Apesar de recentes, os fenômenos de isolamento, de trabalho remoto e de incertezas a respeito do futuro trazidas pelo coronavírus têm provocado uma onda de sofrimento psíquico em muitas pessoas.
Este ensaio, escrito no calor dos acontecimentos, procura oferecer modos de compreender estes fenômenos e recomendar ações que apoiem gestores e equipes a melhor responder a este contexto, sustentando a coesão das equipes e apoiando o bem estar de trabalhadores e suas famílias.
É em Bauman que me apoio para oferecer uma compreensão deste momento. Para ele, a modernidade contemporânea, definida como líquida, está marcada pelo crônico movimento de redução da solidariedade, do enfraquecimento dos sistemas de proteção social, da fragilização do sujeito de direitos e pela perda de uma série de referências éticas, políticas e subjetivas que terminam produzindo indivíduos amedrontados, isolados e em grande competição.
Enquanto Bauman fala de uma perspectiva crônica armada ao longo do século 20, a pandemia da Covid-19 agudiza o fenômeno de perda de referências e de ampliação de incertezas, materializando num curto espaço de tempo e com elevada densidade, fantasmas que havíamos nos acostumado a manejar para sobreviver nestes tempos tão exigentes
Como reconhecer a diluição, agora aguda, de nossos modos de estar e de fazer, e de nossas estruturas de certezas?
OS FENÔMENOS E SEUS EFEITOS
Os enquadres de espaço e tempo de trabalho mudaram. E mudar um enquadre significa mudar todo um conjunto de operações reais e simbólicas que têm elevado poder organizador para as pessoas.
O espaço físico, os recursos materiais, o contato com os outros, os horários de trabalho, os modos de circular e conversar e mesmo as roupas que usamos definem nossos jeitos de ser e estar no trabalho. Para alguns de nós, este enquadre é profundamente necessário e mudar tais elementos pode gerar desorganização subjetiva e sofrimento.
O trabalho no espaço domiciliar traz ainda outras implicações. Se o isolamento é individual ou em família, cada pessoa será demandada a cuidar de si e dos outros, da higiene e da alimentação, equilibrar trabalho e ócio, num fluxo de tarefas e relações também novo e que trará desafios. A mudança do enquadre não se resume apenas ao que se perdeu, mas ao que emerge na nova realidade que se arma ao nosso redor.
A ideia de integridade individual e familiar está ameaçada. Embora saibamos lidar com certos níveis de risco no cotidiano, operamos com a perspectiva de que nossa vida não está sob constante ameaça.
Acreditamos nos arranjos sociais que nos cercam e entendemos que a casa, a escola, a família ou o Estado são capazes de assegurar nossa existência, acreditamos que eles cuidam de nós. No momento em que um vírus rompe esta ideia, evidenciando que o que nos protege é insuficiente para preservar a vida, as coisas podem tornar-se difíceis e produzir sofrimento
A segurança financeira das pessoas está ameaçada. Sabemos como é importante ter perspectivas de receita e confiar em nossa capacidade de honrar despesas futuras.
No curto prazo, a receita assegura a satisfação de necessidades básicas como alimentação, abrigo e medicamentos. No médio prazo, permite a aquisição de bens de consumo duráveis e o planejamento de atividades de lazer e cultura. No longo prazo, está conectada, por exemplo, à aquisição da casa própria, sonho de inúmeros brasileiros.
Em um cenário cujos índices de desemprego e precarização do trabalho já alarmavam, a crise atual lança enorme sombra sobre nós. As projeções de retração do PIB e de depressão econômica somadas à paralisia dos mercados e à ampliação do desemprego ameaçam nossa segurança no presente e no futuro. A perspectiva de um amanhã sem trabalho, dinheiro e apoio social é também evidente fonte de sofrimento psíquico.
O sentido do trabalho está em xeque. Enquanto os prontos-socorros estão cheios, hospitais de campanha são montados em estádios de futebol e inúmeros profissionais fazem a linha de frente da saúde, é de se esperar que o sentido de algumas de nossas atividades laborais evapore .
Enquanto as manchetes relatam mortes, é difícil ver sentido nos números de uma planilha ou na produção de um relatório qualquer. A energia mobilizada pelo combate à Covid-19 rivaliza com o sentido das tarefas e também pode produzir sofrimento
As perspectivas de futuro estão eclipsadas. Muitos calendários estão paralisados. Do futebol à escola das crianças, dos Jogos Olímpicos às eleições municipais, fomos obrigados a ceder a um interregno nas nossas projeções e agenda.
Some-se a isso a expectativa dos milhares de óbitos, a depressão econômica, as ameaças a nossa integridade e a perda de sentido do trabalho e nos vemos submersos em uma enxurrada de incertezas. O vazio que recobre o futuro e a crise que caracteriza o presente produzem dor e sofrimento e requerem atenção.
MANEJOS PARA ATRAVESSAR A CRISE
Em meio à aguda diluição de expectativas, ideias e certezas, é comum que nossos níveis de angústia estejam, portanto, mais elevados. De um ponto de vista metapsicológico, a energia subjetiva que costumamos investir em tarefas cotidianas e objetos comuns a nós precisa agora mudar de direção e distribuir-se em uma nova geografia afetiva. Esta transição pode seguir caminhos e tempos muito diferentes em cada um de nós, produzindo mais sofrimento.
Em certa medida, é este processo de transição de investimentos, de retração de certezas e ampliação do desconhecido, o gerador de angústias e conflitos dentro de nós e ao nosso redor.
Central nesta dinâmica, a angústia pode ser compreendida como o afeto sem coisa, energia sem destino, tensão nervosa cuja origem não é clara para nós, o que fortalece seu potencial agressivo. Para manejar este fenômeno nas organizações podemos iniciar com algumas estratégias.
Em primeiro lugar, é preciso compreender que o trabalho remoto não é uma reprodução do trabalho de escritório com um pano de fundo diferente. As jornadas de trabalho remoto precisam ser reduzidas em volume de tempo para que cada pessoa possa cuidar de seu espaço físico, alimentação, descanso e famílias, especialmente de crianças e idosos. Mesmo à distância, muitos de nós oferecemos suporte aos mais idosos, e isto é crucial neste momento
Em segundo lugar, na medida em que o trabalho remoto consome recursos materiais, como energia elétrica, conexão digital e equipamentos, é importante que cada organização avalie como apoiar os trabalhadores nestes investimentos. Um benefício provisório como um “vale home-office” pode ajudar nas contas fixas e, em alguns casos, viabilizar a aquisição de um computador.
Em terceiro lugar, é importante que as organizações mantenham pulsos de comunicação que demonstrem coesão organizacional. Mensagens periódicas num “informe diário” ajudarão as pessoas a saberem que seguem a bordo, que a organização está sendo cuidada e que as coisas não estão à deriva. Uniformizar a comunicação pode ser bastante tranquilizador.
Em quarto lugar, é preciso sustentar a agenda organizacional, garantindo que haja tarefas a cumprir e que nossos papéis e responsabilidades não desapareceram. Isto não significa manter os planos originais e negar a crise. Ao contrário, é preciso conectar a organização ao contexto, não apenas cuidando do que é central ao negócio, mas também apoiando a equipe a realizar ações de solidariedade num momento em que toda ajuda é importante.
Em quinto lugar, é fundamental que uma das maiores crises de nossa história seja vivida com diálogo, conversas de qualidade e com a intensificação dos vínculos e das responsabilidades mútuas. O tecido social brasileiro requer coesão neste momento. E isto começa nos espaços em que convivemos, começa dentro das organizações.
Boas conversas podem enriquecer nossas percepções sobre as coisas. E canais ativos de diálogo, como a escuta empática ou salas de conversa, podem nos ajudar a evitar a armadilha do “salve-se quem puder” e a do “eu contra todos”. Precisamos de conexões e sinergia
Para concluir, é recomendável que regulemos nossa busca por informações. A própria Organização Mundial da Saúde lembra que a busca frenética por notícias pode drenar energias e ampliar a sensação de medo e desamparo. A seleção de fontes fidedignas e a seletividade no compartilhamento de dados, histórias, queixas e orientações nas redes sociais podem ajudar a reduzir os danos a quem já está angustiado.
No ambiente organizacional, isto não é diferente. Sustentar a coesão e os compromissos das organizações com os trabalhadores e com a sociedade, escutar de modo genuíno, acolher o sofrimento, partilhar as vulnerabilidades, ser comedido na busca e oferta de notícias e procurar o que há de melhor e mais humano em nós são maneiras de apoiar a sociedade a atravessar a crise atual.
É preciso responder ao presente com seriedade, ciência e respeito ao próximo. É preciso apostar que, juntos, poderemos reconstruir um país mais equânime e justo do outro lado do túnel. Enxergaremos as luzes.
Doutor em saúde pública pela Universidade de São Paulo e psicanalista pelo Centro de Estudos Psicanalíticos, Rogério Silva, 47, é sócio da Pacto Organizações Regenerativas e um dos iniciadores da Regenera, comunidade aberta de aprendizagem sobre culturas regenerativas. Dele, o Draft já publicou um Lifehackers em 2018 (leia aqui).
A devoção à "divindade" Trabalho nos deixou doentes. Fabrício Oliveira, CEO da Vockan, explica como conseguiu implementar a semana de quatro dias em sua empresa (e por que quase toda companhia deveria fazer o mesmo).
Como reagir rapidamente às ameaças em um mundo onde as certezas mudam a cada instante? Lidar com esse desafio (na vida e no trabalho) é o tema do novo livro da consultora Tonia Casarin. Leia um trecho.
Marcelo Nakagawa, professor de inovação do Insper, derruba mitos e explica como pequenas e médias empresas podem e devem embarcar na transformação digital (se não quiserem comer poeira da concorrência e fechar as portas).