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“Nossa missão neste momento confuso do mundo e do país é nutrir a conexão humana praticando a escuta em espaços públicos”

Luiz Alfredo Santos e Patrícia Maria Martins  - 20 dez 2019
Luiz e Patrícia: entre encontros e desencontros, eles trouxeram o Sidewalk Talk para o Brasil.
Luiz Alfredo Santos e Patrícia Maria Martins  - 20 dez 2019
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por Luiz Alfredo Santos e Patrícia Maria Martins 

Somos duas pessoas de trajetórias e linhas de vidas distintas. Uma quiçá mais redonda, mais certeira e outra não tão redonda ou mais irregular, que quis o destino um dia se esbarrassem, se aproximassem, se afastassem, voltassem a se encontrar, ressignificassem este encontro e começassem a sonhar juntos uma nova vida compartilhando um mesmo propósito.

Somos os responsáveis no Brasil (São Paulo) pelo Sidewalk Talk, projeto comunitário de participação voluntária e sem fins lucrativos, fundado em São Francisco, na Califórnia, pela psicóloga americana Traci Ruble, em 2015. Comunidade que não pára de crescer e que toca o coração de milhares de pessoas em 96 cidades e 15 países, contando atualmente com mais de 7 mil voluntários.

O Sidewalk Talk – Conversas na Calçada é a primeira seção do Sidewalk Talk na América Latina, trazida por nossa iniciativa com o apoio de amigos e equipe de voluntários, com início no último 27 de julho.

A missão neste momento tão confuso pelo qual passa o mundo e o nosso país é nutrir a conexão humana ensinando e praticando a escuta centrada no coração em espaços públicos. Ao envolver uma comunidade diversificada e inclusiva de voluntários, acreditamos que o nosso dia a dia e relacionamentos podem ser transformados.

Entendemos que a cidade carece e merece atenção de todos e que devemos estar atentos aos espaços de convivência, usando a solidariedade, a empatia e a generosidade como veículos de transformação. A consciência do indivíduo pode mudar o lugar onde se vive, através do seu olhar, da escuta ativa, da percepção e da sensibilidade para com o outro

Mas como chegamos até as conversas na calçada? Eu, Patrícia Maria Martins, sou psicóloga, mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atuo em psicologia clínica há mais de 25 anos, atendendo adultos e adolescentes. Sempre cultivei a pretensão e a disposição de levar a psicologia além das paredes do consultório. Uma terapia engajada em assuntos públicos e senso de comunidade. Uma ferramenta de transformação, de terapia do mundo, como forma de curar os corações e mentes de quem o habita.

Paralelo ao consultório, ao longo da minha carreira, estive envolvida em um par de projetos relacionados ao bem-estar físico, mental e social. Entre eles, a “Vila Saúde”, nos anos 2000, empresa que auxiliava departamentos de saúde de companhias como a Unilever a melhorar a saúde e o bem-estar de seus funcionários. E o “Senta Aqui, Conversa Comigo”, que compartilhava em sua origem do mesmo sonho da Traci Ruble, do Sidewalk Talk. Fundada em São Paulo, no final de 2016 na calçada em frente ao Edifício Copan, o “Senta Aqui Conversa Comigo” é um coletivo dedicado a promover rodas de conversas em locais públicos para estimular o convívio e a vida comunitária.

A proposta do Sidewalk Talk é simples: acolher quem está passando na calçada com uma conversa.

Quando conheci o Sidewalk Talk, encantei-me com a possibilidade de fazer parte de uma rede internacional de escuta e, principalmente, com o potencial de escalar o projeto no Brasil como a Traci e seus voluntários vem fazendo mundo afora. Nesta empreitada de trazer o Sidewalk Talk para o Brasil, contei com todo o apoio e incentivo do Luiz Alfredo. Assim, aqui chegamos.

Já eu, Luiz Alfredo Santos, tenho uma vida menos redonda ou linear como costumo brincar… Já vesti várias máscaras (personas) que contam a minha trajetória neste processo de individuação sem fim. Fui executivo em multinacionais por quase 20 anos. Casei-me com Daniela Marçolla Torchetti, que conheci quando morávamos na Califórnia, em 1995. Construímos uma família simpática, em paz e feliz, enquanto durou. Eu e Daniela somos “sócios” em dois filhos lindos: a Helena, já uma universitária no Reino Unido, e o Tiago, vivendo em Madrid com a mãe.

A vida executiva não foi fácil.. Nunca me realizei muito na profissão, ou melhor, no papel que exercia, apesar da vida confortável que me permitiu construir. Como um amigo em 2012 me questionou: “O seu trabalho lhe cai pesado?” Não pude responder que não. Um dia, quase dez anos antes da fatídica pergunta, tropecei em uma sessão de apoio psicológico de check-up executivo rotineiro com a psicóloga clínica Patrícia Maria Martins.

Meses depois, fui promovido e expatriado para Santiago do Chile. Lá, vivi a minha primeira grande crise profissional e existencial. Quando voltei ao Brasil no ano seguinte, admiti pela primeira vez na vida que precisava de terapia. E lá fui eu resgatar o cartão da tal psicóloga Dra. Patrícia que se preocupara com meu nível de ansiedade na época.

O processo terapêutico foi longo e efetivo, pois me fortaleceu para continuar a trajetória. Mas não foi disruptivo. Não por culpa da Patrícia, mas por minha causa. Não me permiti uma virada mais radical àquela altura. Ou as circunstâncias ainda não eram necessárias para uma mudança

Estas circunstâncias só se deram em Madrid, entre 2011 e 2012. No interim do processo terapêutico, ratifiquei as minhas escolhas e a “vida boa” que começava a ganhar aspas. E mais uma vez tive relativo sucesso. Saí da Unilever e fui para a Alpargatas, onde rapidamente encontrei meu espaço sendo expatriado dois anos depois para Madrid a fim de assumir a diretoria financeira da subsidiária europeia da empresa.

Apesar do nome pomposo, a função era bem operacional somando o estresse de controladoria e reporte financeiro, além do papel de business partner da operação. Isso tudo em um escritório pan-europeu com mais de dez nacionalidades e 40 pessoas. Ao chegar perto do suposto “end game” da carreira, o patamar profissional para o qual eu havia me preparado por anos, me sentia frustrado e sem tesão.

Diante da frustração, cheguei ao limite do esgotamento. E a casa caiu geral em Madrid. O profissional que não fluiu acabou desequilibrando outros aspectos, que não puderam mais ser conciliados ou consertados.

Começaram, assim, os anos loucos de uma transição que, na prática, ainda não acabou. Saindo do escritório, fui parar em um consultório psiquiátrico. Em meio aos cacos, tomei uma decisão chave com a minha mulher na época. Resolvemos, depois de um ano e meio de expatriação, e diante das incertezas de estar à deriva em um país estrangeiro com índices de desemprego superiores a 25%,  permanecer na Espanha.

Esta nova etapa que se iniciava de ressignificação ou individuação tem seu marco simbólico dias depois na estação de trem de Chamartin, Madrid acenando para as crianças e para Daniela com mochila nas costas a caminho da cidade de Astorga para iniciar o meu caminho de Santiago de Compostela particular.

Começavam os dias de tudo caminhado, nada resolvido. De ver a vida por outros ângulos. Do recomeçar. De fazer coisas que nunca havia feito. E mais importante, ainda, sentir a vida menos acelerada sem a faca no pescoço e o bafo na nuca dos quais me acostumara

A jornada de individuação passou por uma longa e curtida separação da Daniela ao percebermos, não sem pesar, que não éramos mais um para o outro. Sublimamos o casamento em uma bela amizade, nos tornamos “sócios” das crianças, mas também de pequenos empreendimentos nas áreas de geração de conteúdo em foto e vídeo e turismo receptivo na Espanha e em Portugal para o público brasileiro.

Em paralelo a tudo isso, resolvi voltar aos bancos da academia, mas com um novo olhar. Não mais no pragmatismo da carreira e da racionalidade pura e dura do homo economicus, mas com uma proposta mais reflexiva. A mesma que me inspirara a estudar Economia e Direito anos atrás. Entender o funcionamento da sociedade, do governo, da administração pública e das políticas públicas. E lá fui eu fazer um mestrado nestas áreas emendando um doutorado.

Havia em mim na busca por voltar a estudar o desafio de construir um mundo em que o interesse público fosse resgatado e respeitado nas suas dimensões mais profundas. O público como uma entidade que nos calça e que torna a sociedade mais funcional, eficiente e, principalmente, mais justa e mais humana

Foi neste espírito que voltei ao Brasil, em dezembro de 2016, logo após o depósito da tese. E em dias de inspiração e sensibilidade à flor da pele redescobri a minha cidade natal, São Paulo, depois de quase sete anos ausente. A preocupação com o público, me fez ver “flores” onde quiçá a maioria dos paulistanos não enxerga em sua rotina apressada e pautada por um rosário de medos que nos afligem a todos. O medo da subsistência, o medo de não corresponder, o medo da exclusão, o medo da solidão, o medo da violência.

Nesta fase, me propus a viver como em Madrid. Seria possível? Usufruir do espaço público com o espírito menos precavido, driblando nossos condicionamentos e preconceitos sobre o transporte público, o centro da cidade, as pessoas de diferentes classes sociais, a comodidade que muitas vezes disfarça nossa tendência de nos fechar em nossas bolhas?

Quis o destino também neste período que voltássemos a nos encontrar, eu e a Patrícia. Foram dias, semanas, meses confusos, mas cheios de esperança e convicção de quem à casa torna. Sofri na pele as dificuldades e agruras de um retorno ao país depois de anos de ausência e sem apoio institucional de ninguém. Isso tudo piorado pela conjuntura de  profunda crise política e depressão econômica. Recebi uma sequência inumerável de portas na cara. Sem muitas opções, fui obrigado a voltar a Madrid no final de 2018. Sentia-me frustrado por me ver impossibilitado de ficar onde o meu coração queria estar para colaborar com o país.

Deixei o Brasil aos prantos. Não só eu, mas quem ficava. A Patrícia que a esta altura já se transformara em muito mais que a minha ex-psicóloga e amiga.

Em Madrid, tentei pousar em uma realidade que já não me pertencia. A família, em outra fase, as amizades, as ruas não mais correspondiam aos tempos inesquecíveis que vivi ali. Um mês após o meu retorno, fui parar no hospital com uma pancreatite aguda.

Esta experiência do adoecer, tirou-me da caixinha e fez com que me conectasse de vez com Patrícia, que ansiosa acompanhava os acontecimentos de São Paulo. Até que em uma manhã, diante da clara percepção de que o meu futuro não estava em Madrid, decidi retornar ao Brasil e virar a página. Voltei na noite de Natal de 2018 para enfim juntar os trapos e recomeçar uma nova vida com a Patricia.

Aqui no Brasil tão logo o ano começou, voltei à batalha da reinserção no mercado. Mas desta vez, já ciente de que como “renegado” era improvável alguém me oferecer trabalho. Assim, fui me conectando com quem me respeitava, associando-me com quem não via problema em trabalhar com gente mais madura e com formação interdisciplinar, resgatando alguns ativos que estavam na gaveta como a carteirinha da OAB-SP para voltar a atuar, agora, em consultoria, provendo soluções empresariais em finanças corporativa, estratégia e consultivo jurídico.

Em paralelo, dando vazão a nossa veia social expressa de diferentes maneiras e em distintas dimensões, eu e Patrícia decidimos trazer o Sidewalk Talk para São Paulo. Não foi a nossa primeira experiência no terceiro setor. No Brasil, no curto espaço desde o final do doutorado, colaborei com três projetos relacionados de uma forma ou de outra à educação (Cidadão Pró Mundo, Cursinho ViraMundo e Escola Comum-MF). E nutria o firme propósito de contribuir com o que chamo de “resgate do público”: a valorização das dimensões públicas da nossa existência, seja através da escuta e comunicação, sem a qual é impossível construir comunidade, bem como na humanização dos espaços públicos, a promoção da convivência, a defesa do interesse público e o resgate da política.

Foi neste espírito de humanizar os espaços públicos e reconectar as pessoas que nos identificamos com o projeto Sidewalk Talk. Por trazer em seu âmago a ideia de cooperação nos rituais, prazeres e ação, inclusive, a política do simples ato de escutar e conversar

E esta tem sido a nossa bandeira nestes últimos cinco meses desde que demos o ponta pé inicial do Sidewalk Talk – Conversas na Calçada. A princípio, éramos nove voluntários, quando colocamos as nossas cadeiras de camping na passagem entre a Rua Aspicuelta e o Beco do Batman, em Pinheiros, a convite de Gilberto Dimenstein, que gentilmente cedeu o espaço do Catraca Livre para o lançamento do projeto.

Voluntários do Sidewalk Tals, entre eles, o psicanalista Christian Dunker e o palhaço Claudio Thebas.

De lá para cá, o Sidewalk Talk – Conversas na Calçada vem ressonando com outros movimentos de escuta ativa e atendimento terapêutico em espaços públicos que crescem em resposta à verdadeira epidemia de doenças mentais, causadas pela angústia existencial pós-moderna agravada pelas idiossincrasias do momento pelo qual passa o Brasil.

A depressão cresce no mundo e, segundo dados da OMS (2017), o Brasil tem a maior prevalência de casos na América Latina, que afetam 4,4% da população mundial, e 5,8% dos brasileiros. Também é o país com maior prevalência de ansiedade no mundo: 9,3%.

Os nove voluntários com o passar dos meses se transformaram em 27 “escutadores”, engajados em diferentes intervenções organizadas em saídas pelas ruas e praças de São Paulo, em eventos e feiras urbanas e em colaboração com outras instituições da sociedade civil, oferecendo espaços de escuta para quem quiser chegar.

Além do Beco do Batman, já estivemos nas calçadas da Avenida Paulista em frente ao Trianon e nos Campos Elíseos. Participamos como convidados de feiras e eventos urbanos, como as edições da Feira de Intercâmbio e Criatividade (FIC), na Praça Alexandre Gusmão e na Praça Cidade de Milão, no Bendito Mercado, na Rua Estado de Israel, na Vila Mariana, na Ofício Feira, na Praça Rotary, na Vila Buarque e na festa alemã Broonklinfest.

Nas intervenções “fora da calçada”, o Sidewalk Talk – São Paulo coordena diferentes iniciativas, dentre elas, vale destacar o apoio às crianças do fundamental 1 da Escola Estadual Conselheiro Antonio Prado, nos Campos Elíseos, e a disponibilização de espaço de escuta ativa à comunidade da USP Leste e aos alunos da escola de governo da ONG Escola Comum – MF.

A repercussão, sem um centavo gasto em assessoria de imprensa, é um diagnóstico por si só da falta de espaços de escuta e conversa no Brasil em tempos de crise econômica e política, precarização das relações de trabalho, desemprego, insegurança social, polarização e consequente debilitação da saúde mental

Assim, estivemos na mídia já desde o lançamento com o apoio do Catraca Livre e do portal São Paulo São, que também nos ofereceu uma coluna quinzenal para escrevermos sobre temas relacionados à escuta e à conversa e sobre a importância da construção de comunidade e da convivialidade. E não poderíamos deixar de citar o espaço que nos foi oferecido pelo programa CBN São Paulo da Fabíola Cidral e pela SP2 da Globo e o convite para participar do Festival Mais São Paulo da CBN no Centro Cultural São Paulo.

A repercussão destas iniciativas estão se desdobrando em um sem número de sincronicidades na construção de uma rede de organizações e pessoas preocupadas e apaixonadas pela escuta. A quem chamamos de “trovadores da escuta”, ou “escutadores” na missão de tornar a nossa cidade, nosso mundo, mais humano e fraterno, por meio da comunicação, que é o único meio de se articular o comum e construir uma comunidade.

 

Luiz Alfredo Santos é consultor na A3mais e e responsável pelo projeto Sidewalk Talk – Conversas na Calçada.

Patrícia Maria Martins é psicóloga clínica e responsável pelo projeto Sidewalk Talk – Conversas na Calçada.

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