Tem açúcar, boa vizinhança e colaboração: como um site está resgatando o hábito de pedir emprestado

Letícia Diniz - 26 jan 2015Camila Carvalho, 25, idealizadora do Tem Açúcar?.
Camila Carvalho, 25, idealizadora do Tem Açúcar?.
Letícia Diniz - 26 jan 2015
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Compre, compre, compre, jogue fora, compre mais, mais, mais. Oferecer uma alternativa à lógica do consumo indiscriminado é o conceito central da Tem Açúcar?, uma plataforma que fomenta empréstimos e, de quebra, ainda resgata as boas relações entre vizinhos. Ao apostar em uma rede colaborativa de ajuda recíproca mútua, a startup oferece uma solução simples e sem custo para boa parte das necessidades do cotidiano – e, quem sabe, para alguns problemas graves do planeta.

O funcionamento é simples: o usuário faz o cadastro e usa a ferramenta de busca para procurar o que precisa – um vestido de festa, um liquidificador, uma barraca, o que for. O sistema pergunta aos vizinhos se alguém pode ajudar, e quando alguém se manifesta, o site coloca as duas pessoas em contato. A partir daí, a comunicação segue por conta dos envolvidos, que combinam as condições do empréstimo.

Idealizada pela estudante de comunicação carioca Camila Carvalho, 25, a startup ainda engatinha, mas já é um fenômeno de audiência, com cerca de 18 mil cadastros em 580 cidades no mês de estreia. A primeira parte do site (apenas para cadastramento de usuários) foi inaugurada em 10 de dezembro. Camila estimou que a equipe de programadores teria cerca de 3 semanas para concluir a ferramenta de busca. Durante esse período, ela imaginou que a plataforma engordaria e vários bairros iriam sendo ‘desbloqueados’ — o que acontece quando pelo menos 30 pessoas de uma mesma vizinhança fazem o cadastro. Para surpresa de Camila, no primeiro dia diversos bairros foram ‘desbloqueados’, o que enchei a jovem de orgulho:

“Vi que as pessoas realmente querem isso. Não é uma vontade só minha”

Até fevereiro o site deverá estar liberado para todos os usuários, mas, por hora, um grupo de cerca de 300 moradores dos bairros de Copacabana (Rio de Janeiro) e Icaraí (Niterói) está testando a plataforma. Dois dias depois do início dos testes, uma vizinha quebrou o galho de Camila: “Pedi um aspirador de pó pra fazer uma faxina no domingo e uma moça da minha rua respondeu e me emprestou. Fiquei muito feliz de ver que está funcionando”.

O sonho de conectar as pessoas da vizinhança e ao mesmo tempo contribuir para redução do consumo surgiu a partir de angústias de Camila. Ela trabalhou alguns anos como modelo, profissão que a levou para a Índia e China. Nesses países, entrou em contato com um nível de desigualdade social maior do que ela jamais conhecera.

“O lixo do mundo vai pra lá. Tudo que a gente não quer ver na sociedade ocidental, a gente empurra para outros países. Eu ia para feiras de rua na Índia e via roupas de marca, que eram caras no Brasil, vendidas por três reais. Não fazia sentido. Ali também começou a me tocar a questão do trabalho escravo relacionado ao consumo”, conta. À época com apenas 19 anos, Camila ainda não tinha nenhuma solução para seu crescente incômodo. De volta ao Brasil, foi estudar Design em Sustentabilidade no Gaia Education. Aí, a ideia de empreender começou a ganhar contorno.

Página inicial da plataforma, batizada com o costume antigo de pedir açúcar ao vizinho mais próximo.

Página inicial da Tem Açúcar, batizada com o costume antigo de pedir ajuda ao vizinho mais próximo.

Camila conheceu no curso alguns sites de troca que operavam nos EUA e na Europa, como o Peerby e o StreetBank, e começou a acreditar que uma versão brasileira poderia ser a sua contribuição para a mudança que ela deseja ver. Era hora de converter as boas intenções em trabalho: munida das ferramentas que o curso lhe apresentou, começou a analisar as plataformas estrangeiras e pensar as adaptações necessárias para emplacar a ideia por aqui.

Percebeu que havia diferenças culturais importantes. “Os sites de lá não se preocupavam muito com a questão da confiança e da segurança, mas pra fazer isso em países como o Brasil, isso seria imprescindível”, diz. Dessa análise surgiram alguns diferenciais do modelo brasileiro, como a possibilidade de os usuários se avaliarem quanto à pontualidade e cuidado com os itens emprestados, e também a vinculação com o perfil do Facebook (ainda em construção), o que permite saber quem são os amigos em comum.

QUE TAL SEGUIR NUM PROJETO MESMO SEM SABER SE GERARÁ RECEITA?

 A ideia de bancar o projeto com publicidade não é vista como a ideal, pois estimularia o consumo enquanto a Tem Açúcar quer fazer justamente o contrário. E aí? Camila, que investiu 15 mil reais do próprio bolso para a construção do site e espera — sim — lucrar com o projeto.

“Muita gente fica apavorada quando falo que essa parte financeira é uma coisa ainda experimental”

Ela sonha em bancar a Tem Açúcar com contribuições espontâneas dos próprios usuários, mas reafirma a necessidade de construir um modelo aos poucos, na medida em que o funcionamento da startup for se desenhando. “Ainda estamos definindo qual será o custo de manutenção, e precisamos entender como as pessoas vão usar o site, se será um uso mais frequente ou mais pontual. O comportamento dos usuários vai determinar a forma de monetizar o sistema. Sei que a forma que eu sonho em ganhar dinheiro com a Tem Açúcar é muito nova.”

Mas, se o modelo de negócios ainda não está definido, o norte não poderia estar mais claro. Assim como os usuários contam uns com os outros para se ajudarem, a plataforma vem dando certo em grande parte graças à ajuda de amigos e a sugestões dos próprios usuários. As relações humanas e a colaboração são o combustível ali.

Por isso, um dos próximos passos é manter a planilha de custos disponível no site, para que as pessoas conheçam o seu funcionamento e possam decidir se querem contribuir. Também há um canal de comunicação para que os usuários ajudem a construir a cara da Tem Açúcar. Camila se empolga quando fala das sugestões que tem recebido: “Uma moça deu a ideia de criarmos um espaço como se fosse um mural do bairro para compartilhar o preço dos supermercados, receitas entre vizinhos, lugares legais pra visitar… Achei genial, porque mostra que a Tem Açúcar pode ser mais do que só uma ferramenta pra ajudar as pessoas a compartilharem coisas, mas pode ser também um ponto de encontro”.

Engajamento ela já conseguiu. Gente disposta a participar, também. Dinheiro, ainda não. Ainda que o futuro do negócio seja incerto. A aposta da Tem Açúcar envolve uma transformação cultural. Camila sabe que isso não acontece da noite para o dia, mas sabe também que empreender é acreditar em uma boa ideia e bancar seus riscos. “Quero incentivar essa mudança de cultura”, diz. Quando 18 mil pessoas em menos de um mês também querem a mesma coisa, como não acreditar que o mundo pode ficar um tantinho mais doce?

draft card TEMACUCAR

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