Na noite da terça, dia 20, estreou na TV Bandeirantes o programa MasterChef Júnior. Valentina Schulz, 12, uma das participantes, se tornou imediatamente alvo de comentários pedófilos no Twitter. Finezas do tipo: “Essa com 14 anos vai ser aquelas secretárias de filme pornô”, “com 12 anos acho que já aguenta fazer um filme pornô”, “para entrar no programa teve que fazer uma suruba”, “quem nunca queria (sic) estuprar uma criança?”, “a culpa de pedofilia é dessa mulecada (sic) gostosa” e “se tiver consenso é pedofilia?”.
De cara, algumas coisas ficam claras nesses comentários – coisas com as quais nenhuma pessoa deveria ter que lidar, muito menos uma menina de 12 anos:
– A conexão entre beleza feminina, ou sucesso feminino, e prostituição. O caminho das mulheres, para conseguir alguma coisa, seria esse – alugar seu corpo, vender serviços sexuais, se trocar por dinheiro. Essa é o deal proposto para o mundo feminino, pária, pelo poder masculino, central – “para galgar degraus na vida você precisa me servir, e não se constranja em usar seu corpo para isso”.
(Em tempo: não tenho nada contra a prostituição em si. Desde que ela seja uma opção autônoma da pessoa e não represente uma imposição de gênero nem exploração nem falta de opção.)
– A misoginia. A mulher é um objeto de adoração, mas, sobretudo, de consumo extrativista para os homens – não raro, exercido com requintes de crueldade. A mulher como carne – a ser macerada. A mulher como banquete – a ser devorado, deglutido e expelido.
– A ideia de que o desejo de violentar crianças sexualmente é uma coisa corriqueira.
– A culpa pelo estupro é da vítima.
– A tese de que se todo mundo concordar com a curra, e topar entrar na curra, a curra deixa de ser curra. Se todo mundo concordar que pode, então pode.
No dia seguinte, quarta, 21, o Think Olga, projeto de empoderamento feminino liderado por Jules de Faria, lançou no Twitter a hashtag #primeiroassedio, convidando as mulheres a contar quando e como foram assediadas pela primeira vez. Uma semana depois, na segunda, 26, já havia 82 mil depoimentos em forma de tweets. Não só do primeiro assédio. E não só de mulheres. Um tabu viralizado – feito raríssimo, digno de muito aplauso.
Alguns desses depoimentos foram retratados numa matéria que o El País publicou na sexta, 23, sobre a campanha:
“O pior é a sensação de que a culpa é sua, de que vc foi a errada de existir ali”, “Churrasco com amigos da família. Tava de biquíni e tinha uns 10 anos e um cara disse q eu era lindinha e já dava pro gasto” e “tinha 9 anos estava com minha avó no centro de SP um homem sussurrou obscenidades no meu ouvido”.
A própria Jules abriu o movimento, que virou um dos temas mais populares do Twitter ao longo da semana, contando como foi assediada três vezes na infância e na adolescência.
Na quarta, 21, foi criado um grupo no Facebook, que chegou a ter mais de 200 likes antes de ser retirado do ar, autointitulado “Admiradores de Valentina Schulz”, que se apresentava assim: “Somos admiradores de Valentina Schulz, daremos uma resposta às balzacas feministas que tem (sic) inveja da garota, sem medo do Politicamente Correto Esquerdista”.
Um dos primeiros posts dessa comunidade expunha uma foto da menina com o seguinte texto: “Vocês já se perguntaram porque (sic) a ira das barangas em relação a essa formosura? Todos nós sonhamos em casar com uma mulher desse tipo, no tempo de nossos avós, elas se casavam com essa idade, virgem (sic), magra, pura, servindo e cuidando da casa, com o avanço da social-democracia, a mulher moderna ou modernete, influenciada pela (sic) esquerdismo/feminismo, adotam práticas como lesbianismo, drogas, dão pra 5 numa noite só, viram mães solteiras…” e por aí afora, numa verborragia grosseira que assusta pelo ultraconservadorismo de direita, e pelo fascismo de gênero, colocando os praticantes do assédio sexual contra Valentina como os defensores dos interesses da menina e as mulheres e homens que saíram em defesa de Valentina como seus agressores, numa inversão completa de posições.
Antes de qualquer coisa, vale visitar o sentido de alguns termos. Segundo a SaferNet, ONG que se dedica a defender e a promover os Direitos Humanos na Internet:
Pedofilia
Consta na Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID) como um transtorno de personalidade que se reflete na preferência sexual por crianças e adolescentes. O pedófilo não necessariamente pratica o ato de abusar sexualmente de meninos ou meninas. O Código Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), aqui no Brasil, não preveem redução de pena ou da gravidade do delito se for comprovado que o abusador sofre de pedofilia.
Violência Sexual
A violência sexual praticada contra crianças e adolescentes é uma violação dos direitos sexuais porque abusa ou explora o corpo e a sexualidade de garotas e garotos. Ela pode ocorrer de duas formas: Abuso Sexual e Exploração Sexual (turismo sexual, pornografia, tráfico e prostituição).
Abuso Sexual
Nem todo pedófilo é abusador, nem todo abusador é pedófilo. Abusador é quem comete a Violência Sexual, independentemente de qualquer transtorno de personalidade, se aproveitando da relação familiar (pais, padrastos, primos, etc.), de proximidade social (vizinhos, professores, religiosos etc.), ou da vantagem etária e econômica.
Exploração Sexual
É a forma de crime sexual contra crianças e adolescentes conseguido por meio de pagamento ou troca. A Exploração Sexual pode envolver, além do próprio agressor, o aliciador, intermediário que se beneficia comercialmente do abuso. A Exploração Sexual pode acontecer de quatro formas: em redes de prostituição, de tráfico de pessoas, pornografia e turismo sexual.
A Childhood Brasil, ONG que se dedica a combater a Violência Sexual contra crianças, também nos ajuda:
O Abuso Sexual pode acontecer dentro e fora do núcleo familiar, e pode se expressar de diversas maneiras. O Abuso Sexual pode acontecer com ou sem contato físico.
Abuso Sexual sem contato físico:
Assédio sexual
Caracteriza-se por propostas de relações sexuais por chantagem ou ameaça.
Abuso Sexual Verbal
Pode ser definido por conversas ou telefonemas sobre atividades sexuais, destinados a despertar o interesse da criança ou do adolescente ou a chocá-los.
Exibicionismo
É o ato de mostrar os órgãos genitais ou de se masturbar em frente a crianças ou adolescentes.
Voyeurismo
É o ato de observar fixamente atos ou órgãos sexuais de outras pessoas quando elas não desejam ser vistas.
Pornografia
É considerado Abuso Sexual quando uma pessoa mostra material pornográfico à criança ou ao adolescente.
Já o Abuso Sexual com contato físico corresponde a carícias nos órgãos genitais, tentativas de relações sexuais, masturbação, sexo oral, penetração vaginal e anal. Essas violações podem ser legalmente tipificadas em atentado violento ao pudor, corrupção de menores, sedução e estupro. Existe, contudo, uma compreensão mais ampla de abuso sexual com contato físico que inclui contatos “forçados”, como beijos e toques em outras zonas corporais erógenas.
Eis o que gostaria de dizer sobre tudo isso:
1. Na longa e claudicante régua que traz a humanidade da barbárie à civilização, uma regra lapidada ao longo dos anos nos diz que sexo não-consentido é estupro. E que o consentimento sexual só pode ser dado pelo próprio indivíduo, de modo livre e soberano, sem coerção de qualquer ordem. E que esse consentimento só pode ser admitido quando o indivíduo em questão for maior de idade e responsável por si. Ponto. O resto é Violência Sexual. E Violência Sexual é crime.
Partamos desse princípio: o sexo e a sedução pertencem a um jogo impossível de ser jogado por adultos com crianças e adolescentes. É errado. É inaceitável. Não pode, sob hipótese alguma. Fim de conversa.
2. Isso não significa que o desejo sexual não aconteça eventualmente entre crianças, adolescentes e adultos. A existência ocasional desse desejo, nas suas mais variadas formas e intensidades, não significa necessariamente, nem pode implicar, Violência Sexual. A sexualidade humana é um pântano em que chafurdamos ao nascer e do qual só nos livramos com a morte. E as crianças não estão externas a essa realidade. Mas uma coisa é se sentir atraído pela beleza alheia – onde quer que ela aflore – , outra coisa é tomar essa beleza à força. Ou então não considerar limites éticos, morais e legais na fruição dessa beleza. Sentir atração, por quem quer que seja, é uma coisa. Permitir que essa pulsão íntima se exteriorize como um crime, se consume num ato de violência, é outra, bem diferente.
3. A história humana é marcada pela violência – inclusive sexual. Mas isso não justifica nada. Nem deve impedir que nos mobilizemos contra a violência. A realidade nos mostra que ainda somos trogloditas nesse campo. A marcha humana em direção à civilização é a história do controle dos nossos desejos, da contenção das nossas pulsões. A barbárie é precisamente a hegemonia desses instintos sobre nossa capacidade de racionalizá-los, de mantê-los debaixo do nosso melhor juízo. Lembra da Grécia Clássica e da Roma Antiga, onde os meninos, os efebos, serviam aos homens mais velhos? Na trajetória da humanidade até aqui, passamos mais tempo convivendo com esse tipo de situação (e achando normal) do que sem ela. De modo geral, as crianças só ganharam direitos de cidadania equivalentes aos dos adultos no século 20. Por milênios, na selva da espécie humana, quem podia menos chorava mais. E as crianças, vistas como adultos incompletos, como seres menos importantes, e mais indefesos, podiam pouco e choraram muito.
Não esqueçamos que meninas até hoje, em dezenas de países, casam e têm sua noite de núpcias, às vezes com os hímens arrancados a frio, previamente, por suas sogras, com 9, 10 ou 11 anos. Nem que em famílias brasileiras, até hoje, papai e mamãe alugam a genitália de suas filhas de 12, 13 ou 14 anos, à beira de rodovias ou nas margens de rios ou no calçadão da orla.
4. Crianças também têm sexualidade. Uma sexualidade própria, específica, que precisa ser resguardada. Que precisa se desenvolver e desabrochar a seu próprio modo, no seu próprio tempo. Eros é uma alegria, não pode se tornar um fantasma. Sexo é bom, não pode virar uma mácula. A sedução é um jogo delicioso, não pode virar um trauma. Cada um no seu tempo. E nunca sem consentimento legítimo. E jamais antes de o individuo se tornar adulto, independente, responsável pelos seus próprios atos e decisões.
5. A pedofilia não é uma moléstia isolada, que acomete alguns monstros. Discordo da visão contida na Classificação Internacional de Doenças (CID), nesse aspecto. A pedofilia não é um transtorno que possa ser tratado apenas como uma doença pessoal. Estaremos nos enganando se pensarmos assim. Primeiro: não se trata de uma questão individual. (É mais cômodo para a gente imaginar que é, sim, um problema particular, e torpe, de alguns indivíduos abjetos – isso nos exime de reconhecer que esse é um traço desagradável, presente em nossa espécie, e que é um problema grandemente coletivo, que nos alcança também, em maior ou menor medida. Nada do que é humano pode ser estranho ao homem – ainda que nem tudo que é humano deva ser permitido.) Segundo: jamais erradicaremos a pedofilia. Trata-se de um instinto que teremos que manter sempre subjugado pela consciência, pelo senso de respeito ao outro, pelo reconhecimento dos direitos do próximo, pelo desejo de correção e de discernimento, pela firme determinação de não virar um predador, um criminoso, um agressor.
6. Os twitteiros que agrediram Valentina não são “tarados”, meramente. São gente como a gente – e isso é o mais assustador. Seria mais fácil se eles representassem monstruosidades isoladas que pudéssemos varrer de nossas vidas. Isso não é possível. No máximo, conseguimos varrer isso para debaixo do tapete. O documentário India’s Daughter, da cineasta israelense Leslee Udwin, que investiga o que levou um grupo de jovens indianos a estuprar coletivamente uma jovem estudante de medicina de 23 anos num ônibus, mostra bem isso. Os agressores não são facilmente encaixáveis no rótulo de facínoras ou degenerados. É gente que poderia ser seu colega na firma ou colega do seu filho na faculdade.
Eis aí o que é verdadeiramente aterrador sobre o assunto: o pai da amiguinha da sua filha na escola pode ser o cara que busca “novinha” ou “teen” (ou coisas ainda mais hediondas) ao procurar pornografia na internet.
A família de Valentina decidiu não processar os agressores. Eu acho que deveria fazê-lo. Esse tipo de coisa não pode ser tolerado, em nenhuma medida.
7. Pedofilia tem a ver com desejo sexual. E desejo sexual é algo que devemos guardar do jeito certo, no lugar certo, de modo a gerar prazer, para nós mesmos e para os outros. Quando a coisa descarrila, e nosso desejo passa a gerar sofrimento, a nós mesmos ou aos demais, é hora de buscar ajuda. Já Violência Sexual tem a ver com a disposição do corpo do outro, da integridade física e emocional do próximo, para a nossa satisfação unilateral. Trata-se de um exercício de poder. Do egoísmo em sua essência. Do não-reconhecimento do outro e dos seus direitos. Da perversão do gozo que surge, ou depende, da dor alheia. Da covardia do mais poderoso agindo sobre o mais frágil. Da ação de quem está numa posição de locupletação sobre quem está numa posição de vulnerabilidade. E como o outro não importa, a Violência Sexual pode vitimizar qualquer um – homens, mulheres, crianças, velhos, animais. É mais comum ser imposta pelos mais fortes – homens adultos – e ser sofrida pelos mais fracos – todas as outras categorias. A Violência Sexual é, antes que tudo, um ato de conquista bruta, de invasão hostil do território alheio, de imposição de uma individualidade sobre o outra, de humilhação alheia, de autoafirmação. Não é apenas um ato de misoginia – é um ato geral de misantropia.
8. A Violência Sexual, portanto, transcende a questão meramente sexual – ela é o paroxismo vil de uma visão torta sobre a vida, sobre o mundo, sobre as relações entre as pessoas e entre os gêneros. Os números da Violência Sexual no Brasil deixam claro o tamanho do problema.
Em 2014, o Disque 100 registrou 91 342 casos de violação dos direitos de crianças e de adolescentes no Brasil – 25% desses casos foram de Violência Sexual, o quarto tipo de violência mais comum contra menores, atrás de negligência, violência física e violência psicológica. Das denúncias de Violência Sexual, 75% são de Abuso Sexual e 25% são de Exploração Sexual. Essas denúncias estão longe de representar a totalidade dos casos que acontecem no país. Estima-se que apenas 35% dos crimes sexuais sejam notificados.
Em 2014, 47% das vítimas eram meninas, contra 38% de meninos (15% dos casos não tinham o gênero da vítima informado). Ou seja: a violência, inclusive a sexual, é um ato de agressão contra os mais vulneráveis – as mulheres estão contidas nesse grupo, mas não o esgotam.
Em 2014, o Brasil teve 47 646 estupros relatados. Em média, 85% dos casos de estupro são sofridos por mulheres. Por que a Violência Sexual na idade adulta é mais direcionada a mulheres do que na menoridade, quando ela aparece mais distribuída entre os gêneros? Ao se tornarem homens, os meninos reduzem a sua vulnerabilidade – e alguns infelizmente se tornam agressores. As meninas crescem, mas continuam no grupo mais fraco, mais afeito a sofrer abusos.
A covardia do mais forte diante do mais fraco também fica flagrante – e nauseante – quando se percebe que 34% dos menores vítimas de violência em 2014 tinham de 0 a 7 anos – e 14% delas tinham de 0 a 3 anos. Outros 40% tinham entre 8 e 14 anos. E 13% tinham entre 15 e 17.
Quanto mais indefesa a vítima, e quanto menor a resistência ao poder do agressor, e quanto mais disponível a situação para a violência, mais o abusador se sente à vontade para liberar suas pulsões e arrebentar com a vida de quem estiver mais à mão.
Para entendermos como é complicado pensar na violência contra menores como obra isolada de “monstros”, de agressores externos que possamos banir do nosso convívio e que possamos manter à distância segura de nossos filhos: 65% dos casos de violência contra menores foram perpetrados por familiares, e 72% dos casos a violência aconteceram dentro da casa da vítima.
9. Crianças também violentam crianças. Meninos e meninas mais velhos, em nome da sua curiosidade, e das suas pulsões, com as quais ainda não sabem lidar, ou com as quais já estão lidando muito mal, podem assediar e abusar de meninos e meninas mais novos. Isso acontece todo dia – no terreno baldio da periferia e no quarto do apartamento de classe média, no banheiro do colégio e na casa da árvore – e chega a representar 25% dos casos de agressão. Como lidar com isso? O que isso nos diz?
10. Há, sim, em curso, entre nós, uma cultura do estupro. Essa, sim, com forte matiz de gênero. Isso passa pela objetificação da mulher. E pela sexualização das meninas. Xuxa e suas congêneres deram grande contribuição a isso, nos anos 80 e 90. Mas o fenômeno é mais amplo do que loiras seminuas diante de um auditório cheio de crianças. Passa pelas roupas femininas, que são sexistas na sua concepção – por que mulheres mostram os ombros e o colo e as costas e a barriga e as pernas de forma muito mais explícita do que os homens? Isso passa também pela indústria cosmética, feita para as mulheres ficarem o mais atraentes que puderem, pelo maior tempo possível. Para quem aquelas roupas são desenhadas? Para quem essa obsessão pela beleza é insuflada? Para os homens. São as mulheres orbitando o poder masculino. Se vendo com olhos de homens. E assumindo para si, como obrigação e como normalidade, expectativas e pontos-de-vista comumente atribuídos aos homens sobre elas. Pode chamar isso de Falocracia. Ou de Machocentrismo. (Embora esse não seja o único jeito de uma cultura do estupro vigorar: em lugares onde as mulheres usam burca e não têm direito à maquiagem, a Violência Sexual também existe. E campeia. De novo: trata-se de uma questão de poder, de uma imposição de força de um indivíduo sobre uma condição de vulnerabilidade de outro indivíduo, antes mesmo de ser uma questão de gênero.)
Isto tudo posto, contribuo aqui com meu depoimento sobre o #primeiroassedio.
Primeira infância. Memórias difusas. Não confirmadas. E cuja confirmação eu nunca busquei. Um garoto alguns anos mais velho. Talvez entrando na puberdade. Um garoto disforme. Fealdade e repulsa são duas palavras que me vem à mente para descrevê-lo. Eu teria uns 3 ou 4. Penso ter sofrido algum tipo de bolinação. Da qual eu não lembro. Da qual eu não quero lembrar.
Início da adolescência. Doze ou 13 anos. Cidade do interior. Caminhava para o clube. Com a raquete de tênis na mão. Esporte que nunca consegui dominar. Meio da tarde, verão, férias, sol a pino. Flanava, com a cabeça nas nuvens – cabeça avoada, de adolescente, sonhando acordado. De repente, a mão do cara que cruzou comigo na calçada deserta da avenida me toca no pau. Bato com a raquete na mão do cara. Um velho de cabelos ensebados e pele enrugada, queimada de sol. Um tipo pobre. Ele me diz um elogio obsceno, do qual não lembro mais. Do qual não quero lembrar. Saio dali desconcertado. E enfurecido comigo mesmo pela distração, por ficar desprevenido, por ter me deixado invadir daquele jeito.
Ano seguinte. Catorze anos. Viagem de férias, outra cidade do interior. Eu e minha tia. Íamos à praia. Ônibus lotado. De pé no corredor. Um cara encosta em mim. Não há espaço, está apertado. E eu não desconfio do que o cara está fazendo. Até que uma hora eu desencosto, para sair do ônibus, e percebo que o filho da puta estava, digamos assim, gostando da situação.
Valentina: você não está sozinha.
Jules: você não é a única a ter sido assediada três vezes na infância e na adolescência.
Assédio, enfim, não é uma situação que oponha necessariamente homens e mulheres. Trata-se de uma arena em que presas se veem diante de predadores, em que violadores se sentem à vontade diante de suas vítimas.
Como se vê, assédio é uma covardia que pode vitimar até mesmo homens que mais tarde terão 1,94m, pesarão 102 Kg, e que adorariam poder cruzar de novo na vida, por dois minutinhos que fossem, a sós, com seus abusadores.
Não basta ser feminista, é preciso ser antimachista: como a minha filha abriu meus olhos para o horror cotidiano do assédio na vida de meninas e mulheres – e a persistência grotesca do machismo estrutural.
Tássia Hallais conta como e por que decidiu abordar o tema da violência sexual em um livro infantil, empregando uma linguagem lúdica e delicada para ajudar crianças a identificar abusos e a se proteger em situações de risco.