Transformar dificuldades em oportunidades para aprender e estimular outras pessoas parece ser a especialidade de Juliana Glasser, de 33 anos. Cofundadora da Carambola, empresa de softwares que fundou depois de sentir que o mundo corporativo não era seu lugar, ela é um exemplo de como o movimento maker muda realidades. Este, aliás, foi o tema do seu painel no Palco Ciência, na Campus Party ontem (quarta-feira, dia 1). Antes de subir ao palco, ela conversou longamente com o Draft na sede no Instituto de Engenharia, em São Paulo.
A associação autônoma de engenheiros, no bairro da Vila Mariana, abriga a Carambola, que oferece desenvolvimento de softwares com um diferencial: um terço dos funcionários são pessoas que têm pouca ou nenhuma experiência com programação. Ou seja, não são estagiários, nem estão estudando Ciência da Computação, mas querem usar tecnologia para resolver problemas que para eles são urgentes. No mesmo local (um antigo salão de festas do Instituto de Engenharia) funciona o Engenho Maker, considerado o maior makerspace do Brasil. Os dois negócios simbolizam a maior missão da empreendedora: passar adiante o que a tecnologia e o aprendizado de trabalhos manuais fizeram por ela.
Sentada em uma das dezenas de mesas que ela mesma soldou, Juliana conta que foi “daquelas crianças que gostavam de desmontar as coisas, para descobrir como funcionavam”. “Fiz um curso técnico de Eletrônica junto com o ensino médio. Depois de formada, senti uma dificuldade enorme de conseguir estágio na área, sendo mulher. Eu queria trabalhar em indústria, com equipamento, não queria fazer documentação”, diz. Na mesma época, ela se assumiu gay para os pais, que não aceitaram a sua orientação sexual e saíram de casa. “Eu brinco que eles foram inovadores, por que não me expulsaram de casa, eles que foram embora. A partir daí, tive que me sustentar. Fui trabalhar de garçonete, fiz iluminação para eventos e fiquei muito tempo como freelancer em bar.”
Ganhando 30 reais por noite, Juliana se viu num ciclo vicioso. Praticamente pagava para trabalhar, não tinha direitos garantidos, por ser informal, e não conseguia estudar. Foram sete anos assim, até que ela sofreu um acidente de trabalho – um produto químico caiu nos seus olhos – e um cliente assíduo do bar percebeu sua ausência. Era advogado, procurou Juliana e ambos entraram com um processo trabalhista contra o estabelecimento. Com a causa ganha e com a indenização de 10 mil reais, ela tomou coragem para voltar a estudar o que queria. A seguir, Juliana conta a seguir como voltar a se envolver com tecnologia desencadeou uma mudança na sua vida.
A programação transforma
A maioria dos meninos que tinham estudado comigo estavam entrando na faculdade, programando e ganhando 5 mil reais no primeiro emprego. Eu queria aprender a programar, então fui fazer um curso de TI no Senac, e lá havia um centro de inovação da Microsoft (onde estagiários da multinacional ofereciam cursos). Como gastei tudo o que tinha pagando o primeiro semestre da faculdade e fiquei sem luz em casa, chegava muito cedo na faculdade e só ia embora para dormir. Um dia, um dos diretores do centro de inovação me viu sentada na porta e me perguntou: “Se eu não te contratar você não vai sair daqui, né?”. Eu disse que não e ele me deixou entrar. Ali foi meu primeiro estágio, aí fui deslanchando. No segundo ano da faculdade, me inscrevi numa competição da Microsoft, a ImagineCup, que é como uma Copa do Mundo da Computação, com 300 mil inscritos. Meu projeto ficou em terceiro lugar.
Ganhar dinheiro não é suficiente
Em 2011, recebi uma proposta para trabalhar no Banco Votorantim, aí vi que minha vida estava melhorando. Até que um dia tive uma embolia pulmonar, fui para o hospital e fiquei mais de 20 dias sem trabalhar. Descobri que tinha uma doença autoimune, sem cura, que afetava meu pulmão. Fiquei meses afastada, de licença, fazendo tratamento e sem poder sair de casa. Foi aí que comecei a pensar em empreender, para voltar a trabalhar, mas como empresa de software. Acabei prestando consultoria para vários clientes, mas queria mesmo era causar impacto na vida de alguém. Então pensei em colocar um nome na minha empresa para o banco olhar e não ter vontade de me ligar. Coloquei Carambola (porque maçã já tinha, né?). Nascemos pequenininhos, na Plug (coworking de São Paulo) e crescemos rápido, porque tínhamos uma abordagem diferente, de simplificar problemas sem querer abraçar o mundo.
Como escalar pensando em ajudar o próximo
A tecnologia mudou a minha vida. Fui de garçonete a dona de uma empresa com 40 pessoas e pensava: “Como escalo isso e transformo a vida de outras Julianas por aí, na mesma situação?”. Eu queria capacitar pessoa que não teriam acesso à programação, mas caí na falácia de que eu precisava ajudar muitas pessoas, então a Carambola começou a ficar muito pesada, porque os projetos eram distribuídos em duplas (uma pessoa experiente e um aprendiz). Mudamos o método, deixando o aprendiz como terceiro elemento, depois que vimos que a conta não fechava.
Sem diversidade, as soluções não vão além dos nichos
De cara, enfrentamos dois problemas com a Carambola: como software é uma coisa muito intangível, é fácil sentir que você não está avançando muito, e isso frustra alguém que está começando. Além disso, o mercado de software é elitista. Quase toda linguagem é em inglês, a maioria são homens, brancos, heterossexuais e de classe média ou alta.
Enquanto não olharmos para a diversidade na indústria de software, a solução que vai surgir é o aplicativo de táxi mesmo
Os resultados aparecem a olho nu
Há dois anos, conheci o João Santiago, que tem paralisia cerebral, na Campus Party. Ele me mostrou o aplicativo dele, o Dá Pra Ir? (que mapeia locais com acessibilidade para cadeirantes) e na feira mesmo finalizamos a ferramenta. Desde então, ele se desenvolveu muito, mudou de Fortaleza para São Paulo para trabalhar comigo e está aqui até hoje. Já o Alhaji é um refugiado de Serra Leoa, que nunca tinha mexido num computador, e hoje programa na Carambola. Não tem como não ver a tecnologia como um catalisador, ou não querer fazer mais, pensando em situações com as deles.
Empreender não tem glamour
O empreendedorismo hoje é o equivalente à banda de rock da minha adolescência: todo mundo quer ter uma startup. Isso cria uma miopia, parece que todo mundo vai ser o Facebook. A pessoa funda a empresa já desesperada para conseguir um investidor. Aí, para justificar o investimento e a startup ter valor, você precisa ter escala. Então, o mercado de empreendedorismo está resolvendo muitos problemas de escala. Há esse glamour em torno da ideia, e esquecem da parte difícil, que é a execução.
Você entra em um coworking e todo mundo tem cartão de CEO. Isso atrapalha na hora de enxergar problemas reais
E não adianta apresentar um pitch lindo de um minuto se a pessoa não quer ouvir. Só vamos resolver problemas reais na hora em que entendermos que nem todo negócio é extremamente rentável, e paramos de pensar só na escala.
Ser maker dá liberdade
Eu não tinha dinheiro para fazer o que queria em muitas ocasiões, então ou eu aprendia ou não acontecia. Levei isso para a minha carreira na programação e comecei a idealizar um espaço maker com outros três sócios, para funcionar em paralelo com a Carambola. Hoje, o nosso trabalho é mostrar que ser maker tem valor e pode te dar liberdade. No Brasil, querer ser marceneiro ainda é feio, é “trabalho de peão”. Mas assim como se você não precisa fazer faculdade para ter uma empresa, talvez no futuro consiga construir muita coisa sem ter cursado engenharia. Tenho um filho de nove anos, o Gui, e consegui fazer um beliche para ele aqui no Engenho Maker. Não existe satisfação como esta.
Lixo é um conceito muito relativo. Entenda como a Metarecicla, negócio social baseado na periferia de São Paulo, promove educação e sustentabilidade transformando resíduos eletrônicos em kits de robótica de baixo custo.
A plataforma de gestão de inclusão e diversidade Carambola oferece bolsa para que negros, deficientes e pessoas trans passem por capacitação. Entre os clientes estão empresas como Itaú, Ambev, Microsoft e Ame.