Você não tem sapato para ir à escola, vende jornal pra descolar um troco pro sorvete no domingo, sua bicicleta está toda torta e sua casa é feita de madeirite, seu pai trabalha estofando móveis e alguns amigos e parentes já se meteram no negócio das drogas para sobreviver — um primo foi assassinado a pedradas por traficantes. Você tem oito anos, muitos sonhos, muita fome de mundo, mas o mundo está a uns 45 km de distância: se chama Plano Piloto e não está nem aí para o bairro onde você mora, no Gama, uma das cidades-satélites de Brasília, Distrito Federal. Quando uns tios voltam do Paraguai com computadores debaixo do braço, mostram a você como instalar softwares e montar hardwares. Na mesma época você conhece uma igreja evangélica. E sua vida passa a fazer sentido.
Dez anos depois você é um dos principais programadores da sua geração. Não mora mais a 45 km — ou duas horas — do trabalho, como a maioria dos familiares em Gama: se mudou para Brasília, é a primeira pessoa da família a entrar numa faculdade, trabalha em uma agência de publicidade superpremiada e está prestes a assumir o cargo de concursado que vai torná-lo um servidor federal, com um baita salário e estabilidade garantida pro resto da vida.
Mas, como você se chama Marco Gomes, joga tudo pro alto e vem para São Paulo passar fome. De novo.
“Me chamaram de louco por abandonar a faculdade, o emprego e o serviço público”, conta Marco Gomes em uma sala da startup que fundou em agosto de 2007, a boo-box, hoje uma empresa que ocupa 200 metros quadrados de um belo edifício na Vila Olímpia, zona oeste de São Paulo. De dentro de sua camiseta que estampa a frase O HIP HOP SALVOU MINHA VIDA, ele fala rápido, muitas vezes se atropelando ou atropelando o interlocutor, abrindo e fechando parênteses para assuntos diferentes enquanto esbugalha os olhos na direção de seu inseparável iPhone 6, onde às vezes solta umas batucadas velozes.
Magrinho, cabelo reco, óculos e sorrisão alucinado, tem aquela cara de nerd fofo que você pediu a Deus para casar com sua filha. Na verdade, ele é casado — há dois anos, com uma jornalista. Mas quem o vê com a vida ganha hoje não imagina como foi o início da boo-box, mais importante empresa de mídia digital da América Latina, uma das 50 empresas mais inovadoras do mundo segundo a revista Fast Company, com faturamento de 11 milhões de reais em 2014.
Em 2007, trabalhando como programador na agência Click, à frente de um time de 15 pessoas, Gomes teve um clique quando sacou que os grandes anunciantes só divulgavam seus produtos em portais — e deixavam um gigantesco contingente de blogs à míngua. Ele conta:
“Minha geração não via portais, estava nos blogs, mas ali ninguém fazia publicidade. Logo a Geração Y ia ascender socialmente e não tinha ninguém falando com ela”
Assim, matutou uma tecnologia para fazer com que a publicidade atingisse a maior quantidade possível de sites menores e enviou à seção de empreendedorismo do TechCrunch, site especializado em tecnologia disruptiva. “Nenhum blog no Brasil tem a audiência de um portal, então criei técnicas para colocar publicidade em milhares de blogs ao mesmo tempo. Tinha de ser uma tecnologia para atingir as pessoas certas, para que o anunciante conseguisse alcançar o homem de 25 anos no primeiro emprego com interesse em tecnologia, por exemplo.”
O próprio Michael Arrington, o editor, se entusiasmou, aprovou o projeto e escreveu um artigo sobre o jovem candango. “A primeira vez que saiu uma menção ao Brasil no TechCrunch foi nessa matéria”, afirma Gomes. O projeto despertou a atenção de investidores como o fundo Monashees Capital, que o chamou pra uma conversa. Até mandaram uma passagem de avião. “Vi que era sério quando mandaram duas passagens, ida e volta. Nem sabia que se podia pegar dois aviões no mesmo dia”, ri o jovem empreendedor.
Os investidores ofereceram 300 mil dólares para o capital inicial. “Meus pais acharam esquisito. Desconfiaram. Brincavam: vão roubar seus rins”, ri. “O resto da família foi super contra. Sabe aquela pressão de quem não se forma não é nada na vida? Hoje, mais da metade dos meus amigos é funcionário público.” Gomes seria o primeiro funcionário público da família, mas preferiu largar tudo e embarcar para São Paulo. Foi terrível. “Eu vivia uma vida excelente: tinha rompido a barreira dos 44 km de distância do trabalho, pegava o carro pra chegar na agência 10 minutos depois, só comia comida crua, orgânica, fazia parkour todo dia. Em São Paulo fui morar num quarto de albergue que dividia com mais 3 pessoas. Ali tinha muito mofo, tive várias doenças respiratórias.”
O dinheiro foi todo alocado no negócio: alugaram uma salinha de 30 metros quadrados e compraram computadores — o plano era ter um cliente em 3 meses e pagar o projeto em seis meses; mas demorou 18 meses para o primeiro cliente, e anos até atingirem o break even, quando o negócio começou a se pagar. “Trazíamos caneta de casa, as cadeiras eram emprestadas… levei um ano pra poder morar em um apartamento sozinho, mais quatro anos para voltar ao padrão de vida que tinha em Brasília.” Não teve vontade de desistir? “Sempre! Hoje não sei se aguentaria de novo. Valeu a pena, mas não teria o mesmo estômago. Tinha azias absurdas… comia macarrão instantâneo todo dia, chegava a trabalhar 18 horas por dia, trabalhava sábado e domingo, tinha cada gastrite…”
Mas afinal, o que faz a boo-box? Trabalha em tecnologias de segmentação. Detecta, através dos hábitos de navegação de uma pessoa, o que ela deseja: se acessa sites que têm alto nível de linguagem, tem uma escolaridade alta; se tem uma conexão rápida, tem uma situação financeira melhor; lê muitos sites sobre a Apple, tem interesse em tecnologia e design; gosta do Corinthians? Se interessa por futebol. Aí a empresa estima quanto e quando acessam esses endereços e cruza os dados.
“Você entra num site agora e entra em outro daqui a dois segundos: não sei seu nome nem seu e-mail, mas sei que um usuário único tem um hábito xis de navegação. É super complexo — são 42 variáveis que levam em consideração tudo o que uma pessoa faz”, conta Marco. Esses hábitos são descobertos basicamente através dos cookies. Toda essa pesquisa superqualificada fez com que a boo-box esteja presente em 500 mil sites no Brasil. Alcança 60 milhões de pessoas por mês, mais do que a população da França — seis em cada dez brasileiros conectados viram uma propaganda veiculada pela boo-box, de Google a Itaú, passando por Microsoft, Ford e Unilever: são mais de 1 500 clientes por ano.
Atualmente, Marco Gomes não é tão workaholic — embora viva superconectado nas redes sociais, só na cama fica offline. Há uns dois anos percebeu que tinha de desacelerar — a boo-box era até maior, tinha 70 pessoas; hoje tem 40 funcionários. “Tínhamos investimento alto para crescer, mas estávamos deficitários. Estamos sustentáveis”, diz Gomes, hoje sócio-fundador e diretor de inovação. Como foi passar de programador a empreendedor? Estudou ou foi na raça mesmo? “É outro esporte. Só programo por prazer”, diz ele, e conta como fez para organizar a empresa:
“Meu caminho foi me aliar a empresários muito melhores que eu e delegar. O presidente da empresa está aqui do lado: é o Luiz Bernardes, que foi VP da Vivo e da Claro. Tive a humildade de saber que não sou a melhor pessoa pra fazer tudo na empresa. Assim, só penso na estratégia, cuido da inovação da equipe”
Gomes se orgulha da “gestão superprofissional” de sua startup — além da Monashees, tem também a Intel como grande investidor. E é uma empresa auditada todo ano. “Quantas startups do Brasil são auditadas?”
Evangélico desde os oito anos, Gomes frequenta uma igreja batista no bairro da Água Branca, na zona oeste paulistana. Se o lado nerd e workaholic o sinaliza como bom moço, o fato de defender abertamente uma religião não o coloca como um sujeito cordato. Nas redes sociais, onde pode ser visto quase o tempo todo — tem cerca de 100 mil seguidores no Facebook, Twitter e Instagram —, Gomes veste a carapuça do polemista, observador irônico do comportamento político e social, defensor intransigente das minorias, de práticas heterodoxas e praticante de uma linguagem nada politicamente correta.
Nada mais distante do figurino gasto e mofado de evangélicos ruidosos como Marco Feliciano: Gomes concilia o amor a Deus (vai à igreja toda semana) com o amor à ciência (é leitor de Isaac Asimov, Douglas Adams e fanático pelo 1984 de George Orwell). Cicloativista há quatro anos, acaba de vender o automóvel — mora no Jardim Paulista, de onde leva 15 minutos para chegar à boo-box. “Foi libertador largar o carro”, afirma. “O dinheiro que usaria pro imposto este mês peguei pra viajar!”, conta Gomes, que acabou de voltar de 10 dias no Peru — ele costuma viajar dez vezes por ano.
Não é, porém, o sucesso financeiro de quem saiu do nada o maior motivo de orgulho do empreendedor candango. “Nascemos para financiar a mídia independente no Brasil”, afirma Gomes, conselheiro de sites de sucesso como o Jovem Nerd, parceiro de links super acessados como Hypeness, Brainstorm9 e Não-Salvo — e profícuo palestrante de escolas de periferia. Além de Deus, ele acredita na importância do jornalismo investigativo independente.
“Queremos financiar o cara que não tem rabo preso, não tem editor que corta matéria por motivos políticos ou econômicos. Com as ferramentas da boo-box, o blogueiro consegue comprar um equipamento melhor, se divertir, viajar, pagar contas. Desde que começamos, repassamos milhões de dólares que teriam ido a grandes grupos para as mãos de 70 mil blogueiros — bônus de executivos viraram dinheiro na mão de moleques. Quero fazer isso no resto da vida: financiar o blogueiro, porque com uma mídia independente forte e estruturada nossa democracia vai ser mais forte”, afirma Gomes, pouco antes de ser hipnotizado pela tela do smartphone e voltar a batucar alucinadamente.
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