“Por meio do surfe, faço a vida melhor para mim e para o outro”

Jaqueline Gutierres - 10 jun 2016
Cisco Araña: "Ver uma pessoa deslizar a onda e sair com aquele baita sorriso é o que acredito ser humanidade”
Jaqueline Gutierres - 10 jun 2016
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“Espírito Aloha”. A filosofia que deriva do cumprimento afetivo, em dialeto havaiano, valoriza a aceitação, a gratidão e a positividade. É ela que Cisco Araña usa para guiar sua vida. O surfista de 59 anos tem fala calma, permeada por gírias e mensagens de união e serenidade. Frutos, segundo ele, que a relação com o mar lhe rendeu. “Eu tenho certeza que alguma coisa muito forte me levou ao surfe. Com ele, consigo ser uma pessoa melhor. Sou melhor pai, marido e homem.”

Nascido em Santos, no litoral paulista, Francisco Alfredo Alegre Araña – ou simplesmente Cisco – teve contato muito cedo com o oceano e o surfe, e os manteve sempre em sua vida. Pioneiro do esporte no eixo Rio-São Paulo, subiu ao pódio em praias pelo Brasil e pelo planeta afora, da Califórnia à Indonésia. Mas sempre teve Santos como seu porto seguro. A primeira onda foi surfada, aos 9 anos, a duas quadras de casa, no Posto 2. Treinou naquelas águas para sua competição de estreia, no Guarujá. “Eu tinha 13 anos, uns amigos me inscreveram, nós fomos até lá a pé. E eu ganhei.”

Naquele início dos anos 1970, o surfe era muito estigmatizado. “Era época da ditadura militar. Quebravam as pranchas na nossa frente, paravam nossos carros o tempo todo… Só porque éramos jovens e cabeludos.” Cisco insistiu no esporte e ainda abriu uma fábrica de pranchas e acessórios. Mas a ideia de viver do surfe parecia improvável. Considerou ser médico, ortodontista e piloto de helicóptero. Por fim, foi cursar educação física na Unimes (Universidade Metropolitana de Santos), onde formou-se em 1982. Antes, no primeiro ano de faculdade, fez sua estreia como professor dando aulas de natação.

Escola Radical

A aproximação com o meio acadêmico o ajudou a vencer barreiras e a desbravar a cena do surfe. “Venci campeonatos colegiais e universitários, me formei… Foram conquistas importantes porque deram a conotação de que surfistas também estudavam. Isso quebrava o rótulo de marginal.” Assim, ele pôde colocar de pé um grande projeto: a Escola Radical, primeira escola pública de surfe do país. No início, a ideia era oferecer outros esportes de aventura, mas a procura pelo surfe foi tão intensa que o foco mudou. Cisco estima que desde a inauguração, em 1992, tenham passado por lá mais de 30 mil alunos.

A escola, na praia da Pompeia, é mantida pela prefeitura de Santos. No seu quinto ano de existência, uma sequência de fatos acabou criando um divisor de águas na carreira e na vida de Cisco. Ao ser chamado para ensinar um grupo de crianças surdas a pegar onda, ele ganhou visibilidade na mídia local, sendo procurado por Valdemir Pereira Corrêa (Val), um deficiente visual decidido a surfar. As aulas para surdos haviam sido um desafio fácil para Cisco, que foi treinado por um mestre com deficiência auditiva, Carlos Mudinho. A cegueira, porém, era um grande obstáculo.

Val perdera a visão alguns anos antes, por conta de um erro médico durante uma cirurgia de glaucoma. Para ajudá-lo, Cisco embarcou na missão de elaborar uma prancha especial, adaptada para pessoas com deficiência visual. “Comecei a tentar entender o mundo dele. Precisava de uma experiência particular para poder criar.” Foram dez anos para viabilizar o projeto da prancha, que o próprio Cisco desenhou, com frisos em alto relevo, guizos sinalizadores e bordas revestidas. O resultado compensou a espera: Val apareceu em um programa de TV nacional. “Foram 90 milhões de pessoas assistindo ele surfar!”

A partir daí, apareceram alunos com outras patologias. E as pranchas adaptadas alcançaram um novo patamar: instrumento multifuncional. Com revestimentos móveis de espuma, Cisco e os professores da Escola Radical alteram as pranchas conforme a necessidade de cada aluno, desde crianças com paralisia cerebral a idosos com limitações naturais da idade. “O primeiro idoso foi o Euclides, que se matriculou aos 74 anos. Pensei: ele vai morrer na minha mão.” Ao contrário: Euclides Camargo abriu espaço para que a terceira idade se tornasse um dos grandes grupos de alunos. “Eles dão um show!”

Cisco já implementou projetos inclusivos na Espanha e no Uruguai. Agora, está à frente de outra iniciativa em Santos: a criação de uma nova escola pública de surfe, destinada apenas para pessoas com deficiência. “Meus troféus não valem nada perto do que a gente poder fazer por essas pessoas. Por meio do surfe, consigo fazer a vida melhor para mim e para o outro.” O talento e a vontade de ajudar aqueles que precisam alçaram o surfista engajado a personagem-título de um documentário. Dirigido por Robinson Patrício, Cisco Araña – Longboard Bossa Nova foi lançado de abril de 2016.

Dezoito pranchas

Em 1999, Cisco levou o surfe para o curso de educação física da Universidade Santa Cecília com a disciplina de esportes radicais. A disciplina vingou e modalidades como surfe e stand up paddle seguem no currículo da faculdade. Ele, porém, desistiu do ambiente acadêmico. “Eu me afastei porque sou prático e a universidade é teórica.” Completo mesmo, Cisco só se vê no mar. Tenta mergulhar todos os dias; quando a rotina não permite, pelo menos molha o rosto na água salgada. “Ver uma pessoa deslizar a onda e sair com aquele baita sorriso é o que acredito ser humanidade.”

O surfista divide seu tempo entre a Escola Radical, o projeto da nova escola de surfe, sua escolinha particular (Cisco Araña Surf School) sua vida com a mulher, Paula, e a filha, Nicole. Quando ela nasceu, em um dia 18 de abril, Cisco tinha parado de competir, mas fez a promessa de voltar ao circuito, com 18 pranchas diferentes. O resultado foi a conquista de dois vices e 16 campeonatos, inclusive o título brasileiro e o inédito Super Master de Longboard de 2009. As pranchas estão guardadas em casa, para Nicole, que aos 9 anos já surfa. ”Eu não forço, mas quero que ela veja que o mar é algo bom.”

 

 

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