A notícia arrebatou o mercado de bebidas e fez muitos cervejeiros artesanais espumarem de reprovação. A Ambev, braço latinoamericano da AB InBev, o maior grupo de bebidas do mundo, tinha acabado de anunciar a compra da cervejaria mineira Wäls. Administrada pelos irmãos Thiago e José Felipe Pedras Carneiro, 36, a Wäls era um dos principais exemplos de êxito da crescente cena cervejeira artesanal do país naquele momento, no começo de 2015: eles tinham transformado a tradicional cervejaria de chopp da família em Belo Horizonte em uma companhia inovadora que já colecionava prêmios internacionais (em 2014, uma dubbel produzida pela Wäls levou medalha de ouro na World Beer Cup, competição referência do setor).
A negociação fazia parte da estratégia da Ambev de, a exemplo de outras aquisições, se unir às cervejarias artesanais de olho nesse mercado cada vez mais promissor. Lá fora, o plano começou ainda em 2011 com aquisições como a da Goose Island (pela bagatela de 38,8 milhões de dólares), por exemplo, uma cervejaria baseada em Chicago que revolucionou a concorridíssima cena americana ao criar cervejas inovadoras (muitas delas envelhecidas em barricas) e cair nas graças de beer geeks e amantes da bebida de todos os tipos. A escolha da Wäls, disseram os diretores da companhia na época, se deu pela projeção que a cervejaria mineira tinha conquistado – dentro e fora do país – e pelo seu perfil inovador.
SER COMPRADO É PRÊMIO OU MALDIÇÃO?
Da parte dos irmãos Carneiro, a proposta pareceu, à primeira vista, boa demais para ser verdade: uma parceria com a maior empresa de bebidas do mundo não só poderia render ótimo retorno financeiro, mas também era um baita reconhecimento ao trabalho que vinham desempenhando. Mas em seguida, surgiu o conflito: será que teriam de abdicar do espírito artesanal para fazer as cervejas como a companhia queria (e que muitos profissionais do mercado apostavam que por fim iria acontecer)? “Isso passou pela nossa cabeça, claro. Mas foi uma das premissas da nossa negociação: se não acontecesse da forma que a gente queria, que era seguir com as mesmas receitas e com a possibilidade de criação, a gente ia desistir do negócio”, conta José Felipe. “Isso foi muito discutido, pois tínhamos receio de que as coisas seguissem dessa maneira.”
A liberdade de criação e execução foi uma imposição dos irmãos Carneiro. E a AmBev aceitou. Os valores não são revelados, mas o que se sabe é que no ano passado, quando a Wäls foi comprada, a cervejaria faturava cerca de 9 milhões de reais por ano. “Se eles nos procuraram é porque queriam nosso know-how para fazer algo que eles não sabiam, né?”, diz José Felipe. Ele conta que o case da Goose Island, incorporada à empresa anos antes, foi um termômetro de que o trabalho poderia seguir como eles queriam e vinham desenvolvendo:
“Muita gente falou que a gente tinha se vendido. Críticas são normais e a gente tem que entender. Nossa preocupação é mostrar que o nosso foco é, sempre, fazer sempre algo diferente”
Ele acredita que tem conseguido, mas acredita que a venda provocou um acirramento de opiniões: “Quem não gostava do nosso trabalho passou a demonstrar ainda mais isso. Mas quem amava continuam gostando. Não me iludo e sei que ainda há pedras para serem tacadas, mas as respostas estão vindo aos poucos, espero que os críticos nos deem a chance de mostrar o trabalho antes delas”.
Hoje, quase um ano e meio depois da negociação, José Felipe admite que ainda tem aquele mesmo receio, de que seu negócios acabe tendo que seguir outro caminho. “Existe o medo de perder nossa autenticidade, mas as coisas estão acontecendo de uma forma ainda mais intensa do que eu podia esperar”, diz ele, referindo-se ao cargo que assumiu, após a venda da Wäls.
DE REPENTE, ASSUMIR A ÁREA DE INOVAÇÃO DO GIGANTE
Sim, além de ser CEO da cervejaria que criou, ele hoje tornou-se responsável pela inovação na ZX Ventures — um misto de incubadora e venture capital global criado pela multinacional com sete unidades por todo o mundo e que, desde 2015, mantém sua atuação também na capital paulista. As unidades de cada país operam de formas independentes, apesar de dividirem experiências e terem os mesmos objetivos: criar produtos e modelos disruptivos de forma independente do conglomerado da e do qual a AmBev faz parte no Brasil.
Esse é um trabalho que José Felipe está extremamente empolgado em fazer: como mestre-cervejeiro da Wäls, ele é um cara criativo, agitado – fala muito e sempre de forma efusiva. Cuida dos novos projetos e das criações da ZX Ventures. Seu irmão, Thiago, por sua vez, sempre foi mais o lado “dos números” da família.
O ambiente que a Ambev montou para ele trabalhar em São Paulo (no pouquíssimo tempo que fica na cidade, entre muitas viagens que passou a fazer pelo Brasil e pelo mundo), em um sobrado discreto, numa rua de acesso da Vila Nova Conceição, bairro nobre de São Paulo, não podia ser mais a cara dele. A ZX Ventures tem o ambiente de uma startup, nenhum engravatado e reúne jovens designers, engenheiros, mestres cervejeiros, realizadores, geeks de dados e sonhadores em geral.
Eles estão ali para tentar prever o futuro do mercado, mas hoje. A aposta em uma venture capital faz parte justamente de um plano da AB InBev para se oxigenar no mercado, deixando para trás o modelo de “grande empresa” e buscando inovações e novidades para agregar em seu portfólio, visando principalmente o mercado de cervejas artesanais – um dos setores que mais crescem no segmento de bebidas no mundo, inclusive no Brasil, com mais de 200 microcervejarias em atividade, segundo a Associação Brasileira de Bebidas (Abrabe), mas que ainda representa o pequeno percentual de 0,15% do mercado cervejeiro nacional. Há quem defenda que os números são subestimados.
“Criar uma área focada e separada foi uma maneira de garantir que independente do resultado de seu core business, a companhia tente continuar olhando para o futuro e pensando nas necessidades e desejos dos consumidores para as próximas décadas”, afirma José André Oliveira, head de Marketing da ZX Ventures. A afirmação tem a ver com um consumo que passou a crescer exponencialmente, principalmente entre o público jovem. O artesanal tem roubado o espaço do industrial nas buscas do Google, nas vendas online e, mais recentemente, até mesmo nas prateleiras dos supermercados – que passaram a oferecer cada vez mais rótulos de cervejas artesanais (presume-se que há mais de 1 500 deles no país).
“Aqui é onde a gente tem liberdade de experimentar. A divisão é separada para podermos criar sem amarras, porque inevitavelmente elas existem aos montes dentro de empresas desse porte”, diz um José Felipe de calça jeans, camiseta e tênis Nike nos pés. “Nossa obrigação é ser disruptivo”, diz ele, repetindo a expressão várias vezes durante a entrevista, como uma criança que acabou de aprender uma nova palavra. “Se amanhã eu quiser lançar uma outra bebida que a Ambev já tenha algo semelhante, eu posso, desde que faça de uma forma totalmente diferente. Tenho a liberdade mas também a obrigação de fazer algo que provoque uma reação no mercado”, conta, e resume:
“Tem um peso enorme nas minhas costas, cara”
A ZX se inspira no modelo de exponential growth da Singularity University, em que empresas conseguem se livrar dos sistemas lineares para ganhar escala tão rápido quanto as novas tecnologias. É criar uma operação que pensa como startup, tem a agilidade de uma startup e busca resultados financeiros positivos e escaláveis de uma boa startup. “O grande salto é poder contar com uma equipe muito mais completa do que a gente poderia ter”, afirma. “Temos uma empresa enorme nos subsidiando para falar assim: ‘Me mostra que eu estou errado, no que eu preciso melhorar, me mostra onde estão as minhas falhas’. É como o pai querer aprender a mexer na internet com o filho de 12 anos que está de recuperação. Nós somos esse filho em recuperação, mas que domina a internet”, diz José Felipe, bem ao seu estilo brincalhão.
ERRAR COM MAIS AGILIDADE, ACERTAR E ESCALAR
A liberdade, segundo ele, está principalmente em “matar” projetos com muita facilidade. “Uma grande empresa não consegue errar e desistir do erro: existe um planejamento, uma campanha, comercial de TV. Eles dão um tiro de bazuca e quando sai errado a perda de é muito grande”, compara. No caso da ZX, a mentalidade de uma startup predomina: vale errar muito, rápido e barato, para poder encontrar mais fácil as possibilidades de acertos.
Entre os erros estão desde algumas receitas de cervejas (toda semana são testadas novas) até o sistema de venda da Wäls: no princípio foi feita uma tentativa de integrá-las à mesma equipe habituada às vendas das cervejas da Ambev, mas não deu certo. “Tivemos que montar outra equipe de vendas separada, porque as nossas cervejas têm sabores, características e características muito diferentes das que a equipe de vendas estava habituada”, diz o empreendedor-inovador. A empresa que mais vende cervejas no Brasil não conseguiu ser efetiva em vender garrafas artesanais para o consumidor. “Isso é algo que a gente sempre fez, é a nossa experiência”, segue ele, sem modéstia.
Entre as vantagens da união à gigante mundial, José Felipe afirma que ganhou em agilidade de processos e de possibilidades. “Basicamente, eu tinha um ultraleve e, agora, temos dez ultraleves turbinados, voando para todas as partes.” Quando um deles acerta a trajetória e o voo, a operação passa para outra escala. “Se a gente acerta muito uma cerveja que as pessoas querem beber mais, por exemplo, o experimento sobe um degrau, contratamos uma nova equipe, e as coisas seguem a partir daí. O problema passa a ser deles”, diz.
Uma das ações criadas pela equipe da ZX Ventures com sucesso é o Hop Team, um projeto de educação cervejeira que conta com uma equipe de mais de 10 pessoas em todo o Brasil para realizar treinamentos com as brigadas de bares e restaurantes onde as cervejas especiais da Ambev, incluindo a Wäls, são vendidas. “Eles têm o objetivo de desenvolver a cultura cervejeira dentro dos estabelecimentos de nossos parceiros e clientes. São todos sommeliers de cerveja que educam as equipes, explicam os diferenciais das bebidas e os ajudam a oferecer uma experiência realmente completa para os clientes”, conta ele.
O projeto teve tanto êxito por aqui que foi compartilhado com as outras unidades da ZX e deve ser incorporado em todas elas nos próximos meses. Outra iniciativa fruto do trabalho da equipe de José Felipe é a criação do Wäls Mad Lab, o primeiro clube de assinatura de uma marca no Brasil. Do mesmo modo de outros clubes em que o assinante paga um valor mensal para ter um produto, o Mad Lab funciona como um laboratório para a cervejaria e para o cliente. Cada mês uma nova receita é desenvolvida com exclusividade para o clube. O assinante recebe duas garrafas (de 355ml) pagando 79,90 reais por mês.
“O mais interessante é que o cara não sabe qual cerveja vai vir, se vai mesmo gostar ou não. Ele precisa confiar na gente, já que está fazendo uma compra às cegas. Nosso objetivo não é agradar 100% todas as vezes, mas oferecer experiências inovadoras e diferentes a cada mês”, diz José Felipe. Desde que foi lançado, no final de maio, o clube já conta com mais de 1 000 assinantes. “Através de coisas assim, eu posso sempre inovar, criar, fazer coisas realmente disruptivas”, fala, repetindo o mantra.
A VIGILÂNCIA CONSTANTE PARA SE MANTER AUTÊNTICO
A tão propalada inovação é, afinal, o DNA ao qual a Wäls tem buscado se aninhar cada vez mais, para se diferenciar das cervejas industriais produzidas pela corporação da qual agora faz parte — e para não ser engolida pelo seu sistema. Desde outubro do ano passado, a empresa mudou a logomarca (o nome parece ter sido pintado com um pincel) e passou a assumir o slogan “cerveja arte” como estratégia de marketing para se posicionar como um produto único, diferencial, se distanciando das produções massivas.
Também fez parceria com artistas plásticos e acaba de criar uma linha especial de cervejas para comemorar os 10 anos de Inhotim – além de inaugurar no espaço dedicado à artes na cidade de Brumadinho um bar da cervejaria, para atender os visitantes do museu. “Quando alguém me pergunta o que mais me motiva hoje no meu trabalho, digo sempre: o próximo projeto. Realmente não sei o que vou fazer, mas sei que posso e preciso inventar coisas mais legais do que a gente inventou ontem”, diz. “Disso depende meu trabalho e minha provação dentro da empresa.”
Claro que há também cobranças e metas. Além das cervejas da Wäls, o time da ZX Ventures cuida de outras marcas artesanais da Ambev, como a própria Goose Island, a Colorado (que foi adquirida pela Ambev em julho do ano passado, meses depois da negociação com a Wäls) e a Bohemia, que se tornou uma aposta da gigante para iniciar bebedores acostumados às cervejas da casa ao mundo das artesanais. “Nosso trabalho na Bohemia é criar cervejas mais fáceis ao paladar, que todo mundo vá gostar. A Colorado é a nossa cerveja brasileira, feita com ingredientes 100% nacionais (as receitas levam rapadura, mandioca, mel de laranjeira e café). Os experimentos e as maluquices a gente deixa para a Wäls, né? É com ela que a gente pode ir aos extremos”, diz.
José Felipe afirma que a ZX tem metas para bater – a empresa não quis informar quais são elas. “É claro que eu tenho que faturar tanto ao ano, tenho que vender tanto. Eu tenho um chefe (Daniel Wakswaser, CEO da ZX Ventures) que me cobra, pô”, diz. E conta mais sobre suas tarefas:
“Minha obrigação, aqui, é prever o futuro. Antever os gostos e comportamentos do bebedor de cerveja, e até de outras bebidas”
Por isso as experiências e o relacionamento que as marcas têm criado com seus consumidores por meio das ações da ZX Ventures. “Por parte da companhia, ela só espera mesmo que a gente possa se tornar um unicórnio qualquer dia”, diz, meio jocoso, em alusão à expressão conhecida no mundo das startups quando ela consegue fazer um bilhão de dólares.
Enquanto tenta criar projetos cada vez mais “disruptivos”, como ele mesmo diria, entre receitas de cervejas que levam favas de baunilha ou descansam em dornas de cerejeira por meses, até ideias de expandir a atuação da marca e criar, quem sabe, alguns destilados (“a gente está sempre fazendo testes, mas nada ainda que tenha nos surpreendido”), José Felipe tenta manter o seu lado criativo mais ligado do que o de executivo, algo que ele diz não saber ser.
“Continuo sendo o José Felipe que adorava limpar os tanques de fermentação quando era pequeno lá em Belo Horizonte”, diz. Ele luta para manter a mesma inquietação de menino. Mas é hora da entrevista acabar. Ele põe a mochila nas costas, cumprimenta a reportagem e segue, caminhando por dois quarteirões, em direção ao prédio em que a Ambev concentra seus departamentos corporativos, onde teria uma reunião com executivos da empresa. E teria que se comportar como um, pelo menos por algumas horas. Questões do novo ofício.
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