Amor. É isso o que Kuki Bailly tem para oferecer ao mundo. Isso desde a escola, onde alguns colegas a chamavam de otária só porque ela gostava de ajudar os outros. Aquela menina ainda passaria pelo mundo corporativo e por agências de publicidade, antes de criar um grupo no Facebook que, em pouco mais de um ano, conseguiu reunir mais de 47 mil pessoas (e contando…!) em torno de um único propósito: escutar e ajudar o outro. Agora, seu desafio não é pequeno: transformar esta rede em um negócio social.
Kuki costuma contar que o dots nasceu depois de ela ter sido demitida da área de inovação da Natura. Lá, ela tocava um projeto que, menos de um ano depois da sua contratação, foi descontinuado. À sua demissão seguiu-se também a de tantos outros amigos e conhecidos durante a crise. Um dia, ela fez um post em que propunha que todo mundo abrisse a agenda e se ajudasse:
“Nunca um post meu teve tantos comentários. Ali, tive a ideia do grupo que começou com os amigos que responderam à minha provocação e com os amigos dos amigos”
O impulso da demissão, porém, só é parte da verdade. Isso porque o dots é muito anterior à sua data de fundação (julho de 2015). Ele existe desde sempre dentro de Kuki, que não aguentou ficar muito tempo naquela escola onde tiravam sarro dela. Para a mãe chinesa e o pai francês, foi uma escolha natural colocar a filha numa escola internacional. Como a avó queria que ela aprendesse inglês, Kuki então foi para uma escola americana, onde havia gente de todos os cantos do mundo. “Ali eu me encontrei. Adorei aquilo. Fiquei muito feliz de conhecer tantas culturas e tantas maneiras de pensar”, conta.
Um dia, uma menina coreana contou para Kuki porque as crianças daquela escola faziam tantas perguntas e gostavam tanto de socializar. Ela disse: “É que a gente tem pouco tempo, daqui a pouco todo mundo volta para o seu país”. Kuki nunca mais se esqueceu daquilo.
Com 10 anos, percebeu que o que realmente importava era prestar atenção nas pessoas. “Aquelas crianças tinham que refazer as suas amizades o tempo todo para poder brincar, se divertir, fazer parte. Elas tinham que olhar para o outro, senão elas ficavam sozinhas”, conta ela, que levou esse ensinamento para a vida. Kuki fez faculdade de artes gráficas e pós-graduação em artes aplicadas em Paris, onde morou por 10 anos. Lá, estabeleceu relações que cultiva até hoje. Quando morou quatro anos em Shangai, na China, o mesmo se deu, e ela e fez muito networking:
“Descobri que tinha esse dom de criar e cultivar relações. Vejo o potencial de alguém e sei de outro alguém que precisa daquilo. Acabei ganhando uma reputação de ‘conectora’”
Ela prossegue: “Às vezes, recebo e-mail de Paris pedindo indicação de um diretor de criação para trabalhar em Singapura. E eu sempre fiz isso, desde pequena, quando me chamavam de otária, e continuo fazendo hoje”.
Depois do mestrado em Paris, Kuki ficou oito anos em São Paulo. “Tive saudades. Cansei um pouco porque os europeus têm uma coisa meio pesada. Queria um pouco de leveza. Eu ainda era muito nova, tinha 28 anos e queria praia, sol, meus amigos, minha família”, conta. Por aqui, ela passou por grandes agências de publicidade como Africa e Young & Rubicam.
Em seguida, partiu para uma temporada na China. Ela foi a Shangai, foi sozinha. Das três irmãs, ela foi a primeira a voltar ao país de origem de sua mãe (que saiu de lá em 1949, morou até 1951 Hong Kong e então veio ao Brasil, onde conheceu o pai de Kuki). “Fui lá para trabalhar e foi incrível porque era aquela metade de mim, dos costumes de casa”, conta Kuki. “Fiz muito networking, lá essa é uma palavra mágica. Acabei montando uma empresa, ficando sócia de uma chinesa, tendo uma loja, distribuí, exportei…fiz um monte de coisas. Até saí na televisão, dei entrevista para uma revista japonesa. Foi uma aventura.”
DE VOLTA AO BRASIL, NOVOS TEMPOS
Em 2009, Kuki voltou para o Brasil, grávida da sua única filha, Jasmin, e foi trabalhar na Alpargatas. Cuidou da área de inovação das Havaianas por três anos. Para ela, deixar as agências e ir para dentro do cliente foi uma grande mudança em sua carreira. O movimento nasceu de uma crise que ela teve depois de engravidar. “Mudei a minha forma de trabalhar. Comecei a trabalhar com inovação, com produto, coisas que eu fazia na China”, conta.
“Passei por um processo de coaching que foi fundamental e me fez questionar quem sou, o que quero, qual é meu blue print, qual é minha alma”. Ela diz que agência não é o seu lugar: “Lá, os os valores são superficiais, você é uma peça num motor e quando não precisam mais de você te jogam fora. Aquilo me agredia”.
Sua crise — e transformação — não terminava ali. Depois que saiu da Alpargatas, foi trabalhar em uma ONG impulsionada pela vontade de fazer alguma coisa pelo planeta e pela sociedade. “Tudo isso resultaria no dots. Foi tudo um processo. O Steve Jobs fala que você acaba conectando os pontos ao contrário, de trás para frente. Quando vejo cada coisa que vivi, a minha natureza… faz muito sentido. Por isso o dots cresceu tanto, porque tem muito da minha alma lá, dos valores nos quais acredito”, diz, e segue:
“O ser humano tem o poder de transformar tudo com muito pouco. Não é o Estado. É você. A gente pode transformar tudo de uma forma muito simples: escutando o outro”
A descrição do grupo expressa isso: “O objetivo deste grupo é, antes de tudo, fazer o bem através da conexão de talentos para que as oportunidades de todos sejam multiplicadas. Aqui, você pode nos contar o que faz e do que precisa. Faremos o melhor pra te ajudar, te apresentar pessoas interessantes e o intuito não é guardar informações, mas compartilhá-las. O dots foi criado para melhorar a condição de vida de todos, seja gerando renda ou simplesmente dando uma força no que for necessário ou possível. Acreditamos na interdependência e na gentileza. Temos uma rede de relacionamentos que pode ser útil se for bem ativada. Para fazer parte desta comunidade você precisa ter mente e coração abertos e generosidade pra doar seu tempo, contatos e ideias”.
É economia colaborativa na veia, funcionando mesmo que o futuro ainda não esteja claro e não saibamos ao certo como ela vai ser na prática. O crescimento foi exponencial. Kuki tem uma tese para isso. Além de acreditar, no princípio de que essa é a essência do homem, pois é assim que ele é feliz, ela diz que a energia positiva é tão forte lá dentro porque é o que estava faltando para as pessoas acreditarem de novo no ser humano:
“O dots só nasceu porque o Brasil estava vivendo um momento muito difícil. Como a gente faz para amenizar esse sofrimento, já que não tem mais dinheiro, mais trabalho, que a sua autoestima foi para o chão? O que sobra? Sobra humanidade, sobra amor. Só amor. O propósito é muito forte”
Com o crescimento da rede, ela teve que começar a criar regras. Kuki se autodenomina uma “ditadora da paz”, pois não permite que haja agressão. Ela conta: “Comecei a ter voz mais ativa, a postar minha filosofia de vida e as pessoas empatizaram com aquilo. Resolvi que eu ia sempre manter a energia muito alta. Por isso, peço para as pessoas não polemizarem. Críticas devem ser enviadas inbox. As pessoas estão muito raivosas, estão tristes, frustradas. Qualquer tema que abra possibilidade de agressão é proibido”, diz.
Kuki é dessas pessoas que vale conhecer pessoalmente. Tem paixão, brilho nos olhos. Fala de maneira determinada e entusiasmada dos seus muitos e muitos planos. E também dos desafios: o mais imediato é transformar a rede em um negócio social.
A REDE FICOU GRANDE, O FACEBOOK FICOU PEQUENO
O primeiro passo dessa nova e recentíssima fase foi fazer um CNPJ. Agora, Kuki trabalha, com uma pequena equipe, para colocar no ar uma campanha de crowdfunding. O Facebook ficou pequeno e não oferece as ferramentas necessárias para fazer a rede se expandir.
Ela dimensiona o que precisa: “É uma rede afetiva, então, não posso tratar como uma rede qualquer. Ela tem aspectos muito humanos e, como qualquer corpo, é sensível. Não posso arrancá-la do Facebook de qualquer jeito. Como fazer essa migração?”. A resposta, ela já sabe.
Seu projeto inclui uma plataforma (um site dots), um aplicativo (para iOS e Android) e a remuneração da equipe, que até agora tem trabalhado de forma voluntária. A própria Kuki, desde a criação do grupo, dedica horas e mais horas de seu tempo útil cuidando da rede, que é mesmo como um ser vivo e, como tal, não pode ser abandonado. Para ganhar algum dinheiro, ela faz frilas e tem um acordo com o marido — que segura as pontas da casa por enquanto.
Agora, chegou a hora de mais uma transição, talvez a mais ousada de sua carreira de conectora. Kuki estima que para que todo o seu plano se concretize, precisará de 500 mil reais. A campanha deve entrar no ar nas próximas semanas, durará 60 dias e será do tipo flexível, ou seja, o dots vai ficar com o montante que for arrecadado nesse período (mesmo que não atinja o objetivo total). “Precisamos de 150 mil reais para fazer a plataforma e manter a equipe por três meses. Esse é o mínimo. O que vier além, é lucro”, diz ela, que tem dividido o trabalho de moderação do grupo com mais três pessoas.
(atualização em 13/01/17: a campanha de crowdfunding do Dots está no ar no aqui no Kickante)
O DESAFIO DE MIGRAR E CRIAR UMA NOVA COMUNIDADE DIGITAL
Segundo Kuki, a nova ferramenta tem de ser muito bem desenhada porque a rede tem um jeito muito próprio de operar e isso precisa ser respeitado. A ideia é melhorar o ambiente digital para que as pessoas se conectem com mais facilidade. A participação na plataforma será gratuita, mas haverá mais funcionalidades para quem se dispuser a pagar uma assinatura mensal. “Será uma mistura de Tinder, LinkedIn, Facebook. Todo mundo vai ter uma página e um feed comum, mas vai ser mais fácil para quem produz e quem fornece se conectar”, diz. O aplicativo também ajudará as pessoas a se encontrarem fisicamente.
A possibilidade de conseguir um patrocínio existe, mas Kuki diz que não procura por um investidor-anjo por um temor: “Não quero que a rede seja canibalizada”. Ela afirma que doações serão aceitas a qualquer momento. “Quero fazer uma cooperativa de consumo. Vamos ter um catálogo de parceiros que vão apoiar o dots e que vão disponibilizar serviços e produtos para a rede. As comissões vão ser pequenas. Tudo o que for pensado será em benefício do coletivo”, conta.
Enquanto o financiamento coletivo não vem, Kuki tem mil projetos. Um deles é oferecer às pessoas que fazem parte do dots um plano de saúde básico e acessível. Para conseguir isso, ela foi até os Estados Unidos conversar com as seguradoras de lá, já que no Brasil não há mais possibilidade de contratar um plano como pessoa física.
Outro projeto é elaborar um catálogo virtual para exportação com os talentos do dots. A empresa especializada em logística, Zeit Trading, das empreendedoras e integrantes do grupo Carla Strafacci e Cintia Virginio, é uma das parceiras de Kuki para viabilizar a ideia.
Além disso, a rede promove encontros, bazares e eventos. E, um dia, Kuki sonha em ter uma Casa dots onde tudo isso possa acontecer com mais frequência. Ela quer que o grupo sirva de inspiração para as outras pessoas viverem, quer trazer mais gente, quer que a própria rede se potencialize com educação e que consiga promover cada vez mais eventos, workshops e aulas. Quer compartilhar expertise. Kuki continua sendo Kuki, e sabe o tamanho de seu sonho:
“Eu ficaria muito feliz se tudo que pensei acontecesse. Mas pode ser que não, pode ser que o dots seja só um grupo no Facebook. E tudo bem. Eu vou até o final. Esse é o projeto da minha vida”
Hoje, já existem mais de 10 grupos que surgiram a partir do dots: os secretos, os regionais e um voltado exclusivamente à filantropia. Cuidar de tudo isso ocupa praticamente 24 horas do dia de Kuki e traz para a sua vida uma contradição: ao moderar e incentivar tantas conexões no dots – são cerca de 400 pedidos diários de pessoas que querem entrar, fora as centenas de mensagens inbox – ela própria, a Kuki, fica meio desconectada dos seus, principalmente, da filha e do marido.
Kuki acorda cedo e dorme tarde. Checar o telefone é a primeira e última coisa que faz no seu dia. Além disso, seja durante o almoço, seja no Uber, toda hora é hora de se fazer presente na rede. “As pessoas falam que eu sou onipresente e sou mesmo. Só largo o celular quando meu marido e minha filha me mandam! É complexo. O custo pessoal é alto, mas não posso abrir mão. É muito importante”, diz. Como ela gosta de falar, o dots virou uma aldeia onde você resolve todos os seus problemas e as pessoas estendem a mão. E ninguém chama ninguém de otário.
Georgia Haddad Nicolau conta que, agora, a iniciativa tem sede própria, no centro de Santos, e busca diversificar suas fontes de financiamento para ampliar a atuação local e internacional.
Rafael Coimbra conta como largou a publicidade e foi para o mato produzir orgânicos com um diferencial: o sistema é colaborativo e os compradores fazem parte do propósito do negócio.