Um advogado bem-sucedido troca o escritório pela docência – e questiona a mercantilização da educação

Salo de Carvalho - 23 mar 2015Salo de Carvalho: em universidades privadas, o discurso oficial é “os professores devem ser exigentes ao máximo, reprovando os alunos que não alcançam suficiência”, mas eis a verdade: “o aluno é o seu empregador e você deve tratá-lo desta forma”
Salo de Carvalho: em universidades privadas, o discurso oficial é “os professores devem ser exigentes ao máximo, reprovando os alunos que não alcançam suficiência”, mas eis a verdade: “o aluno é o seu empregador e você deve tratá-lo como tal”
Salo de Carvalho - 23 mar 2015
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Por Salo de Carvalho

Querido amigo Adriano,

Muito obrigado pelo convite a escrever “uma confissão, um texto dando a real, num papo reto, sem retoques, tipo divã a céu aberto” sobre a minha mudança de carreira (que é uma mudança de vida), no Draft.

Me identifiquei muito com algumas coisas que escreveste, em teu convite, em relação à decisão de mudar radicalmente o rumo das coisas aos 40 anos. Há quem deixe de se ouvir e recuse a si mesmo em processos de reavaliação de carreira e de vida nessa idade – que, contraditoriamente, é uma idade em que conquistamos o equilíbrio entre a maturidade e o vigor para alterar nossos planos de voo. Esse será um papo entre um jurista inquieto e um executivo sincero. Espero que faça sentido aos seus leitores.

Quando eu cursava a faculdade de Direito, simplesmente não conseguia me ver atuando em uma das profissões jurídicas – advogado, juiz, promotor. Era um estilo que simplesmente não me conquistava, não se harmonizava com o meu jeito meio hippie, meio punk, meio intelectual e bastante de esquerda, para citar a fabulosa crônica (e livro homônimo) do Antonio Prata. A ética e a estética das profissões jurídicas não me eram digeríveis.

No meio do curso me dei conta de que se havia algum espaço para mim no Direito seria o da docência, sobretudo no que diz respeito à pesquisa. Saí da faculdade direto para o mestrado e, depois, para o doutorado. Era o final dos anos 90 e eu, aos 29 anos, era um dos poucos doutores na minha área – Criminologia – no Rio Grande do Sul.

Essa formação relativamente precoce me abriu inúmeras portas. Durante o doutorado, por exemplo, fui contratado como professor 40 horas por uma das grandes universidades privadas do Estado. Ali, consegui dispensa remunerada para realizar minha pesquisa em Roma, durante os anos de 2008 e 2009. Na sequência, após a defesa da tese, outra universidade privada, concorrente da primeira, que estava com projeto para montar curso de mestrado exclusivamente em ciências criminais, área em que atuo, me fez o convite para que eu mudasse de instituição.

Há quem deixe de se ouvir e recuse a si mesmo em processos de reavaliação de carreira e de vida depois dos 40 – que, contraditoriamente, é uma idade em que conquistamos a maturidade para alterar nossos planos de voo.

No ano 2000, eu já havia atingido uma posição relativamente estável na docência, com contrato de 40 horas e lecionando em um curso de mestrado, com projeção de abertura de doutorado. Em termos de mercado de trabalho nas instituições de ensino privado, os professores com contrato de 40 horas se diferenciam muito daqueles chamados horistas, que ganham conforme a carga de ensino em sala de aula. Os contratados, sobretudo aqueles em tempo integral que atuam em pós-graduação, recebem bons salários, que podem chegar a 10 ou 12 mil reais, o que é mais do que se ganha no exercício na advocacia, cujo salário médio gira em torno de 4 a 6 mil reais (média de um advogado contratado ou associado, com experiência profissional, em escritórios privados no Rio Grande do Sul). Além disso, um professor, nestas condições, possui uma carga horária em sala de aula reduzida (em média 12 horas semanais), em razão dos resultados de pesquisa que deve apresentar.

Um ano antes de defender a tese, em 1999, de forma um tanto inesperada, recebi o convite de um antigo colega de faculdade, que havia sido meu aluno em um curso de especialização, para advogar. Na época pensei que seria uma boa oportunidade e aceitei o convite. Em 15 anos de dupla militância (acadêmica e advocatícia), o escritório cresceu bastante, conquistamos inúmeros clientes e eu diria que um posto privilegiado na advocacia gaúcha, na área do Direito Penal, inclusive com reconhecimento nacional.

Pois agora decidi deixar o cotidiano do escritório para trás. E deixar para trás também, em definitivo, minha atuação no ensino privado. Como se não bastasse, estou também trocando de cidade – saindo de Porto Alegre e indo, com mulher e filha pequena, para trabalhar no Rio de Janeiro, como professor adjunto de uma universidade federal.

Crise dos 40? Isso seria simplificar demais. Melhor seria falar no desencanto com os rumos pedagógicos nas universidades privadas e em uma certa decepção com os rumos da prática da advocacia.

É preciso citar também a experiência que tive, desde o final de 2009, quando assumi como professor em uma universidade federal, onde permaneci até 2011. Posteriormente, em 2013 e 2014, lecionei, como professor voluntário, em outra instituição pública, no interior do Rio Grande do Sul. Consolidei ali minha convicção de que existem pouquíssimos lugares fora das instituições públicas em que é possível fazer pesquisa séria em Direito no Brasil. Com a proliferação descontrolada das faculdades (hoje são mais de mil cursos de Direito no país), o ensino jurídico agoniza – literalmente. E essa agonia já chegou à Pós-Graduação.

As instituições de ensino, públicas e privadas, padecem de vícios, como a administração burocratizada, baseada em uma tradição patrimonialista na qual determinados gestores transformam o local de trabalho num feudo particular, numa capitania hereditária.

Os critérios pedagógicos, atualmente, estão todos submetidos à busca de resultados financeiros. O ensino foi transformado em uma mercadoria barata e o desenvolvimento pedagógico em uma relação de consumo pueril. Para mim, essa é uma questão decisiva: universidade não é empresa; educação não é uma relação de consumo. Com isso não quero dizer que os professores não devam ser avaliados ou que os alunos não devam exigir qualidade. Ao contrário. Refiro uma lógica gerencial burocrática que anula as possibilidades pedagógicas e que hoje domina o ensino do Direito de cima a baixo.

Atualmente – e isso é quase uma regra nos cursos de Pós-Graduação das instituições privadas – as vagas para mestrado e doutorado são obrigatoriamente preenchidas. Do contrário, o curso “não se paga”. Assim, independentemente da qualidade dos candidatos, os coordenadores de curso devem garantir a lotação máxima. Pense na qualidade dos mestres e doutores, resultantes dessa lógica, que estamos jogando no mercado.

Por outro lado, na graduação, essa necessidade de preenchimento de vagas se transforma em uma disputa insana das instituições privadas por alunos. O efeito: o professor se converte em um funcionário que trabalha exclusivamente para satisfazer os interesses dos alunos. O processo todo pode ser representado pela dupla mensagem que frequentemente paira na sala dos professores. O discurso oficial: os professores devem ser exigentes ao máximo, inclusive reprovando os alunos que não alcançam suficiência. Já o discurso subliminar é: o aluno é o seu empregador e você deve tratá-lo desta forma.

O estrago que essa lógica produz no ensino e, em consequência, no mercado de trabalho e no acesso dos cidadãos à Justiça é imenso. Estrago seguido de profundo mal-estar entre os professores que ainda acreditam na docência, que possuem comprometimento com seus alunos, que percebem a educação como uma das poucas ferramentas verdadeiramente revolucionárias.

Em sentido oposto, na universidade pública encontrei um ambiente muito mais amistoso para a docência e a pesquisa, com alunos mais interessados e mais convictos de que a relação pedagógica não é e não pode ser nunca uma relação de consumo.

Mas ambas as instituições, públicas e privadas, padecem de vícios, notadamente aqueles próprios de administrações burocratizadas baseadas em uma tradição patrimonialista na qual determinados gestores transformam o local de trabalho em feudos particulares, em capitanias hereditárias. Infelizmente, há procedimentos pouco transparentes que levam a uma extrema concentração de poder, o que permite, por sua vez, que administradores se eternizem em cargos, estabelecendo relações pouco saudáveis que, em geral, adoecem departamentos e cursos inteiros.

Mesmo assim, nas instituições públicas o controle da comunidade acadêmica acaba sendo maior, com maior possibilidade de denúncia e de resistência contra aquelas práticas. Os inúmeros casos de suspeição em concursos públicos, trazidos à tona por professores e estudantes, é, ao mesmo tempo, um indicativo de doença e uma possibilidade de construção de algo novo.

Em relação à prática da advocacia, não sei se o termo correto é decepção, pois desde que ingressei nessa atividade (e provavelmente muito antes disso) já me incomodava com algumas distorções, sobretudo éticas, nas relações entre os profissionais da área. Há muito material escrito, de pesquisas acadêmicas a relatos empíricos, que dão conta das relações incestuosas entre juízes, advogados e promotores de justiça, em todos os níveis de atuação. Essas relações, que aparentam ser, “de direito”, refinadas e aristocráticas, são, “de fato”, medíocres e provincianas.

E isso se vê já no bizarro espetáculo estético que envolve vestimenta e linguagem propositalmente arcaicas, utilizadas para distanciar o povo do Direito. Tudo isso concretizado nas posturas altamente pretensiosas – pernósticas mesmo – que consolidam um modo autoritário de se fazer Justiça no Brasil. Vícios que ainda hoje tento extirpar da minha forma de ser e de me manifestar. (Espero que esse manifesto esteja livre o juridiquês!)

Some-se a esse ambiente tortuoso a desconfortável lógica (ao menos para mim) do mais selvagem capitalismo que se apresenta cotidianamente nos escritórios, refletido na busca sem limites pelo lucro, e a decisão de mudar ganhou corpo.

Em muitas universidades, há procedimentos pouco transparentes que levam a uma extrema concentração de poder, o que permite, por sua vez, que administradores se eternizem em cargos, estabelecendo relações pouco saudáveis que, em geral, adoecem departamentos e cursos inteiros.

Uma das condições para essa mudança era garantir espaço acadêmico em uma universidade pública de ponta. Sofri violentas retaliações em dois concursos em uma universidade federal do Rio Grande do Sul, cujo departamento é o espelho do patrimonialismo que procuro denunciar. Parece que em algum momento eu teria de pagar o preço pela minha postura questionadora das práticas autoritárias no Direito.

Desde a faculdade integrei movimentos críticos, como o do Direito Alternativo. E procurei atuar nos movimentos sociais na defesa dos Direitos Humanos. E, na docência, sempre tentei fugir do usual e quebrar um pouco a “caretice” do Direito, como, por exemplo, quando publiquei o Antimanual de Criminologia (hoje em sexta edição). Embora em todas as seleções docentes a minha produção acadêmica e as minhas provas (oral e didática) tenham recebido excelentes notas, meu “perfil” foi considerado “inadequado” – nas exatas palavras do presidente de um dos concursos que realizei. Finalmente, fui aprovado na seleção da principal universidade federal do país, que não apenas “tolera” como incentiva a inovação e a superação das práticas “cartorárias” da Academia.

Estou no começo desse recomeço. No início dessa nova jornada – não sem muito medo. Mas alguns frutos já consigo colher. Tenho estudado bastante, o que aprimora meu lado docente e de pesquisador, além de qualificar minha atividade técnica em consultorias e pareceres jurídicos. E estou mais perto da minha filha, acompanhando seu crescimento, e mais perto da minha mulher do que jamais pude estar. E isso não tem preço. Embora mudanças importantes no estilo de vida tenham, sim, um preço. Precisei ajustar uma série de questões financeiras à nova realidade. Mas, se estivermos dispostos, o custo não é tão oneroso quanto imaginamos.

Nas reações mais comuns das pessoas que me abordam, algumas curiosas, outras receosas, outras nitidamente desconfortáveis diante das minhas escolhas, tenho percebido que há na maioria de nós um temor paralisante, que sequer permite que consideremos que uma outra vida é sempre possível. Me chama a atenção também a série de desculpas que inventamos para seguir um padrão que não nos satisfaz pessoalmente, mas que mantemos porque nos garante algum retorno financeiro ou simplesmente porque passam pelas expectativas que os outros, e que nós também, temos acerca da nossa vida. São justificativas para a inação que não justificam nada. E que não contribuem para que nos aproximemos de quem realmente somos – ou queremos ser.

Esse temor só pode ser superado pela vontade radical de viver com mais propósito e com maior felicidade. Para isso, às vezes, basta manter uma postura meio hippie, meio punk, meio intelectual e bastante de esquerda, para citar a fabulosa crônica do Pratinha – e uma boa música dos Replicantes.

Porto Al…, ops, Rio de Janeiro, março de 2015.

Salo

 

Salo de Carvalho, 43, é pai da Inês, apaixonado pela Mari e professor da Faculdade Nacional de Direito, UFRJ.

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