por Marilia Barrichello
Outubro de 2014 foi o mês em que tomei duas decisões importantes na minha vida. A primeira foi decidir que, depois de três longos anos como head de planejamento e marca de uma agência, era hora de sair para me encontrar. E na busca por esse (re)encontro pessoal e profissional surgiu a segunda decisão: iria me aplicar para um curso executivo na Singularity University. A Singularity é hoje o reduto de tudo aquilo que vem sendo projetado, pensado e discutido sobre tecnologias e inovações disruptivas, capazes de fomentar mudanças exponenciais no mundo.
Nessa época, já sabia do renome e da vocação dessa universidade em inovações e tecnologias disruptivas que dão a tônica do Vale do Silício. Também sabia que algumas pessoas voltavam “meio loucas”. E ouvir isso, confesso, foi música para os meus ouvidos. Sempre duvidei de tudo o que é sério, metódico ou previsível demais. Afinal, não são os loucos aqueles que desafiam, inovam e, no fim, deixam um legado para o mundo?
Fiz a inscrição para a turma mais próxima sabendo que teria tempo suficiente para organizar a viagem e me preparar da forma que gostaria, falando com ex-alunos, ouvindo depoimentos e dicas para aproveitar ao máximo a experiência e também pesquisando mais sobre os professores e bibliografia.
De imediato, ficou claro que eu seria exposta a conteúdos e áreas extremamente novas para mim, que tive toda a trajetória focada nas humanidades. Todo a estrutura do curso está organizada em seis grandes blocos: biotecnologia e bioinformática, inteligência artificial e robótica, energia e sistemas ambientais, medicina e neurociência, rede e sistemas de computação e nanotecnologia. Ao mesmo tempo, tive a percepção de que o conhecimento que eu acumulava sobre comportamento humano me ajudaria a adequar as lentes para entender melhor esse binômio poderoso: homem e tecnologia.
Quando recebi, duas semanas antes do curso, a agenda das aulas e seus temas, o nome e especialização dos professores e alunos participantes e suas biografias estava explícito na agenda o ritmo intenso, de quase 12 horas de aulas, palestras, conferências e debates ao longo de uma semana non-stop. Percebi que eu era uma privilegiada e decidi que faria todo o possível para sorver a cada instante. Mergulharia de cabeça na experiência sem medos e bloqueios.
Eu sabia que, mais que um diálogo com gente diferente do mundo tudo, teria um embate com minhas angústias e frustrações
Junto com a animação pelo novo, veio a constatação: “Estou em risco. Este meu eu pode estar em processo de vencimento. Será que sou o que serei? Que parte minha eu encontraria? Iria refazer, reinventar, revolucionar o que em mim? E no trabalho? Na relação com os outros? Minha forma de ver o mundo externo também mudaria?”
Quando, após reconhecer a vizinhança famosa: Google, Airbnb, Facebook, Instagram entrei nos portões da NASA, sede da Singularity, o táxi foi recebido por um guarda protocolar. Minhas mãos estavam frias como as de uma criança começando numa escola nova depois das férias e meu coração batia forte e acelerado, como a me dizer pode voar, estou aqui, estou aqui. 4, 3, 2, 1… 0
Ground control to Major Tom, estou prestes a ser lançada para o futuro!
O FUTURO DO HUMANO NO MUNDO DAS MÁQUINAS DE PENSAR
“Quais são os seus medos e expectativas com relação ao futuro?” Esta foi a primeira pergunta de uma série de outras ainda mais instigantes e perturbadoras que ao longo de seis dias intensos, por vezes intermináveis, em que mergulhamos no futuro das tecnologias e da nossa própria humanidade.
Diante de um grupo heterogêneo com mais de 30 nacionalidades, marcas de peso como Ikea, Google e Microsoft com áreas de trabalho e experiências variadas. As respostas a essa primeira pergunta (expectativas e medos) foram um retrato da experiência social e cultural e cada participante. De cara, me mostraram que o futuro são vários, à medida que sua projeção depende de premissas particulares. Os escandinavos, por exemplo, concordavam que o grande medo estaria representado por um grande vírus do Vale do Silício, capaz de corromper toda a base de dados do mundo. A esperança, por sua vez, se materializava em um mundo regido pela economia circular, marcada pelo reúso e a reciclagem de todos os recursos.
Já eu e o colega mexicano defendíamos como esperança um futuro capaz de equalizar as grandes disparidades entre as pessoas e tínhamos como medo o receio de a tecnologia criar novos grupos de poder e aumentar as distâncias sociais e culturais entre as pessoas.
Este exercício me provocou para a questão da falta de uma visão compartilhada sobre o futuro que queremos como coletivo e sobre como cuidar para que este futuro, que vai chegar em velocidades diferentes, possa ir sendo moldado e refraseado à medida que se tornar presente.
UM NOVO BIG BANG À VISTA
Conforme íamos sendo apresentados e confrontados com o que há de mais novo em robótica, biotecnologia e inteligência artificial, pareceu claro que a tecnologia está evoluindo mais rápido que nossa capacidade de refletir sobre seus impactos e consequências além do uso em si. É previsto que 35 bilhões de pessoas vão estar online nos próximos 100 anos (lembrando que hoje somos apenas 9 bilhões). Vai haver um Big Bang de inovação sem limites ou precedentes, pois não estaremos limitados ao tamanho do nosso cérebro, pois haverá um neocortex artificial, muito mais eficiente e poderoso.
A questão está centrada não somente no “o que” as tecnologias podem oferecer para melhorar nossa vida e nosso mundo, mas no “como”
E justamente nesse ponto de encontro entre o homem e a tecnologia, o quente e o frio, é que estarão localizados os grandes avanços, que por ora parecem milagres, mas também as grandes questões éticas de uma nova relação homem-máquina.
Ao mergulhar no mundo de infinitas possibilidades da inteligência artificial e seus algoritmos, da robótica e toda sorte de apetrechos tecnológicos e sensores, vemos que homem e máquina iniciam um processo de fusão. Se pensarmos no fogo, provavelmente o primeiro instrumento tecnológico primitivo produzido pelo homem; e depois nas lanças, na roda, vemos que eram inovações externas ao humano. Os limites eram claros, ficava fácil perceber onde começava um e terminava outro.
Neste movimento de aproximação, vemos a automação do humano e a humanização das máquinas e, dessa forma, irrompe uma nova relação com escalas e poderes sem precedentes. Ao fazermos uso de pulseiras, sensores, aplicativos que cuidam da nossa saúde, de nosso bem estar, estamos trazendo a tecnologia de forma ergonômica e simples para nossa vida. De forma ainda mais camuflada, vemos a presença de chips cerebrais para controlar braços mecânicos, o implante de nanorobôs na corrente sanguínea para aumentar o poder das nossas mitocôndrias ou glóbulos brancos.
Já não importa mais onde começa um e termina o outro, mas sim, a forma com que essa relação pode mudar o mundo. Nessa fusão, que representa um esmaecimento geral de fronteiras, nasce uma luta por tudo que limita nosso potencial e nossa vida — e uma busca por desafiar para transcender.
1) Ir além dos códigos.
Transcender os limites de um corpo preso em si próprio, desafiar nosso próprio código genético e repará-lo para viver mais e melhor, utilizar próteses de órgãos, pele e partes do corpo via impressora 3D, expandir a medicina curativa para a preventiva capaz de entender cada genoma e prever remédios, respostas e tratamentos muito mais precisos e adequados.
2) Ir além dos recursos.
Transcender os limites dos recursos, tornando-os abundantes com o uso de tecnologias exponenciais que têm a chance de converter a escassez em um cenário de abundância. Drones capazes de semear milhares de plantações, geração de energia a partir de fontes orgânicas como algas, artefatos para captar energia eólica advinda de diferentes alturas para captar diferentes velocidades de vento. É chamado “moonshot thinking” a busca por tornar o impossível possível pela crença no espírito humano, na coragem e na convergência de tecnologias para alçar resultados surpreendentes.
3) Ir além além do tempo.
Transcender também o próprio tempo. Numa conversa especial com Ray Kurzell, fundador da Singularity, ele nos confessou que terá seu corpo congelado após sua morte e que, neste momento, está trabalhando para, via inteligência artificial fazer seu pai viver de novo. A partir de dados coletados, entrevistas, padrões mentais, fotos ele vai corporificar seu pai através de algoritmos somados à confecção de um holograma 3D. Quanto a ele, acredita que seu corpo congelado, poderá ser restaurado no futuro e ele poderá viver de novo.
As fronteiras mais tênues dessa relação nos confrontam com limites entre o que é ético e o que não é. O que é real e o que não é. O que é humano e o que é divino.
Na aula de biotecnologia, um dos participantes perguntou quando seríamos capazes de escolher bebês que estarão mais aptos a viver melhor e também características menos ligadas à manutenção da vida, tais como cor de olhos, cabelos, pele, estatura e também traços como a propensão a maior ou menor inteligência. A resposta foi enfática: isso já está acontecendo. Em algum lugar do mundo este futuro já chegou, mas ainda de uma forma escusa, pois este é um terreno ardiloso e cheio de dilemas éticos e morais. É o típico caso do homem brincando de deus.
À medida que homem (real) e robô (imaginado) se aproximam, os mundos real e ficcional também. Tanto que na Singularity a ficção, ou melhor, realidade imaginada é algo levado tão a sério que tivemos um workshop de sci-fi para exercitarmos o disbelief. A realidade é quase uma ficção quando se ouve sobre produção de leite “cow free”, ou seja, “livre de vaca” pois são produzidos a partir de células do animal, o resgate de espécies extintas a partir da biotecnologia, o crescimento exponencial dos microbiomas ou o de bactérias que povoam nosso corpo para gerar soluções como, por exemplo, uma bactéria que “come” o chulé.
Também vemos toda uma nova gama de robôs que através do deep learning e da inteligência artificial, buscam ampliar seus parâmetros racionais para um tipo de interação mais emocional e engajadora. Robôs de companhia, robôs cuidadores, robôs cirurgiões prestes a entrar na casa, no trabalho e na vida cotidiana das pessoas como em hotéis, restaurantes e supermercados. Eles estarão aptos a analisar códigos faciais e expressões para irem calibrando suas respostas e, assim, entrar numa esfera menos lógica e mais subjetiva — ou emocional.
QUANTO MAIS CONECTADOS, MAIS EXPOSTOS
Ao passo que o homem se funde à tecnologia graças a sensores, tecnologias vestíveis, chips implantados, aplicativos que o tornam um super homem, ou melhor, um super ciborgue, vemos também um ônus atrelado a tudo isso. Quanto mais conectados, mais expostos estamos. E quanto mais expostos, menos livres. Será este o preço que pagaremos? Vivendo numa sociedade altamente tecnológica e interligada, nos tornamos facilmente hackeáveis e monitorados.
Assim, a privacidade como a conhecíamos será algo sensivelmente alterado e, junto com sua perda, precisaremos ficar mais alertas para os crimes digitais. Com o uso de inteligência artificial somado à deep web (internet profunda), sequer monitorada pelo Google, podemos virar presas fáceis, acreditem, para roubo de partes do DNA para serem implantados em cenas de crime, matadores de aluguel online e a proliferação do CAAS (crime as a service) — alguns espelhos negativos dos bons exemplos do mundo real como o dark coin (em vez do Bitcoin).
Se a ferramenta (tecnologia) corre na velocidade da luz, parece que nossa capacidade evolutiva de autoaprimoramento, de alçar níveis mais profundos de consciência e inteligência emocional, tem um tempo de maturação mais lento. Ou seja, a tecnologia usada para um bom propósito é capaz de alavancar mudanças e transformações positivas, ao mesmo tempo em que essa mesma tecnologia pode causar danos irreparáveis. E se a ferramenta ficar maior que seu usuário? Se a criatura dominar o criador? Seremos homens e mulheres empoderados ou zumbis alienados?
Não basta acreditar na tecnologia. Temos que acreditar na capacidade humana de fazer o melhor uso da tecnologia não em prol de poucos, mas de muitos. Esta é a visão otimista coletiva da Singularity.
Frente aos milagres exponenciais da tecnologia utilizada para o bem, em larga escala para melhorar o mundo, a fome, a educação, a saúde e a vida humana, sobraram exemplos e fatos inegáveis. Resta saber se nessa relação estaremos aptos para entender e externar o melhor lado de nós, seres humanos. O que realmente faz de nós humanos, humanos. Criatividade, tolerância, sabedoria, estética, consciência plena, empatia.
O QUE FICOU?
Quando entrei no dormitório da NASA, abri todas as gavetas dos móveis de madeira esperando achar algo, um bilhete, um vestígio, um resto de uma experiência me indicasse um pouco de histórias passadas de pessoas que estiveram por lá, em outro tempo, no mesmo local. Nada. Fiquei imaginando quantas pessoas deveriam ter passado por aquela acomodação antes de mim, quem eram e como seriam.
No último dia, ao fazer aquela última varredura para filmar a experiência na memória e repassar se nada fora esquecido, vi um pedaço de adesivo colocado ao lado do criado-mudo. Cheguei mais perto e vi que era um coração. Rasgado pela metade.
Ao ver aquilo, foi meu coração que bateu mais forte. Alguém lá sofreu por amor? Teve saudades? Um amor platônico? Quem rasgou o outro pedaço? Sim, aquele quarto simples e racionalizado tinha uma história humana escondida. Ela pulsava no símbolo vermelho e universal: um coração. Um lembrete incondicional da nossa própria humanidade.
Marilia Barrichello Naigeborin, 37, é publicitária e mestra em Comunicação e Sociologia. Apaixonada pelo valor qualitativo do tempo, tema da sua dissertação, estudou com Domenico de Masi na Itália. Atualmente trabalha como consultora.
Criado no interior gaúcho, Alsones Balestrin fez do seu doutorado na França um trampolim para voos mais altos. Foi secretário de Inovação, Ciência e Tecnologia do RS e hoje capacita empreendedores por meio da edtech Startup Academy.
A falência do pai marcou a infância e mudou a vida de Edu Paraske. Ele conta os perrengues que superou até decolar na carreira – e por que largou a estabilidade corporativa para empreender uma consultoria e uma startup de educação.
Dá para planejar uma carreira de sucesso a longo prazo? Não, afirma Jorge Ramos. Ele conta como soube recalcular a rota ao longo do caminho e hoje aplica sua experiência (incluindo 35 anos de Embraer) na condução de uma startup, a Idea Maker.