Uma das indústrias de entretenimento que mais cresce, a dos videogames já provou há muito seu poder. Enquanto muita gente ainda sente dificuldade e entender a importância dessa mídia, o pessoal do Overloadr, site especializado em games, que nasceu com o intuito de discutir o assunto com seriedade e irreverência, traça um caminho único apostando justamente nisso: videogame é cultura.
Criado por Caio Teixeira (29 anos), Heitor de Paola (29) e Henrique Sampaio (30), o site é também um exemplo de financiamento alternativo de negócio. É bancado, principalmente, pelos próprios leitores, que contribuem mensalmente com quase 2 mil dólares.
A redação funciona em um pequeno e antigo apartamento no centro de São Paulo, onde é, também, o lar de Caio Teixeira e sua namorada. Durante o dia, as mesas são ocupadas por notebooks, os videogames ficam ligados quase o tempo todo, e as coisas acontecem. É tudo feito com espírito independente e DIY. Até mesmo um pequeno quarto, que deve ter quase 3 m², foi transformado em estúdio, onde são gravados os podcasts e vídeos semanais.
Apostar em bom conteúdo audiovisual também é um aspecto importante na estratégia do Overloadr. Eles têm três séries de vídeos: Shuffle (onde jogam e discutem algum game aleatório), Retroscópio (onde o foco é um jogo antigo) e Ao Vivo (em que fazem transmissão ao vivo de uma partida). Também há dois podcasts semanais: o Motherchip (o principal do site, onde discutem videogames em geral) e o Bilheteria (focado em cultura pop). Os três sócios são editores e gravam, editam, postam e divulgam o trabalho.
O CAMINHO DE UM GRANDE PORTAL À INDEPENDÊNCIA
A mentalidade de tratar videogames como coisa séria e dar atenção especial a conteúdos em áudio e vídeo não vem de hoje. A história do Overloadr se confunde bastante com a do Arena, editoria de videogames do portal iG, onde os três se conheceram e atuaram juntos por alguns anos. Lá, o editor era Caio Teixeira, que trabalhou na empresa por mais de sete anos. Apesar de Caio ser o único formado em Jornalismo (Henrique fez Design e Heitor fez Letras), os três trabalham há quase uma década escrevendo sobre o assunto, e Henrique já foi até professor universitário de Teorias de Jogos.
Com o passar do tempo, uma das coisas que tornaram o Arena famoso foi seu podcast Games on The Rocks. A ideia era que os participantes fossem bebendo (bastante) enquanto gravavam e discutiam sobre videogames. Ao final da gravação, todos estavam bêbados e as discussões já tinham ido bem além de jogos.
“O iG nunca ligou para o fato de gravarmos os programas bêbados. Na verdade, acho que ninguém lá nunca deve ter ouvido nosso podcast”, diz Caio. E foi justamente essa liberdade que permitiu ao programa se destacar na comunidade gamer e ao Arena fazer uma série de experimentos editoriais, como Caio conta: “Por algum motivo, quando o iG foi comprado pela Oi, os diretores da empresa foram com minha cara e me deram recursos para fazer bastante coisa. Nessa época, contratei três jornalistas para trabalhar só com reportagens especiais, enquanto as notícias vinham de uma agência”.
Apesar de contarem com liberdade editorial, nem tudo dava certo. A escassez de recursos chegou, incitou mudanças e fez com que Henrique, ainda em 2012, começasse a pensar em sair do portal para criar seu próprio site. “O iG estava me devendo quatro meses de salário. Estava meio estagnado, comecei a conversar com alguns amigos mais próximos e fiz um documento gigante de ideias teóricas do que eu queria para um site”, conta ele sobre os primeiros rascunhos do Overloadr. Heitor também logo sairia do portal para criar seu próprio site, o Lektronik.
UM GAME OVER ANTES DO RESTART
A página foi criada com Gus Lanzetta, jornalista de games que também passou pelo iG, e por Erik Gustavo, que era redator da MTV. Com ainda mais humor, o Lektronik não durou muito tempo, como conta Heitor:
“Só o fato do Lektronik ter nascido já é uma surpresa. Era um negócio criado por três moleques achando que era fácil. Achávamos que era só pagar um programador, escrever textos, e que em dois meses estariam jogando dinheiro no nosso colo. Obviamente, não foi o que aconteceu”
Jogador, ele aprendeu a lição. “Minha experiência lá foi ótima para aprender exatamente o que não fazer. Agora, estou aprendendo o que fazer. Uma das principais lições que trago é a de encarar qualquer projeto como trabalho. A partir do momento em que algo fica em segundo plano, ele vai perdendo espaço e tempo para freelas, empregos e outras coisas. Quando isso acontece, acabou. Não vai mais dar certo. O Lektronik teve bons frutos, conquistou uma audiência interessante, mas como não dava dinheiro foi diluindo cada vez mais, até acabar”, reflete Heitor. Algum tempo depois, ele voltou para o iG.
A gota d’água mesmo veio em 2014, quando os três estavam trabalhando no Arena e, cansados dos problemas do portal, decidiram que era hora de sair, pegar seus projetos antigos, e criar um site — dessa vez, para valer. Passaram mais de cinco meses estruturando e pensando o projeto antes de colocá-lo no ar.
Nessa fase, contaram com mentoria de Zander Catta Preta, que fazia BI para o Walmart, e que entrou como sócio (6%) da empresa. Rapidamente, descobriram que suas ideias eram ambiciosas demais para o início do projeto. “O que queríamos montar ia muito além de um site, era quase uma rede social. Foi então que percebemos que seria melhor focar no que já fazíamos bem, mas essas ideias todas ainda estão guardadas para um segunda fase do Overloadr”, afirma Henrique.
O que segurou o projeto desde o começo foi a comunidade de leitores, que migraram facilmente do Arena iG para o Overloadr — tanto que, no final do primeiro mês (o site foi lançado em setembro do ano passado), eles já bateram a marca de 20 mil visitantes únicos, audiência maior do que a que tinham dentro do portal. Hoje alcançam quase 50 mil visitantes únicos.
Colocar o site no ar foi só o começo de um processo complicado. Nos meses seguintes, eles quase não lucraram e sobreviveram basicamente com o dinheiro que haviam guardado e ajuda de amigos e familiares. Caio lembra dessa fase:
“Me senti com 18 anos novamente. Não comia fora, não gastava dinheiro com nada, e mesmo assim fechava o mês no vermelho”
Além de correr atrás de anunciantes, eles estavam tentando atrair investimentos para a empresa. Perceberam logo que não era o que queriam. “Chegamos a conversar com uns seis investidores. O último foi em uma apresentação onde ficamos um bom tempo falando de nossas ideias. E então os investidores começaram a nos perguntar dos custos jurídicos, de quantos milhões queríamos ganhar nos próximos anos, por quanto iríamos vender o site. Foi aí que percebemos que isso não era para nós. Nosso objetivo não é ficarmos ricos. Queremos criar bons conteúdos e ganhar dinheiro para nos bancarmos, só isso”, diz Heitor.
COMO SOBREVIVER SEM INVESTIDOR NEM PUBLICIDADE?
Sem investidores e com pouca renda publicitária, eles começaram a se preocupar. “Dezembro, para mim, foi um mês negro”, conta Caio. Foi então que, no começo deste ano, resolveram recorrer ao crowdfunding. Em março, o Overloadr lançava sua campanha no Patreon, plataforma de “crowdfunding recorrente” na qual, em vez de as pessoas pagarem uma única vez por algo, elas contribuem mensalmente pela manutenção de um projeto.
Em menos de uma semana, eles atingiram a marca de 2 mil dólares, pagos mensalmente por quase 300 leitores. “O mais legal do Patreon é que ele valida seu trabalho. É muito legal pensar que as pessoas estão, voluntariamente, tirando dinheiro do bolso para você continuar escrevendo. Depois que lançamos a campanha até começaram a aparecer mais anunciantes”, diz Heitor.
O fato de eles continuarem abertos à publicidade não quer dizer que tenham mudado sua postura irreverente e livre. “Mesmo quando estávamos no vermelho, abrimos mão de anúncios que talvez restringissem nossa liberdade editorial”, diz. O financiamento dos fãs é suficiente para manter o site em pé. Eles mantêm o foco na produção de conteúdo, mas ainda estudam outras formas de monetização. Para Caio, jornalistas com cabeça de empreendedor fazem muita falta hoje.
A relação próxima com os leitores também não vem de hoje, mas desde os tempos de Arena. Periodicamente, eles marcavam “Botecos on the rocks”, onde se encontravam com os leitores para beber, conversar e cantar em algum karaokê. Esses encontros, aliados ao tom pessoal dos podcasts e um grupo no Facebook, fizeram com que o público formasse uma verdadeira comunidade — que seguiu os jornalistas após o iG e ajudou a financiar o novo projeto.
TOME UMA COM OS SEUS FINANCIADORES
Agora, no Overloadr, eles querem dar ainda mais atenção ao convívio físico. Montaram uma agenda do ano, com eventos de grande e pequeno porte, para continuar a reunir a comunidade de leitores. No último mês, promoveram um teste restrito, com bebidas, videogames e jogos de tabuleiro. “A ideia dos eventos não é dar lucro, é mais encontrar o pessoal e se divertir mesmo. Mas é muito legal ver que ele sempre se paga”, diz Caio.
Nesses encontros, os editores do site não são diferentes dos leitores. Para eles, o público conhece e entende tanto de videogames quanto eles. E, nas rodas de conversa, eles nunca estão no centro. “O que acontece, algumas vezes, é de as pessoas reconhecerem na nossa voz, um amigo. Talvez porque elas ouçam o podcast quando estão no trânsito, ou em qualquer lugar sozinhas, parece que estamos lá conversando com elas todas as semanas. Eu, por exemplo, falo abertamente no podcast que sou gay. E isso serviu para vários leitores virem falar comigo, porque se identificavam”, conta Henrique.
Com o seu público cada vez mais próximo, seja bebendo junto, ajudando a pagar as contas no fim do mês, ou até mesmo divulgando o conteúdo para seus amigos, o Overloadr mostra que, em tempos de dúvidas no jornalismo, uma coisa que funciona é lembrar que notícias são escritas por pessoas para pessoas.
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