O ato de locomover-se sozinho de um cômodo para outro em uma casa é tão banal que a maioria de nós nunca pensou nisso. Mas, para milhões de pessoas no mundo, realizar o trajeto é uma vitória. É nessas pequenas grandes conquistas que a HooBox, de Campinas (SP), tem seu foco. A startup é uma healthtech criada por dois irmãos que na academia estudavam robótica e telecomunicações, Paulo Pinheiro, 33, e Claudio Pinheiro, 24. Eles desenvolveram um sistema de reconhecimento facial que permite, por exemplo, a um cadeirante com restrições de mobilidade, comandar a cadeira de rodas apenas a partir de suas expressões faciais – um beijo pode ser um comando de movimento.
“Antes de começarmos, em 2016, fizemos cerca de 80 entrevistas com pessoas com doenças neurodegenerativas e tetraplégicas e suas famílias. É um mercado pouco explorado no Brasil e no mundo ou com produtos que não funcionam direito”, conta Paulo, o CEO da companhia.
Sem familiares ou amigos próximos cadeirantes, ele afirma que teve o “estalo” da possibilidade de empreender quando terminou seu pós-doutorado na Unicamp e foi para a Suécia, em 2015. Lá, sua missão era desenvolver um sistema de análise facial para pilotos de caça que buscava identificar para onde eles olhavam durante uma missão de voo.
“Vimos uma menina numa cadeira de rodas sendo levada pelo pai no aeroporto. Ela não mexia pernas e mãos, mas tinha um sorriso incrível. Se comunicava com o pai muito bem apenas com as expressões”, conta, e prossegue: “Naquele mesmo momento pensei que tínhamos a tecnologia de análise facial para aviões de caça, mas que ela poderia ser muito bem adaptada para ler o sorriso daquela menina”.
O passo seguinte foi a arte complexa da transformação de uma ideia em realidade. Nas entrevistas, eles perceberam que era muito difícil fazer os investidores e futuros usuários acreditarem que a sacada da startup funcionaria. Isso porque usar expressões faciais para controlar objetos exige um nível de precisão do algoritmo de computador “fora do normal”, segundo Paulo.
COMO FOI DESENVOLVER O PRODUTO JUNTO COM OS USUÁRIOS
Um dos caminhos para vencer essa resistência foi moldar o produto com os desejos dos usuários. Inicialmente, por exemplo, foi pensado o uso de comandos por voz. “Para nós seria muito mais simples, pois essa tecnologia já é muito avançada. Mas o comando de voz não tem uma aceitação grande por essas pessoas. É chato ter que falar em local público, rodeada de outras pessoas, por exemplo. Já uma expressão facial não interfere no ambiente”, conta o empreendedor.
Com essa decisão, também a partir de entrevistas, foram escolhidas quais expressões faciais seriam lidas pelo sistema. Foram selecionados 12 tipos para serem analisados pelo programa, pensado para ser usado por quem está em uma cadeira de rodas e podem ser associadas a comandos como ir para frente e para trás, esquerda e direita e parar.
“O sistema já vem configurado o beijo para ir para frente, o sorriso para parar, levantar de sobrancelhas para ir para a esquerda, meio sorriso para a direita e língua para fora ir para trás. Mas isso pode ser ajustado com um aplicativo”, afirma Paulo. As doze expressões faciais reconhecíveis também podem ser usadas para controlar a velocidade da cadeira, sua direção e acender ou apagar suas luzes.
DESENVOLVER NO BRASIL, VENDER NOS EUA
Depois das entrevistas e testes tecnológicos o projeto foi apresentado para a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), que com os recursos do PIPE (Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas) forneceu o capital inicial de cerca de 30 mil dólares (cerca de 95 mil reais) em maio de 2016. Após mais alguns meses de entrevistas com usuários e desenvolvimento tecnológico, a HooBox foi cuidar também de seu plano de negócios e operação. Para isso, se candidataram e foram aceitos na Startup Farm em abril.
Como estratégia de crescimento, Paulo decidiu atuar em duas frentes: Brasil e EUA. Ele fala do que o motivou nesse sentido:
“No mercado dos Estados Unidos temos mapeadas mais de 600 mil pessoas em cadeiras de rodas motorizadas que não movem as pernas e os braços. No Brasil, são 140 mil”
O plano está em andamento e, em dezembro deste ano, eles também serão incubados pela Johnson & Johnson em Houston, no Texas. Paralelo a isso, começaram divulgação nos centros de veteranos de guerra da Califórnia. “Em nossa aceleração no Brasil fizemos um plano de como entrar no mercado americano e surgiu a ideia dos veteranos de guerra. São pessoas altamente influenciadoras em sua comunidade e com um perfil forte de defesa de seus direitos”, conta Paulo.
Além da renda per capita ser maior nos EUA, no país as pessoas com mobilidade reduzida também conseguem receber um reembolso pelo seguro de saúde em compras como da tecnologia da HooBox, algo que não existe no Brasil. A ideia é que dez kits fiquem à disposição dos norte-americanos, veteranos de combates no Afeganistão e Iraque — e que eles contarão suas experiências de uso em redes sociais e blogs.
Consequência dessa estratégia, a HooBox atuará como empresa em solo americano, com documentação aberta no Estado de Delaware. “Aqui no Brasil vai ficar a parte da propriedade intelectual e a equipe de desenvolvedores. Lá fora, o operacional, comigo e o Cláudio. A intenção é administrar os dois mercados”, diz o empreendedor.
UMA IDEIA, DOIS PRODUTOS
O plano de vendas da HooBox foi estruturado em dois produtos. O Wheelie é o programa de computador que traduz as expressões faciais, como um beijo e um sorriso, em comandos para controlar uma cadeira de rodas. O outro é o SADIA, um software de reconhecimento facial para leitos de UTI capaz de detectar 10 níveis de dor e níveis de agitação e cansaço do paciente. O usuário do SADIA consegue, ainda, chamar seu enfermeiro, controlar a inclinação da cama e a cortina do quarto apenas usando expressões faciais. O preço para usuário final é de 450 dólares, ou R$ 1.400 reais.
No momento, a startup já tem 28 clientes do Wheelie (21 deles estão nos EUA e apenas sete no Brasil). O kit HooBox consiste em uma câmera, um computador de bordo com a última versão do software instalada e uma “garra” que controla o joystick da cadeira de rodas motorizada, caso possa também ser usado. A mensalidade de uso do kit custa 200 dólares (632 reais), e aqui vale ressaltar um detalhe interessante: a cada três kits vendidos nos EUA, os sócios irão vender um kit a preço de custo no mercado brasileiro.
Por sua vez, o SADIA é um produto pensado para ser adquirido por hospitais e casas de assistência médica, mas Paulo teve uma surpresa. De saída, seus dois primeiros clientes foram pessoas físicas: um idoso e uma criança especial.
“Como o SADIA monitora as horas de sono, posições da pessoa no leito, expressões e situações de risco, como desmaios e espasmos, ele também pode ter uso residencial”, diz Paulo. Ele conta que o software está em fase de implantação no Hospital Municipal Vila Santa Catarina, na capital paulista, que é gerenciado pelo Hospital Albert Einstein.
Com esses produtos bem formatado, Paulo e Claudio conseguiram um investidor, ligado a um grande hospital paulistano, que prefere não ter seu nome divulgado nem o valor do aporte. A previsão de faturamento da startup para 2017 é de 100 mil dólares (315 mil reais). Para 2018, os sócios projetam 650 mil dólares, ou 2 milhões de reais.
O sistema da HooBox foi desenvolvido também para se adaptar ao usuário, ou seja, aos diferentes níveis de expressão dos 40 músculos da face. Paulo fala das dificuldades inerentes à complexidade dos fatores com os quais está lidando. Um sorriso, por exemplo, varia de intensidade nas pessoas, por diversos motivos.
“Para tornar um produto desse escalável, ou seja, colocar no site alguém de qualquer lugar no mundo comprar, e funcionar com o sorriso dele, a gente tinha que criar um novo modelo de detecção de expressão facial”, diz. A ideia era não depender de vários dias de testes do usuário para começar a responder corretamente. A saída foi ajustar o sistema para que conseguisse decifrar uma mesma expressão da pessoa, seja ela feita de modo expansivo ou tímido. O empreendedor conta que o grau de eficiência do sistema melhora após os primeiros usos: “Se você sorrir 100 vezes a cadeira vai entender 95 das vezes. E chega a 100% depois de alguns dias”.
O IMENSURÁVEL VALOR DA AUTONOMIA
É interessante perceber que estamos falando de uma startup mas, por atuar em uma área tão sensível como a médica, ainda mais lidando com pacientes em condições tão específicas, o retorno não vem somente em forma de números. Paulo diz ter muitos relatos de pessoas que, pela primeira vez, conseguiram sair sozinhas de um ambiente incômodo, como uma sala muito clara, de perto do sol:
“Eles falam, ‘agora não sou mais levado por uma pessoa’. Ao comandar ações e poder dizer, ‘vem aqui até a sala que quero mostrar uma coisa’, elas ganham autoestima”
Ele diz que também há um grande impacto, que extrapola o usuário. “Os familiares e cuidadores ao redor também se sentem mais à vontade. Com o Wheelie a pessoa, se quiser, pode ficar duas, três horas sozinha em casa sem necessariamente precisar de alguém.” Parece pouco. Mas é muito. E há um longo caminho pela frente, repleto de pequenas imensas conquistas.