Bater um papo com os fundadores do Líquen, conhecer seus motivos e ambições, é ter diante dos olhos a materialização do empreendedorismo criativo no Brasil. Se é verdade que nunca tanta gente recusou o mundo corporativo, e que os melhores talentos não querem mais ter empregos, e sim fundar empresas, também é verdade que eles não querem empresas iguais às que abandonaram. Querem trabalhar com um sentido, ver razão no que fazem. Além da grana, é claro.
Graziela Peres, 49, nasceu no Rio de Janeiro e veio para São Paulo há 19 anos para ser diretora de arte da revista Vogue. Também concebeu e foi diretora criativa da revista Mag, e trabalhou em diversas publicações de moda, alternando momentos de ser contratada ou empreendedora (em sociedade com Tatiana Duarte, na Piscina, uma empresa do ramo de confecção). Há pouco mais de um ano, ela se deu “ao luxo” de tirar o segundo ano sabático da vida. Voltou renovada. “Me considero uma pessoa de sorte pois sempre trabalhei onde quis, tive cargos de liderança e liberdade”, diz Graziela.
Ela conta que dessa vez sentiu algo muito sutil, mas uma mudança importante: o desejo de fazer coisas que a transbordem. “É quase como perder o ego e querer trabalhar em algo que funcione mesmo sem você. É troca, é colaboração, é ouvir gente que parecia não ter nada para dizer, e descobrir que tem muito”, diz Graziela.
Luciano Schiavon, 35, nunca se formou advogado e sempre foi empreendedor. Já teve restaurante, já teve uma consultoria de mixologia (a ciência de fazer drinks), e já foi sócio do laboratório que trouxe a primeira impressora 3D para o Brasil. Há 13 anos, ele mantém o Aretha, um estúdio de design e tecnologia que tem como maior cliente o grupo Fasano.
É casado há dez anos com Andrea Company, 35. Ela se formou em hotelaria no Senac, viajou “muito mesmo” pelo mundo e trabalhou durante oito anos no ramo, em hotéis da classe de um Emiliano. “Mas comecei a sofrer uma crise, e passei a achar que o mercado de luxo não tinha nada significativo”, diz ela. Deixou o emprego e, na época, passou a ser a gerente de produção no Aretha.
O business chegou a ter 12 funcionários e logo o casal se viu, mais uma vez, questionando o formato de trabalho, as relações com as pessoas, enfim, padrões que não queriam mais para si. Era hora de mudar. “Enxugamos tudo. Passamos a trabalhar em casa e a contratar os frilas que precisávamos, conforme a demanda”, conta Andrea. Talvez sem saber, a esta altura de suas vidas Graziela, Andrea e Luciano já estavam prontos para o convite que iria transformar o que era vontade em uma nova realidade — de trabalho, de relações e de estilo de vida.
A proposta veio do designer, DJ e amigo de infância de Luciano, Elohim Barros. Há cerca de dois anos, ele, a esposa Renata Mein, também diretora de arte, e outros amigos (como o jornalista Bruno Torturra) vinham trabalhando para dar vida à Balsa — espaço no último andar e terraço de um prédio antigo no Centro de São Paulo, transmutado em “salão de encontros”: bar e local para disputadas festas fechadas. A Balsa ocupava os andares de cima do prédio. Os outros três pisos eram ocupados por uma distribuidora de CDs, que ia mal das pernas.
MÃOS À OBRA. MESMO
“Era um negócio fadado ao fim, eles iam sair logo”, lembra Graziela. Cientes disso, Elohim e Renata convidaram os amigos, pois queriam rachar o custo de um espaço para poderem trabalhar como designers. Em uma das visitas, Graziela, Luciano e Andrea gostaram do segundo andar. “São os mesmos 160 metros quadrados, mas sem divisórias e com essa luz vindo das janelas de vidro. Quisemos botar a mão na massa e transformar o lugar”, diz Grazi. Contrato fechado, hora de ralar.
“O romantismo com o Centro acaba na hora. Esse prédio tem 40 anos e inúmeros problemas estruturais, de eletricidade, de encanamento, não chega internet. Fizemos tudo na unha”, lembra Luciano. Só depois de seis meses eles puderam ter condições mínimas de trabalho, e passaram a ir para lá todos os dias. Nessa fase, chamaram o último elemento a se juntar ao grupo, o artista plástico e cenógrafo Felipe Morozini. Criativo, engajado e morador do Centro, ele faz parte do movimento para transformar o Minhocão em um Parque. Rapidamente se integrou ao grupo. Nessa fase, eles investiram ao todo 70 mil reais no que era, até aquele momento, apenas um lugar para trabalharem juntos.
O local é agradável, bem iluminado e fresco. Está cheio de plantas (“queremos transformar isso aqui numa floresta”, brincam), o mobiliário é antigo, com referências à era industrial. A iluminação é indireta, cheia de luminárias e pequenos abajures. Livros e revistas de arte estão ao alcance das mãos, um som ambiente de bom gosto parece brotar permanentemente debaixo dos sofás. Há mesas de trabalho, mas não existe sala para reuniões. “A gente não faz reunião: a gente conversa”, diz Luciano.
Por não ter paredes, o espaço propicia muitas outras trocas. A experiência diária no Centro da maior metrópole do país também é algo tocante, e logo os seis amigos perceberam que as relações construídas ali iam muito além do mero co-working. Eles queriam trabalhar com o que gostavam, mas também tinham um propósito comum: queriam melhorar o bairro e a cidade.
SIMBIOSE ENTRE O TRABALHO E O PROPÓSITO
O empreendimento foi batizado de Líquen porque, assim como o organismo resulta da relação ganha-ganha entre uma alga e um fungo, eles querem propiciar a simbiose entre “o trabalho e o propósito, o analógico e o digital, a arte e o cotidiano, as ideias e a amizade”. Querem trabalhar, mas querem que seja legal. Em muitos sentidos. Assim, este time de profissionais com habilidades em direção de arte, direção criativa, design, moda, cenografia, fotografia, vídeos, campanhas e editoriais começa a se organizar.
“Cada um tem o seu cotidiano profissional individual, mas estando aqui a gente consegue se preparar para fazer coisas que não conseguiríamos em outros ambientes. Estamos no Centro e gostamos daqui. Queremos dedicar nosso tempo para projetos públicos e privados que sejam para o bairro e a cidade”, diz Luciano.
“Somos recém-nascidos”, diz Luciano. “O Líquen é o fora-da-caixa de cada um. É onde a gente pode experimentar outras coisas.”
De cara, herdaram um equipamento de serigrafia e, habilidosos que são, começaram a estampar camisetas e sacolas. Pura diversão, ainda que alguns amigos tivessem pensado que Líquen era uma nova marca de silk. Entre os muitos projetos possíveis do grupo, está o de fazerem um livro e exposição, que ainda depende de aprovação na Lei Rouanet para ser confirmado. O leque, porém, é muito maior. “Somos recém-nascidos”, diz Luciano. “O Líquen é o fora-da-caixa de cada um. É onde a gente pode experimentar outras coisas.”
“Claro que queremos ganhar dinheiro, sobreviver, mas também queremos fazer algo transformador. Fazer coisas em que realmente acreditamos, que gerem valor para outras pessoas, para a cidade”, diz Andrea. E diz que, como os formatos das empresas que têm fora dali são enxutos, eles têm liberdade e tranquilidade para investir no Líquen. “Isso tira uma carga. Não existe business plan. Somos um mecanismo de trabalho, é algo mais orgânico. Parece romântico, mas sabemos que isso tem um lado de mercado também”, diz Luciano.
O grupo tem passado muitas horas no Líquen. Costumam chegar por volta de 11h da manhã e ficar até umas 20h ou 21h. Parte desse tempo é usado em papos que são uma espécie de “reunião de condomínio com os amigos”, já que o sonho de Elohim, Renata e Bruno se concretizou — os quatro andares do prédio estão ocupados por empreendimentos criativos (o Instituto Choque Cultural e o Fluxo, além do Líquen e da Balsa).
Ao mesmo tempo em que estão orgulhosos do caminho percorrido até aqui, eles sabem que a jornada mal começou. Lembram que “os canos pararam de estourar” há apenas um mês e que ainda não conseguem ver no cotidiano nada de rotineiro. “A gente está sempre experimentando algo, a cada semana mudamos alguma coisa”, conta Andrea. “E não vamos perder isso nunca”, diz Grazi. Talvez seja esta, efetivamente, a rotina do Líquen.
Artur Santoro, sócio da Batekoo, fala sobre a evolução do projeto: do começo como uma festa-resistência para o público negro e queer de Salvador até se tornar uma plataforma nacional que fomenta suas comunidades com cultura e capacitação.
Pioneiro da economia criativa, o bar Balsa chegou a reunir coworking e coletivo no mesmo prédio. Com a crise, viu o fim dos projetos e quase naufragou na pandemia, mas resiste ocupando um dos terraços mais legais da capital paulista.
O período da menstruação ainda é motivo de desconforto para muitas mulheres. Marca de discos e coletores menstruais, a femtech Yuper aposta também na comunicação para estimular o autocuidado feminino e desfazer tabus.