Crédito imagem: Unsplash
Empreendedoras e empreendedores negros movimentam R$ 1,7 trilhão por ano no Brasil. E são maioria: mais da metade, cerca de 51%, dos brasileiros que empreendem são pretos ou pardos. Destes, 52% são mulheres. Por outro lado, esses mesmos empreendedores enfrentam muito mais dificuldades para conseguir investimentos, faturam menos e poucos empregam ao menos um funcionário.
Os dados do estudo Empreendedorismo Negro no Brasil, realizado pela aceleradora de empresários negros PretaHub, da Feira Preta, em parceria com a Plano CDE e JP Morgan, mostram só uma das muitas facetas do racismo no Brasil: a discriminação racial, que cria barreiras sociais, educacionais e culturais. No empreendedorismo, isso significa ter um caminho ainda mais longo e com menos oportunidades.
Além das barreiras do racismo e da representatividade, empreendedores negros encontram outro obstáculo: a percepção de maior burocracia e dificuldade de acesso à linhas de crédito. Segundo um estudo qualitativo elaborado pelo grupo Itaú Unibanco, os empreendedores negros entrevistados dizem que o relacionamento com instituições financeiras é praticamente nulo. Entre os motivos estão o desconhecimento, a falta de educação financeira ou mesmo falta de dinheiro ou garantias como fatores que inibem uma aproximação com os bancos. Ainda segundo o estudo, outras dificuldades têm raízes mais profundas no racismo, como a desvalorização de seu produto – as pessoas tendem a atribuir preços inferiores ao mesmo produto vendido por um empreendedor branco; a dificuldade de acesso a mercado – especialmente vender onde pessoas brancas já estão vendendo e o olhar da comunidade e familiares, que não enxergam empreendedorismo como trabalho – um fator relacionado com a baixa autoestima.
Como uma das formas de trazer o assunto ao debate, a ONU instituiu o 21 de março como o Dia Internacional da Eliminação Discriminação Racial. Nessa data, no ano de 1960, na África do Sul, quando vigorava o regime de segregação racial do Apartheid (1948-1994), os moradores do bairro de “Sharpeville”, da cidade de Johanesburgo, fizeram um protesto contra a Lei do Passe, que obrigava a população negra a portar um cartão que continha os locais onde era permitida sua circulação. Porém, mesmo tratando-se de uma manifestação pacífica, a polícia do regime de apartheid abriu fogo sobre a multidão desarmada resultando em 69 mortos e 186 feridos. O “Massacre de Sharpeville” passou a simbolizar a luta pela eliminação da discriminação racial em todo o mundo.
A celebração da ONU chama a atenção da sociedade sobre a responsabilidade de cada um no combate à intolerância racial. Segundo a entidade, “a discriminação racial é um veneno que enfraquece os indivíduos e as sociedades, perpetua a desigualdade e alimenta a raiva, a amargura e a violência”.
Quem são os empreendedores negros?
Segundo a pesquisa da PretaHub, os afroempreendedores estão divididos em três perfis: vocação, engajamento e necessidade. Quem empreende por vocação tem mais familiaridade com a atividade que exerce e o desejo de ser autônomo, às vezes somados a dificuldade em se adequar no mercado de trabalho. A maioria é formalizada (possui registro MEI) por necessidade de estabelecer contratos de prestação de serviços.
Já quem empreende por engajamento tem o desejo de empreender mas somado à vontade de exercer atividade autoafirmativa, voltada para o público negro ou os têm como maioria. São negócios que oferecem serviços como turismo afrocentrado ou produtos específicos para cabelos crespos e cacheados, por exemplo.
Os que empreendem por necessidade, são motivados pelo desemprego e familiares e amigos muitas vezes são parceiros de trabalho. A maioria é mulher, está a frente de negócios precários ainda não é formalizada.
De acordo com o Instituto Locomotiva, 68% dos brasileiros adultos presenciaram alguma cena de humilhação ou discriminação racial no último ano. E 71% dos negros no Brasil foram vítimas ou presenciaram alguma situação de racismo no mesmo período. O racismo traz consequências diretas sobre a desigualdade econômica do nosso país:
– 57% dos empreendedores negros acreditam que pessoas negras sofrem preconceito quando tentam abrir seu próprio negócio no Brasil.
– A renda média do empreendedor negro é metade da renda do empreendedor não negro.
– 19% dos empreendedores negros estão nas classes A/B. Entre os não negros são 45% nessas classes.
– 82% dos empreendedores negros estão na informalidade, enquanto entre os não negros são 60%.
O desafio do coronavírus
São esses empreendedores por necessidade os mais atingidos em momentos de crise. Atualmente, com as medidas de contenção da pandemia do novo coronavírus em todo o país, declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), esses trabalhadores sentem uma enorme queda nas vendas ou são obrigados a parar de trabalhar, perdendo a única garantia de fonte de renda. Muitas vezes a única da família.
Confira algumas dicas do Sebrae para enfrentar esse período:
> Faça um levantamento de despesas previstas para, no mínimo, os próximos dois meses, como aluguel, água, luz, fornecedores, entre outras. Defina as prioridades para pagamento e negocie valores e prazos, considerando uma possível redução no seu faturamento.
> Se for possível, potencialize a sua atuação no digital. Consumidores em casa terão mais tempo e necessidades para compras e contratações online.
> Monte uma rede com outros micro e pequenos empreendedores. Juntos, mantenham-se presentes nos principais canais digitais como Google Maps, classificados, e-commerce e redes sociais.
> Invista no serviço de entrega. Caso já possua, aperfeiçoe a logística e intensifique a divulgação. Canais como telefone, Whatsapp ou aplicativos de entrega ajudam a aumentar o volume de vendas.
> Se tiver colaboradores, libere-os para exercer as atividades de casa. Além dessa ser a recomendação das autoridades sanitárias, é uma forma de seu negócio não parar e, ao mesmo tempo, reduzir custos.
> Sempre que possível, priorize comprar de empreendedoras negras nesse momento de crise.
> Procure ajuda especializada. O Sebrae criou uma página especial em seu portal totalmente dedicada ao enfrentamento da pandemia, com uma série de conteúdos que ajudam as micro e pequenas empresas a se prepararem para superar a crise.
Nós por nós
Geovana Conti de Sá é, felizmente, uma exceção. Ela, que construiu uma carreira corporativa de sucesso na área de tecnologia, é sócia-fundadora da Youngers, empresa social de Curitiba (PR) que nasceu do desejo de trabalhar com jovens para que eles sejam impactados, inspirados e encorajados a ser uma geração que descubra ou restaure sonhos e realize propósitos.
Ao lado do marido, seu foco é a geração de renda, através da empregabilidade e do empreendedorismo de micronegócios em comunidades. A maioria dos alunos de suas turmas é negra – muitos deles refugiados, imigrantes ou egressos do sistema carcerário – e seu grande sonho é fazê-los alcançarem os mesmos espaços que ela tem o privilégio de ocupar.
“Meus pais me proporcionaram uma educação de base que permitiu um diferencial competitivo quando eu entrei no mercado. E eu sempre olhava ao meu redor e não via outros negros. Claramente eu era uma exceção a regra do mundo corporativo e isso tornou muito importante para mim abrir caminhos para que negras e negros tenham as mesmas oportunidades que eu tive”, conta.
Em uma pesquisa realizada pelo Procon-SP sobre discriminação racial nas relações de consumo, de 2010, a maioria dos entrevistados disse haver presenciado atitude discriminatória de cor ou raça no momento da compra de um produto ou na contratação de um serviço. Com os alunos de Geovana não é diferente. Um exemplo, segunda ela, é quando fazem a apresentação de algum produto alimentício.
“Quando é um aluno branco, há a sensação de que o bolo dele é mais limpo que do aluno negro. E isso não são palavras minhas. São deles. Tanto que esses alunos tendem a investir mais em uniformes brancos para passar essa ideia de limpeza. Eles sofrem por serem negros e por serem pobres”, lamenta.
Dentro da Youngers, Geovana trabalha na tentativa de combater qualquer tipo de desigualdade, inclusive a racial. E faz isso incentivando o empreendedorismo. Para isso, começa trabalhando a autoestima e o orgulho de ser quem se é. “A primeira coisa que fazemos é ajudá-los a ser enxergarem como gente, se reconhecerem como seres humanos com grande potencial. Incentivamos a aceitarem a sua negritude, o uso do cabelo natural, o corpo como ele é”.
Apesar de ter tido uma vida privilegiada, muito diferente da realidade de seus alunos, Geovana garante que isso não a afastou da luta pela população negra. “Eu sou negra e quero ver mais negros junto comigo e o que eu posso fazer é abrir caminhos para todos esses ambientes em que estou e que eles ainda estão chegando. Toda vez que pego o microfone em palestras e homenagens eu faço questão de perguntar: Cadê outras pessoas negras? Estou cumprindo cota?”.
Como se vê, as dificuldades fazem parte da jornada. O importante é enfrentá-las, uma a uma, com coragem e determinação, mas também com muita empatia e solidariedade, sem nunca esquecer que juntas somos mais fortes. Concorda?
Esta matéria pode ser encontrada no Itaú Mulher Empreendedora, uma plataforma feita para mulheres que acreditam nos seus sonhos. Não deixe de conferir (e se inspirar)!