre houve obstáculos. E boa parte deles tem a ver com o aspecto emocional. Minha baixa autoestima me vinculou, muitas vezes, a pessoas que nem sempre eram a melhor companhia para mim naquele momento.

No mundo do trabalho, sofri com a alternância de poder e de influência nas empresas em que trabalhei. E com alterações no meu próprio projeto de vida profissional. Fui educada para ser independente financeiramente. Esse estilo de vida me vestiu com uma máscara de rigidez que me isolou e me impediu de estabelecer todos os laços de amizade que poderia. Não me tornei uma pessoa popular, querida pela maioria. Fiz poucos e bons amigos. Em determinado momento, decidi que o mundo corporativo não era para mim. Era um sistema que me obrigava a ser alguém que eu não gostava de ser. Ao menos era assim que eu sentia. Sofria com isso. Primeiro, eu me fechei – o que afastou ainda mais as pessoas. Era uma defesa, mas boa parte dos interlocutores lia como antipatia. Depois, saí daquele ambiente.

Mais tarde, já tendo cumprido um sabático dedicado à maternidade, optei pelo empreendimento. Sozinha, dependendo só de mim, sem chefes nem pares, eu me movimentaria melhor. Caí dentro, num território novo, cheio de regras que eu desconhecia. Abri uma empresa de varejo em plena eclosão da atual crise econômica, que paralisa o país. (Terminaremos esse ano com inflação de 10% e retração econômica de 2%. Que tal?)

Confiei em gente que me deixou na mão. Confiei demais na minha própria intuição, talvez. Não busquei ajuda. Me senti sozinha. Desamparada mesmo. Sem ter todas as informações de que precisava, já não tinha ânimo para correr atrás delas. Apostei alto e perdi alto. Fali. Lentamente – que é o pior jeito de você quebrar. Esse tombo me fez sentir ainda mais “torta” em relação à carreira

Ao longo de todo esse processo de amadurecimento – e de desconstrução de sonhos – foram aparecendo as desculpas. As explicações que eu ia me dando para algumas coisas que iam acontecendo comigo. Eu na voz passiva, como um joguete na mão da vida, do mundo, dos outros. Eu, não-protagonista, reclamando da economia, do governo, do senhorio. Eu não-responsável pelas quedas que ia experimentando pelo caminho. Eu, olhando para fora, mirando minha insatisfação nos outros.

A autoindulgência é uma defesa. Ela nos protege de nós mesmos. Evita que a gente enxergue o que tem que enxergar. E assim nos impede de reconhecer e de alterar o que precisa ser melhorado. Sentir pena de si mesmo é um vício. No curto prazo, é um conforto. Mas não resolve nada e se torna, logo em seguida, uma prisão que lhe imobiliza exatamente naquele lugar de onde você precisa desesperadamente sair.

Diante de uma situação de estresse, de alta ansiedade – que, num curto circuito, se transforma rapidamente num quadro de depressão – há quem busque ajuda em drogas lícitas, como o álcool ou os medicamentos de tarja preta. Há quem desconte no açúcar ou nas cutículas ou nos amigos. E há quem, como eu, cultive as próprias feridas.

Passei dos 40 e vejo que consegui realizar vários dos objetivos a que me propus. Mas ainda há outros que quero alcançar. Que preciso alcançar. Voltar a ser um agente econômico autônomo, uma profissional com projetos em curso, com uma carreira a administrar, com autonomia financeira. Parece simples, mas não é.

Voltar a caminhar com alegria e confiança no mundo do trabalho, e ter orgulho de si mesma, é um desafio para quem convive com alguns equívocos e “fracassos” do passado revoando ao redor – e dentro – da cabeça. Esses são os meus fantasmas. Meus corvos de estimação, que preciso enfrentar e vencer

Para romper com o ciclo paralisante da autocomiseração, que gira em torno do desânimo e da melancolia, e que mira tão longe (e que sonha tão grande e bonito) que nos impede de dar o primeiro passo (aí mesmo é que não saímos do lugar), tenho tentado pautar a minha vida com objetivos simples – mas nem por isso mais fáceis de serem alcançados:

1. Trabalhar com algo que me faça feliz
2. Nutrir amigos que me façam sorrir
3. Manter meu corpo saudável para alcançar os objetivos anteriores

O terceiro objetivo sempre foi a base de tudo. Enquanto eu estudava, trabalhava, realizava, me frustrava, namorava, sofria, me divertia, sempre mantive o foco em minha saúde. Faço esportes desde muito cedo. Nadei competitivamente por quase 15 anos. E quando abandonei as piscinas, continuei malhando todo dia. Meu corpo nunca sofreu grandes alterações de peso, nunca fui vítima do sedentarismo. Sem exageros, sempre busquei me alimentar da melhor forma possível. Bebo pouco, nunca fumei nem usei drogas.

A felicidade, para mim, sempre envolveu também o exercício da fé e da espiritualidade. Nasci católica, mas peregrino por outras religiões que me interessam, como Espiritismo, Umbanda e Budismo. Procuro crenças que me tornem um ser humano melhor, e que me tragam paz à alma. Também sem radicalismos, sempre deixo à distância doutrinas que me proponham entregar minha vida e meu destino a um Ser Superior ou a uma determinada Igreja.

Agradeço aos Céus por muitas coisas – faço isso constantemente. Sobrevivi a alguns acidentes graves, nunca me faltou nada fundamental, tenho filhos maravilhosos, nunca fui assaltada morando há quase cinco décadas em São Paulo e no Rio de Janeiro – duas das cidades mais violentas do mundo.

E agora, essa notícia. Há algumas semanas, fazendo exames de rotina, me aparece uma “calcificação distrófica” na mama. Recebo do laboratório uma fotografia de mim que não me representa. Trata-se de uma parte de mim que não reconheço. Uma invasão. Ou melhor, uma rebelião. Meu corpo, que sempre procurei tratar da melhor forma possível, me atacando dissimuladamente. Barbaramente. Uma traição.

“Carcinoma”. Que nome horrível. Do tinhoso, de vilão infiltrado, um apelido da morte, uma coisa que eu nunca imaginei associada a mim. Não tão cedo. Não com filhos de 9 anos. Não com o histórico genético sem sobressaltos da minha família. Não dessa forma tão inesperada. O que eu fiz para merecer isso? Por que eu?

Um câncer de mama, logo agora, que estou querendo me reconectar ao mercado e iniciar um novo negócio? Logo agora que preciso de toda energia possível para avançar profissionalmente, para seguir ativa e produtiva, gerando valor para mim mesma e para o mundo ao redor? Logo agora que, outra vez, estava traçando metas bem definidas para focar meus esforços em tudo que ainda desejo alcançar?

Dessa vez, a autopiedade se apresentou para mim com força. Uma oportunidade irresistível para mirar minha frustração, meu medo, minha insatisfação e meu desespero nos outros. A tendência das pessoas é minimizar o problema. E desejar que você o supere rapidamente também. Mas eu me dei o direito à tristeza. Afinal, fui premiada na loteria genética com um tumor. Logo eu que privilegio alimentos integrais e orgânicos. Logo eu que fui atleta e que amamentei – gêmeos! – por seis meses. Logo eu que tomo suco de couve com maçã, que como frutas na sobremesa, que gosto de gengibre, de quinoa e espinafre.

Mas, se estou me dando o direito de cair, não estou disposta a ficar no chão. Estou recusando sentar à beira do caminho e me dedicar a sentir pena de mim mesma. Posso me sentir injustiçada e triste. Posso sentir raiva e revolta por estar vivendo tudo isso. Mas estou viva. E não vou esperar do destino o que ele decidir me dar – eu vou construir o meu destino. Vou obter da vida o que eu quiser e o que eu puder – não vou esperar nada cair do céu.

Em vez de abandonar a minha lista de objetivos, e me entregar ao fosso e à fossa, quem sabe amplio minhas metas? Minha vida passou para as mãos de outras pessoas: médicos, radiologistas, enfermeiros. Meus horários são as agendas de hospitais, consultórios, centros oncológicos. Mas eu sou maior que tudo isso. O cansaço, a dor e a tristeza tomaram conta do meu corpo – e da minha cabeça, o que tem um efeito ainda mais avassalador. Mas eu sou forte. Eu posso – e eu vou – superar tudo isso.

Ao invés de me perguntar por que isso aconteceu com alguém que sempre se cuidou tanto, e que sempre teve fé, talvez seja o caso de agradecer por eu ter sempre me cuidado tanto, e por cultivar essa fé que me fortalece, características que me tornam muito mais preparada do que a média das pessoas para vencer essa batalha.

Nem sempre plantamos o que colhemos. Mas para colher o que queremos, é preciso plantar. A vida prega peças? Sim. Mas ela também pode ser uma trajetória repleta de momentos felizes. A gente às vezes se decepciona com o que está reservado para nós? Sim. Mas há muita coisa que a gente constrói com as próprias mãos, com o próprio tino, com a própria perseverança – e não raro o que é obra nossa tem um gosto melhor. O azar pode estar escondido na próxima curva? Sim. Mas também há muita sorte na vida, muitas coisas boas à nossa espera.

Essa é a minha fé. Uma fé que não me paralisa. Mas que, ao contrário, me põe em movimento para superar o revés e as adversidades, e para continuar acreditando na alegria e nos sorrisos, e na minha força de vontade e na minha capacidade de realização.

 

Lu Ferreira, 42, é resiliente e resistente. 

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