Um elogio aos inúmeros sexos de cada um

Nilza Silva - 30 maio 2016
Nilza Silva: "Não há uma 'verdade' sexual, nem um sexo 'verdadeiro'. A sexualidade é um convite ao evento de 'diferir'".
Nilza Silva - 30 maio 2016
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Por Nilza Silva

 

Inicialmente, é preciso considerar qualquer prática humana uma construção social, circunstancial, histórica, política e, portanto, contingente e provisória. As práticas sexuais, como construções sociais, vão se constituindo um conjunto heterogêneo de relações de forças, de primazias, de regras, de conceitos, de funções, de sensações. Alguns conceitos como virtude, delito, culpa, prazer, crime, predestinação, desvio, segredo, pecado, confissão, escolha, pagam tributo a heranças longínquas, ainda vicejantes, sob o verniz das discussões da sexualidade contemporânea. Exponho sumariamente quatro pontos aproximativos da questão.

 

1. Mantêm-se concepções sexuais milenares

Para helênicos e romanos antigos, as afrodisias são ações, gestos e contatos para produzir prazeres corporais humanos. Tais prazeres nas atividades sociais servem de parâmetro para as atividades sexuais e são experimentados por agentes de uma certa ética. Assim, o exercício sexual aceitável, validado, preconizado e enaltecido é o ato do agente, para quem os parceiros — jovem livre, mulher, escravo — doam seus corpos subalternos, de modo voluntário ou não. O prazer sexual, portanto, é um privilégio experimentado pelo agente sexual masculino, adulto e livre, único indivíduo que está autorizado a pensar, a escrever, a ensinar e a fruir desta experiência. Assim, o prazer sexual, e a ética que o suporta, são viris.

Como as atividades sexuais devem expressar as regras e princípios que estabelecem as relações sociais, qualquer desvio, reversão, turbação, divergência dessa ética são recusados. São moralmente qualificados de impróprios. São combatidos por meio de uma pressão pedagogizante. A verdade sexual é guardada unicamente pelo agente sexual, que é também o agente social e o mestre.

Nas atividades sexuais, o mestre se move pelo amor ao discípulo jovem, experimentando a atenção, a vigilância, o devotamento, o sacrifício, o comprometimento definido e preciso, o exemplo virtuoso. O mestre inventa uma arte sofisticada de cuidar de si, cuidando do discípulo. Com suas atitudes e comportamentos, ele ensina o aprendiz a viver na sociedade de que fazem parte. A verdade social é transmitida pelo mestre e agente sexual, que faz a articulação indispensável entre amizade, virtude, cuidado de si e do outro.

A cristianização medieval inclui um elemento novo ao modelo dominante: o combate ao exercício dos prazeres sexuais entre homens. Por exemplo, o código Corpus Juris Civilis, promulgado no ano de 529, pelo imperador Justiniano, do Império Romano do Oriente (ou Império Bizantino), prevê medidas punitivas, como a tortura e a castração, para todos os homens julgados culpados de terem relações sexuais com outros homens. Espalha-se o terror e a delação, particularmente em Constantinopla, conforme o historiador romano Procópio.

 

2. Elege-se a “verdade sexual”

As experiências dos prazeres sexuais servem a dois regimes de produção da verdade: a arte erótica (ars erotica) e a ciência sexual (scientia sexualis). Essas duas ferramentas poderosas, cada uma a seu modo, mostram como se elegem as “verdades do sexo”.

A arte erótica elabora as verdades do sexo através do próprio prazer na experiência sexual. Cada indivíduo aprecia a intensidade, a qualidade, a duração, a freqüência, as singularidades, as repercussões do seu prazer. Constitui-se um cuidado de si específico, à margem de leis e parâmetros, cuja fruição leva à reserva, ao segredo. Ainda aqui, só o mestre ou guia detém os segredos e o poder de transmiti-los, através de uma iniciação. Trata-se, ainda, de uma arte ensinada, que leva à maestria do corpo e à pura fruição.

De outro modo, a ciência sexual elabora a verdade do sexo através dos procedimentos da confissão. Tais procedimentos são apoiados nos protocolos da observação e da dissecação, na verificação da prova, demonstrada e testemunhal, e nas garantias da autoridade. Exercita-se o poder-saber que normaliza e controla.

Confessar é o evento buscado para a tipificação dos corpos de qualquer natureza. Nos âmbitos mais diversos, das ações mais solenes às mais cotidianas, das grandezas às misérias, confessa-se tudo e sempre. Cada pensamento e cada ato precisa ser declarado e esquadrinhado, exata e detalhadamente e, se possível, com imagem visual ilustrativa, eloquente e comentada. Confessa-se ou se é forçado a confessar. Por indução terna, por constrangimento, por tortura de qualquer natureza, por convencimento.

Dentro desta maquinaria confessional, o humano perde e faz perder vertiginosamente a privacidade.

E codificam-se pensamentos e atos. Codificam-se as relações e suas fronteiras, supostas ou reais. Codificam-se comandos religiosos, sociais, jurídicos, econômicos, medicais, numa tentativa coercitiva de fazer a vida e suas potências encaixarem-se em suas bulas, em seus manuais de instruções, em suas leis, em seus pareceres. Categoriza-se o humano, que se entrega a essa prolixidade, juntamente com a vontade que a empurra, com a estratégia que a sustenta, e com as relações de poder que ela exerce.

 

3. Busca-se desesperadamente o “verdadeiro” sexo

As relações de poder glissam por caminhos imperceptíveis, até alcançar os comportamentos sexuais, dos mais comuns aos mais raros, dos mais óbvios aos mais singulares, contaminando e controlando o prazer cotidiano, seja para recusar, impedir, desprezar, seja para incitar, intensificar, amplificar. Afirma-se, deste modo, o discurso hegemônico sobre a sexualidade humana, demonstrada, provada, rotulada, embalada, prescrita.

Fazer coincidir rigorosamente o sexo anatômico, o sexo jurídico e o sexo social passa a ser tarefa da ciência médica, da ciência psicológica, da ciência jurídica e da ciência pedagógica, dentro do processo de administração biopolítica do ser humano — para usar um conceito do filósofo e psicólogo francês Michel Foucault. Convence-se todo indivíduo humano de que ele precisa ter um e somente um sexo, determinado e codificado e legitimado por peritos. Para isso, usa-se o conceito identidade e suas classificações. A golpes de interpretação, cada um se arranja numa das duas classificações binárias da sociedade — masculino ou feminino. Como resultado, imobilizam-se todos os indivíduos, um por um, para melhor controlar a população.

E o “verdadeiro” sexo se impõe inapelavelmente. Qualquer dúvida é solucionada na inscrição genética, considerando-se que os cromossomos têm a capacidade de dirigir um fluxo de desejo sexual constringente, em correspondência ou não com a anatomia.

Mesmo os que recusam voluntariamente a imposição anatômica e esculpem cirurgicamente e/ou hormonalmente as variações que lhes estão disponíveis, agem ainda dentro da lógica da binariedade sexual, contribuindo para reavivar a busca pelo “verdadeiro sexo”.

Tudo o que não cabe nas classificações provoca a criação imediata do novo renque dos descabidos. Todos os que não aceitam o instituído são engolidos pelo renque dos inaceitáveis. E, assim, progride a sanha classificadora. Tanto que, recentemente, surge uma classificação ternária: masculino ou feminino ou queer (algo como “esquisito”, “estranho”, “diferente dos demais”). Mas, apenas se cria um renque suplementar. Continua-se a reterritorializar cada indivíduo a um e somente um sexo. O terceiro renque recebe o que sobrou dos dois primeiros. E funciona como mais um compartimento, como mais um rótulo, como mais uma rédea.

Diante disto, é custosa a admissão de que o exercício sexual é uma opção individual, uma escolha, uma decisão, soberana e intransferível, e que implica a afirmação de certo grau de liberdade e de incerteza.

 

4. Para elidir identidades

É preciso recusar a necessidade de ter o “verdadeiro” sexo, operado a partir da “verdade sexual”. Essa recusa demanda romper com o conceito identidade e com as classificações que decorrem daí.

Ao abolir as identidades, tão convenientemente e convincentemente erigidas, ao longo de séculos, se estão traçando vias para a constituição de um ser humano inclassificável, em todos os seus âmbitos. Certamente, este pensamento horroriza os controladores de várias estirpes, ciosos de enquadrar a vida.

Furtar-se a qualquer classificação permite fruir delícias e tormentos. E, sobretudo, este processo passa pela assunção da responsabilidade de cada indivíduo devir omnissexual, abrindo-se à invenção cotidiana de inumeráveis sexos. Seguindo o filósofo francês Gilles Deleuze, trata-se de praticar uma arte erótica sem mestres, plena de enésimos (n) sexos, tantos quanto os enésimos arranjamentos, dos quais cada indivíduo faz parte. Trata-se de conceber e operar uma diferença afirmativa. Trata-se de escolher expressões sexuais, nem exclusivas, nem irreversíveis, que sejam tão provisórias e fugazes quanto os prazeres contingentes que cada indivíduo experimenta, e cujos efeitos se mostram na arte vital de cuidar de si. E isto exige excluir quaisquer relações de poder, das mais sutis às mais violentas.

Mais amplificadamente: é um convite a experimentar o evento diferir, sem se deixar reduzir às ciladas da identidade, de nenhuma ordem e sob nenhum pretexto. Por fim, é uma urgência: abrir-se ao exercício da singularidade, à efetuação de uma composição única e irrepetível em cada um.

 

Nilza Silva, 66, é psicóloga, graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

 

Sugestões de leitura e fruição:

Livros

DELEUZE, Gilles. L’île déserte et autres textes. Paris: Les Éditions de Minuit, 2002
DELEUZE, Gilles. Deux régimes de fous. 1975 – 1995. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003
DURAS, Marguerite. L’amant (1984). Paris: Les Éditions de Minuit, 2005
DURAS, Marguerite. L’amant de la Chine du Nord (1991). Paris: Gallimard, 2009
ECO, Umberto. Il nome della rosa (1980). Milano: Bompiani, 2014
FOUCAULT, Michel. Subjectivité et vérité.1980 – 1981. Paris: Gallimard/Seuil, 2014
FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité – La volonté de savoir (1976). Paris: Gallimard, 2010, volume I, II e III
FOUCAULT, Michel. L’herméneutique du sujet (1981 – 1982). Paris: Gallimard/Seuil, 2001
HIGGINS, Colin. Harold and Maude (1971). Paris: Gallimard, 2005

 

Filmes

Ensina-me a viver ou Harold and Maude (EUA, 1971, 91 min, cor), do realizador cinematográfico estadunidense Hal Ashby (1936), baseado no livro Harold and Maude (1971) do escritor e roteirista estadunidense Colin Higgins (1941 – 1988).

O nome da rosa ou The name of the rose (Alemanha, 1986, 131 min, cor), do realizador cinematográfico francês Jean-Jacques Annaud (1943), baseado no livro O nome da rosa (1980), do filósofo, semiólogo e escritor egípcio/italiano Umberto Eco (1932 – 2016).

O amante ou The lover (França/Vietnã, 1992, 115 min, cor), do realizador cinematográfico francês Jean-Jacques Annaud (1943), adaptado dos livros L’amant (1984) e L’amant de la Chine du Nord (1991), da escritora, teatróloga, roteirista e realizadora cinematográfica francesa Marguerite Duras (1914 – 1996).

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