O documentário Ilegal (dirigido por Tarso Araujo e Raphael Erichsen) está em cartaz em mais de 40 salas do Brasil. Ele mostra como é a rotina de Katiele Fischer, mãe de Anny, em sua luta para conseguir medicar a filha. A menina sofre de epilepsia refratária, também chamada de “epilepsia de difícil controle”, pela gravidade e frequência das convulsões, e não existe medicamento convencional que traga bem-estar à menina. O canabidiol — substância derivada da maconha, vendida nos EUA — é a única forma de amenizar o sofrimento de Anny, mas seu uso é proibido no Brasil. Eis o drama, e a trama, de Ilegal. Assista o trailer.
Esta noite, no Auditório Ibirapuera, em São Paulo, haverá uma sessão especial e gratuita do filme, seguida de um debate aberto sobre a legalização do uso medicinal de maconha. Participam Jean Wyllys (deputado federal PSOL-RJ), Fernando Grostein (diretor de “Quebrando o Tabu”), Margarete Brito (uma das mães retratadas no filme), Raphael Erichsen (co-diretor) e Sérgio Vaz (criador da Cooperifa). O objetivo é dar ainda mais visibilidade ao drama dos milhares de doentes e familiares, gente que sofre as consequências de uma legislação cega para as suas necessidades, médicas, e que não oferece nenhuma outra opção.
Além de contribuir para uma causa urgente, polêmica e necessária, o filme tem uma história por trás da história que vale a pena ser conhecida. É daqueles casos em que a inovação — na forma de se conceber e criar um produto — quase se antecipa aos fatos. Ilegal nasceu como uma ideia de reportagem na revista Superinteressante, que virou um especial, que virou um curta, que virou uma campanha, que virou cinema…
DRAFT entrevistou com exclusividade Denis Russo Burgierman, diretor de redação da Superinteressante (a revista coproduziu o filme) e produtor associado de Ilegal, e Raphael Erichsen, co-diretor do longa, para entender como tudo aconteceu.
DRAFT – Como surgiu a ideia de produzir um filme? Quem foi o primeiro a parar de rir na mesa do bar e achar que a ideia podia não ser tão absurda assim?
Denis – Maconha medicinal era um assunto muito negligenciado. A imprensa não tratava, os pacientes raramente mostravam a cara, por causa do estigma. No comecinho de 2014, resolvemos fazer um especial na Super sobre as imensas mudanças que estão acontecendo no mundo ligadas a esse tema e chamamos o Tarso Araújo para ser o editor. Além disso ele resolveu fazer uma reportagem como repórter – sobre maconha medicinal, focada em encontrar personagens. O filme não existiria sem o Tarso. Assim que o Tarso encontrou a Katiele e a Anny, todos ficamos muito tocados e cheios de vontade de ajudá-las a contar sua história. Quem primeiro entrou na barca foi o Raphael Erichsen e, com ele, toda a 3Film Group, que é a produtora dele. Eles se mandaram para Brasília, por conta própria, e gravaram um curta. Houve uma sessão desse curta em abril (dois meses depois do especial), em São Paulo, e todo mundo saiu chorando. Aquela noite, fomos a um bar na Praça Roosevelt e eu disse a eles que a Super queria ajudá-los a transformar esse projeto num longa-metragem. Tínhamos separado uma grana aqui para fazer uma campanha publicitária e, muito por ideia do Cezar Almeida, nosso gerente de marca, já tínhamos a ideia de que, em vez de fazer campanha para convencer as pessoas de que somos relevantes, devíamos simplesmente ser relevantes. O filme é, em parte, nossa campanha: nossa forma de mostrar que acreditamos em conteúdo de qualidade, acreditamos numa atuação transplataforma, acreditamos no poder transformador da informação. E, pelo jeito, estamos certos em acreditar – porque a estratégia está dando muito certo. O projeto foi uma grande parceria de gente com afinidades (não por acaso todos pertenceram em algum momento à família Super). Adoramos a experiência e pretendemos fazer filme sempre.
DRAFT – Como gerar um roteiro a partir de uma reportagem? Quais foram os caminhos percorridos na fase de pré-produção?
Denis – O filme não é uma repetição da reportagem. São duas histórias diferentes, e cada uma se beneficia das características de sua mídia. O impresso é melhor para aprofundar, para organizar informação, para contextualizar, para compreender racionalmente. Já o audiovisual é perfeito para gerar empatia entre público e personagens – o contato com o olhar do personagem, a compreensão profunda dos seus dramas. Para nós, as matérias, o filme e os conteúdos digitais são complementares. E ficamos muito felizes de viver numa época em que as tecnologias e o acesso a elas nos permitem tratar os temas de maneira tão diversa.
DRAFT – De onde vieram os recursos? Quem são os parceiros? Como o filme foi financiado? Quais foram os caminhos percorridos na fase de captação?
Denis – O filme foi bancado pela Super, com um dinheiro de marketing. Isso permitiu que o projeto fosse realizado com muita agilidade e que o filme chegasse aos cinemas com a história ainda se desenrolando. Além disso, a história toda foi muito mobilizadora e atraiu muita gente querendo ajudar. O Tarso criou a campanha Repense, no Catarse, que trouxe bastante dinheiro de crowdfunding para uma campanha de conscientização sobre o tema. Quando o filme ficou pronto, recebemos mais apoios ainda que nos ajudaram na distribuição, graças em grande parte ao Instituto PDR, que foi um parceirão.
DRAFT – Quantas pessoas, com que expertises, se envolveram no projeto, ao todo? Qual custo final do projeto? Quais foram os caminhos percorridos na fase de produção?
Denis – Poxa, é até difícil para mim te responder isso. Vou repassar a pergunta ao Rapha (Raphael Erichsen), que pode te contar um pouco mais sobre a produção do filme. Mas a mobilização foi muito coletiva: envolveu a produtora, depois a Super, nossa operação de redes sociais, os próprios personagens do filme e suas redes, os parceiros que a PDR foi trazendo para ajudar na distribuição, todo mundo que doou no crowdfunding. Sentimos muito concretamente que esse filme é parte de uma ampla mobilização. Foi um barco que passou, que nós ajudamos a navegar, mas tem muita gente remando.
Rapha – O projeto foi gestado dentro da produtora 3Film, que já trabalha com documentários há bastante tempo em parceria com a Superinteressante. Para a realização de um projeto como esses são necessários mais de 20 profisionais entre documentaristas, diretor de fotografia, operadores de câmera, soundguy, produtores, editores, músicos, editores de cor/áudio e jornalistas entre outros. Esse é um filme de baixo orçamento. O projeto foi crescendo em seu desenvolvimento e o que começou com um budget de 250 mil reais acabou chegando a 500 mil, incluindo a distribuição. Desde a fase de produção, O Ilegal tem funcionado como uma bola de neve, agregando gente por onde passa. Essa bola de neve só vem aumentando, e nossa ideia é que ela siga crescendo.
DRAFT – Como se distribui um filme no Brasil? Qual é a expectativa de ganhos da Super com o projeto? Quais os caminhos depois do filme pronto?
Denis –No nosso caso, a distribuidora foi a Espaço de Cinema, do grande Adhemar de Oliveira. A Espaço é a principal distribuidora de filmes europeus e brasileiros, e é muito boa em documentários. É a grande distribuidora dedicada a “filmes de arte”, e sua maior vitrine é a rede Espaço Itaú. Eles foram grandes parceiros, porque acreditaram no projeto, e porque a PDR fez a ponte com eles. Graças a eles, estreamos em mais de 20 salas no Brasil inteiro, um número enorme para um documentário. A Espaço também leva filmes mais “artísticos” para salas de shopping, como as da rede Cinépolis. Qualquer filme precisa de um distribuidor para ir ao cinema. Após sair de cartaz vamos começar a levar o filme para a TV – aberta, a cabo, Netflix etc. Também estamos conversando com uma empresa bem legal de “difusão” chamada Taturana, que deve levar o filme para escolas, centros culturais e eventos do Brasil inteiro – provavelmente atingindo muito mais gente que o cinema, cujo público no Brasil é limitado. Um filme pode ter um ciclo muito amplo – e é esse nosso plano. Cinema é só o começo – ajuda a dar credibilidade ao projeto e a atrair a atenção da imprensa (que foi imensa). Mas, em termos de público, os outros canais são até mais relevantes. Esse projeto nasceu no marketing e a premissa é de que o maior ganho que nós (na Super) esperamos com ele é de marca. Dar receita não é nosso objetivo principal. Mas sem dúvida olhamos com carinho para essa nova linha – pode virar um negócio no futuro.
DRAFT – A Marvel hoje ganha muito mais dinheiro com games e filmes do que jamais ganhou com HQs impressos. Esse pode ser um caminho para a Super – deixar de ser uma revista? Quais as próximas plataformas para a marca explorar?
Denis – Deixar de ser uma revista acho que não. A Super sempre será uma revista (digital e impressa), porque esse é um serviço que prestamos bem e tem muita gente consumindo. Mas certamente queremos ser mais que uma revista – queremos nos libertar do papel grampeado. Super é uma comunidade que compartilha uma certa visão de mundo. Há 1 000 jeitos de atender essa comunidade: com páginas impressas, arquivos digitais, produtos audiovisuais, redes sociais, serviços de educação, eventos presenciais, livros, games e o que mais inventarem. O que nos define não é o papel ou o grampo. É a informação que produzimos.
DRAFT – A descriminalização da maconha medicinal é um passo na direção na descriminalização da maconha em geral?
Denis – Não sei. Acho que a criminalização de mães que apenas querem cuidar de seus filhos é um exemplo extremo da falta de lógica do nosso sistema. Mas nós não fazemos política, fazemos jornalismo. Nosso papel não é mudar a realidade – é revelá-la. O objetivo desse filme é contar histórias de gente que geralmente não é levada em conta no debate. O debate sobre drogas é pautado por um discurso fortemente moral e cheio de certezas. Nosso objetivo com esse filme foi tentar levar as pessoas a entenderem que há gente real, com dramas reais, por trás dessas discussões abstratas. E, desde muito cedo, decidimos que Ilegal trataria apenas de um tema: cannabis medicinal. Não nos interessava discutir outros temas. O filme não é parte de uma estratégia de legalizar a maconha no futuro – é uma discussão sobre um tema que achamos muito importante e que ninguém estava discutindo.
DRAFT – Para o movimento pró-descriminalização da maconha, enfocar a questão do uso medicinal não é um desvio de rota da discussão principal, da questão maior, que é legalizar o uso da maconha em todos os aspectos?
Denis – Para pessoas como Katiele, Norberto, Anny, Camila, Margaret, Juliana, as mudanças são urgentes e não podem esperar pelos nossos morosos políticos. Para eles, nenhuma questão é maior que essa. Nosso objetivo era mostrar isso. Não paramos para fazer cálculos estratégicos – o objetivo era contar histórias que não estavam sendo contadas.
DRAFT – Quais são os principais argumentos em favor da legalização da maconha – para uso medicinal e para outros fins?
Denis – Hoje o que temos é, em grande medida, um mercado “liberado”. Por trás da ilusão da proibição, o que acontece é que o mercado de drogas é um dos mais desregulamentados que existem. Traficantes podem vender em qualquer lugar, para qualquer pessoa, sem pedir RG, sem nenhuma fiscalização, sem pagar impostos, sem seguir nenhuma regra, até mesmo para crianças dentro de escolas. Hoje no Brasil é mais fácil comprar maconha do que comprar antibiótico. O estado está se eximindo de sua responsabilidade de regular os temas sociais delicados. Eu pessoalmente acredito que esses mercados precisam ser regulamentados – o que, em grande medida, significa restringi-los, ao contrário do que se pensa.
DRAFT – Quais são os principais argumentos contrários, ao uso medicinal e a outros fins, utilizados por quem é contra a legalização da maconha?
Denis – Quase sempre são certezas morais, que advêm de uma cultura que demonizou a maconha por muitos anos. As pessoas que condenam gente de bem como a Katiele no geral desconhecem as pesquisas científicas e compreendem mal a questão. Ou são ex-dependentes traumatizados que compraram o discurso demonizador. Além do que, há interesses financeiros de deixar as coisas como estão. Quase todos os argumentos contrários são de pessoas que não compreendem os dramas humanos por trás dessas histórias.
DRAFT – Qual o seu prognóstico para a legalização da maconha no Brasil? Em quanto tempo isso pode acontecer e o que tem de acontecer antes para que isso ocorra?
Denis – Acho que é imprevisível. Se depender do Congresso e de sua proverbial covardia, não haverá mudança nunca: políticos têm muito medo de temas impopulares como esse. Mas as mudancas parecem estar acontecendo globalmente. Se mudar profundamente nos EUA, país que concebeu nossa atual política, tendo a acreditar num efeito dominó global. O problema é que o Brasil tem uma longa tradição de empurrar problemas com a barriga em vez de resolvê-los: foi assim com a abolição da escravidão, que ainda demorou 30 anos para acontecer no Brasil depois que a América Latina inteira tinha se livrado dela.
DRAFT – E se a maconha fosse legalizada no Brasil em 1º de janeiro de 2015? O que aconteceria no primeiro ano?
Denis – Acho que um projeto sério precisaria de um tempo de implantação mais longo que esse. Mas, a julgar por experiências que estão acontecendo mundo afora, provavelmente o que aconteceria é: nada de mais. Estados americanos como Colorado e Washington estão percebendo que a legalização não muda tanto a situação. O consumo não muda muito (quem quer fumar já pode, quem não quer não quer). O que muda é que a arrecadação do estado começa a subir, o crime organizado começa a ficar sem dinheiro, taxas de uso de drogas pesadas diminuem um pouquinho, a procura de serviços de saúde aumenta, a polícia tende a ficar um pouquinho mais eficiente para lidar com crimes verdadeiros porque não se distrai prendendo meninos traficantes, caem sutilmente taxas de overdose etc. Enfim: a sociedade começa a voltar ao normal, pois se vê livre dessa utopia antinatural que é a de acreditar que o estado é capaz de vigiar cada pessoa e de controlar seus hábitos mais íntimos.
DRAFT – Qual o melhor jeito de se conectar à causa pró-legalização e contribuir com ela hoje no Brasil?
Denis – Olha, estamos muito focados na causa das cannabis medicinal e na necessidade urgente de regulamentação, até porque tem gente sofrendo. Um jeito de ajudar é levando gente para ver Ilegal, espalhando essas histórias, principalmente para quem não está tão bem informado. Você pode também colaborar com a campanha Repense. Não há nenhuma campanha de crowdfunding aberta neste momento, mas há outras maneiras de ajudar.
Ilegal: filme + debate. Auditório Ibirapuera, hoje às 21h. Av. Pedro Álvares Cabral, portão 2, Parque do Ibirapuera, São Paulo. Ingressos devem ser retirados na bilheteria a partir das 19h30 — o espaço tem 800 lugares.
Kanna oferece um sistema de venda de tokens: quem comprar ganha benefícios exclusivos e o valor segue para financiar cultivo e produção de cannabis visando redução de danos ambientais.
O assassinato do congolês Moïse Kabagambe pôs em evidência a situação dos refugiados no Brasil. Saiba como o Abraço Cultural engaja imigrantes para dar aulas de idiomas e ajuda essas pessoas na busca por uma vida melhor.
Bem antes que a pandemia mobilizasse o apoio de pessoas a projetos sociais, Murilo Farah e Tati Leite já abraçavam o crowdfunding como ferramenta de transformação. Conheça a trajetória pioneira da Benfeitoria.