por Gabriel Pinto
O que você acha da ideia de um carro autônomo do Uber ir buscar sua avó de 85 anos para uma consulta médica? E se eu te disser que um novo software utilizado pelo governo poderia ligar para os milhões de brasileiros todos os dias para monitorar a saúde de cada um (economizando ainda uma fortuna em telemarketing)? Ou que uma empresa de Tecnologia da Informação indiana executa por 10% do preço o que a área de TI da sua empresa executava?
São hipóteses que pareciam muito distantes em janeiro de 2020. Acontece que a humanidade foi surpreendida por uma pandemia com consequências nocivas para diferentes dimensões de nossas vidas. Nos exemplos aí de cima, significa dizer que o emprego de mais de um milhão de motoristas de aplicativo e de táxi estão ameaçados. O efeito da solução de inteligência em telefonia poderia empurrar meio milhão de profissionais de telemarketing para o olho da rua.
Escrevi o livro Passaporte para o Futuro com o objetivo de preparar os profissionais para o que está acontecendo no mercado profissional e que vai se acelerar nas próximas semanas.
Mais do que nunca será necessário se reinventar para a acompanhar a transição que estamos vivendo com a crise da pandemia e suas consequências sobre a digitalização das nossas vidas
O fato é que o futuro chegou mais rápido sem avisar. Na economia, o cenário prospectivo é de retração econômica com efeitos perversos sobre a produção e o emprego. Está anunciada uma profunda transformação nos perfis das profissões com perdas incontáveis de postos de trabalho.
As novas tecnologias penetraram em nossas vidas e atuam mudando radicalmente a forma como vivemos. Nosso dia a dia pode ser armazenado em grandes bancos de dados, produzidos por nós mesmos desde a hora que acordamos até a hora em que vamos dormir.
A inteligência artificial (e sua capacidade enorme de processamento) já está por trás de diversas tecnologias presentes em nosso cotidiano. Se, por um lado, elas nos liberam da execução de tarefas rotineiras e arriscadas, por outro representam uma importante concorrência para os profissionais.
Ganhos de eficiência e produtividade permitidos pelos robôs hoje parecem ainda mais próximos diante da necessidade que se tem de distanciamento dos seres humanos. O futuro que parecia distante se aproximou e veio sem ser anunciado bater na nossa porta… O que irá acontecer no futuro do trabalho?
Se esta crise pode servir para algo produtivo e revolucionário, pense que essa é a chance de se ter acesso à informação útil para orientação rumo ao futuro do trabalho. Cada uma das habilidades apresentadas neste livro tem um papel importante para o desenvolvimento dos seres humanos. Elas podem e devem ser desenvolvidas.
Aproveito e deixo aqui um trecho do capítulo “Vai ter trabalho no futuro?”. Você encontra mais em Passaporte para o Futuro, lançado hoje, 1º de maio, na Amazon (48 reais a versão digital e 65 reais a impressa).
Há 200 anos, grandes invenções vêm provocando importantes mudanças na força de trabalho, refletindo a busca histórica pelo aumento da produção e consequente redução de custos dos produtos oferecidos. Essa equação implica a substituição do trabalho humano. Máquinas têxteis e computadores constituem dois importantes exemplos dessas invenções, ditas disruptivas.
De lá para cá, grande parte do trabalho físico e manual, realizado pelo ser humano, foi substituída. Olhando para trás, sem considerar os sentimentos das pessoas que perderam seus empregos na época, parece que essas transformações geraram algo de muito bom. Não há como negar que, cada vez mais, as máquinas fazem nosso trabalho. A pergunta que fica é por que então existem tantos empregos.
Vários autores se debruçaram sobre o tema, entre os quais o economista David Autor (Autor, 2015), que parece ter uma visão mais coerente.
O autor e pesquisador americano não tem medo do futuro do trabalho, justamente por olhar para trás e ver que sempre a humanidade encontrou seu caminho para superar os desafios da substituição da mão de obra.
Para ele, dois importantes fatores devem ser levados em conta: o primeiro é o princípio do Anel Circular, que determina o tipo de trabalho que fazemos. O segundo determina que os Humanos Nunca Têm O Suficiente, o que se reflete na existência dos novos empregos.
O PRINCÍPIO DO ANEL CIRCULAR (O-RING PRINCIPLE)
A denominação Anel Circular (O-ring principle) é originária da tragédia ocorrida com a nave Challenger em 1986. O acidente foi ocasionado por falha em um dos anéis de vedação, parte de um mecanismo supercomplexo, projetado para ser à prova de falhas. No caso em questão, um simples elo da corrente foi o responsável por despedaçar um projeto bilionário e acabar com as vidas de alguns astronautas.
Mas o que isso tem a ver com o mundo do trabalho?
Após o desastre da Challenger, o economista de Harvard Michael Kramer desenvolveu, em 1993, uma importante equação, batizada como equação do Anel Circular, que nada mais é do que uma função ordenadora, que divide a produção em diferentes etapas de trabalho interligadas, assim como elos que formam uma corrente.
Para que a missão funcione e o produto seja entregue, no modelo de Kramer, é preciso que todos os elos da produção funcionem. Se um elo da corrente cair, cairá também toda a corrente. Olhando de uma outra maneira, a teoria de Kramer surpreende positivamente: as melhorias na confiabilidade de qualquer link da cadeia aumentam o valor global da produção. Na medida em que todos os outros links se tornem robustos e confiáveis, a importância de seu link se tornará mais essencial.
Como o mundo não é das máquinas – e sim dos seres humanos – após uma sequência de etapas automatizadas, a parte que couber ao ser humano será necessariamente valorizada
Várias profissões já passaram por experiências similares, que ajudam a evidenciar esse efeito. Os caixas de banco, por exemplo, tiveram que enfrentar diretamente a concorrência dos caixas eletrônicos automáticos. O efeito imediato foi a gritaria sobre o emprego de caixas, os quais logo identificaram, nessa nova concorrência, a perda de seus empregos.
Num primeiro momento, o número de caixas por filial de agência bancária caiu cerca de um terço por conta da substituição do trabalho. Ocorre que, num segundo momento, ficou ainda mais barato abrir novas agências, o que fez com que o número de agências bancárias aumentasse em cerca de 40% no mesmo período. O resultado líquido foi a abertura de novas agências e a contratação de mais caixas. A diferença é que esses caixas passaram a fazer um trabalho um pouco diferente, à medida que as tarefas rotineiras de manuseio de dinheiro diminuíam.
O que aconteceu foi uma mudança no perfil das atividades realizadas. Os antigos caixas passaram a atuar mais como vendedores, criando relacionamentos, resolvendo problemas e apresentando aos clientes novos produtos, como empréstimos em cartão de crédito e carteiras de investimentos. No dia a dia das pessoas, isso implicou a existência de mais caixas, agora fazendo um trabalho mais exigente e desafiador em termos cognitivos.
Há um princípio geral aqui: a maior parte do trabalho que realizamos requer uma multiplicidade de habilidades, conhecimento técnico e inspiração intuitiva no domínio das atividades executadas. Nas palavras de Thomas Edison: “Em geral, automatizar algum subconjunto dessas tarefas não torna outros desnecessários”
De fato, isso os torna mais importantes. No resultado geral, custos são reduzidos e há mais espaço para especialização ou criação de novos serviços. No final das contas, espera-se um aumento do valor econômico da produção.
O tipo de trabalho que os caixas eletrônicos realizavam era repetitivo e automatizável. Mas isso não torna a profissão de caixa supérflua, pois a substituição pelos caixas eletrônicos evidenciou a importância das habilidades do ser humano na resolução de problemas e no relacionamento com os clientes.
Esse mesmo princípio se aplica na construção de um edifício, na realização do diagnóstico de um paciente ou em uma aula, ministrada para uma plateia repleta de estudantes. Nossas ferramentas melhoram a tecnologia, ampliam nossa influência e aumentam a importância de nossa experiência, julgamento e criatividade.
Outro dia, fui ao banco para tentar resolver um problema em uma das minhas contas pessoais. A atenciosa atendente perguntou qual era minha dúvida e como poderia me ajudar. Fiquei contente e confiante com a fala dela.
Ela ficou um tempo tentando resolver no computador algo que, na minha cabeça, deveria ser simples. Alguns minutos se passaram, e eu percebi que o processo de busca pela informação não estava sendo tão fácil quanto eu imaginara.
A agência do banco era grande, mas estava vazia. Era definitivamente de outro tempo. Hoje em dia quase ninguém vai fisicamente ao banco resolver alguma questão. Afinal de contas, existem tantas facilidades que dificilmente abrimos mão da comodidade da nossa casa para ir até lá.
Enquanto esperava pela solução, comecei a conversar com Emília (esse era o nome dela) sobre o Futuro do Trabalho e contei a ela que os bancos irão investir muito em robôs humanoides nos próximos anos. Ela estava acompanhando o tema, e isso lhe trazia algum receio, mas não senti grande preocupação.
Eu não estava entendendo a demora, até que veio a explicação retumbante. Emília teve que “enganar” o sistema, segundo as palavras dela. Para mim, significou que quando a programação não deu conta do recado, Emília estava pronta para encontrar a solução. Não tive como não conter minha alegria, saí satisfeito tanto pela preservação do emprego da Emília como pela esperança na humanidade.
SERES HUMANOS NUNCA TÊM O SUFICIENTE
Creio que os trabalhos tipicamente humanos ganharão mais importância, à medida que as tarefas meramente repetitivas forem substituídas pelas máquinas. No Brasil, por exemplo, houve uma mudança radical na agricultura. Há 100 anos, a maior parte da população era rural e vivia da agricultura. Hoje, menos de dez por cento da população brasileira produzem o suficiente para abastecer uma nação de 200 milhões e ainda exportar para o mundo. Certamente, não é porque estejamos comendo menos.
A agricultura é apenas um dos setores atingidos pela mudança no trabalho. Muitos dos setores em que trabalhamos agora, como saúde, finanças, seguros, eletrônica e computação, também têm passado por grandes mudanças.
No entanto, a enorme gama de novas possibilidades, trazidas pelas novas tecnologias, trouxe para os lares, para as lojas e para a prestação de serviços benefícios enormes. Os ciclos de produto, que explicam determinados produtos, desde seu desenvolvimento até a saturação do mercado, dizem um pouco do que somos.
Gastamos muito com produtos que, em um período muito recente, tornaram-se acessíveis e objeto de desejo da vida cotidiana. Veículos utilitários esportivos, aparelhos de ar condicionado, computadores e dispositivos móveis eram inatingíveis, caros ou simplesmente não haviam sido inventados há um século, porque a automação congela nosso tempo e aumenta o escopo do que é possível.
Inventamos novos produtos, novas ideias, novos serviços, que exigem nossa atenção, ocupam nosso tempo e estimulam nosso consumo.
É natural se questionar sobre a utilidade de certas coisas e associá-las à frivolidade e à superficialidade. Os jogos do Pokémon, o turismo de aventura e os sapatos Christian Louboutin são considerados, para muitos, objetos de desejo, e nada têm a ver com o princípio da utilidade econômica.
Nessa discussão, o mais importante é o fato de que muitas pessoas estão dispostas a trabalhar duro para adquirir alguns desses objetos de consumo. Para atender ao padrão de consumo de vida média em 1915, o trabalhador em 2015 precisaria trabalhar apenas 17 semanas por ano.
Ocorre que a maioria das pessoas não escolhe fazer isso. Elas estão dispostas a trabalhar arduamente para colher a recompensa tecnológica disponível. A abundância material nunca eliminou a escassez, como se pode perceber nas palavras do economista Thorstein Veblen: “A invenção é a mãe da necessidade”.
Se você concorda com o princípio do Anel Circular e com o princípio do Ser humano é insaciável, podemos seguir adiante. Para David Autor e outras grandes referências – incluindo o Fórum Econômico Mundial – a grande resposta é que sim, sempre haverá empregos.
Então, não devemos nos preocupar com a automação e a perda de empregos, que tudo se resolverá naturalmente? Claro que não é bem assim.
A automação cria riqueza, permite que trabalhemos mais em menos tempo. Só que não existe uma lei econômica que garanta a utilização dessa riqueza ou que afirme não valer a pena se preocupar com o futuro. O problema é que muitos desses empregos não são bons, e muitos cidadãos não podem se qualificar para os bons empregos que estão sendo criados, fato que ocorre em grande parte do mundo desenvolvido
Se, por um lado, você tem empregos com altos salários – como médicos, programadores e gerentes de marketing – por outro lado, existe ainda o crescimento dos empregos de baixa qualificação – como faxineiro, auxiliar de segurança e serviços domésticos.
Empregos de classe média, como posições operacionais e de produção, alguns empregos de escritório e posição de vendas vêm caindo repetidamente. As razões por trás dessa queda não são misteriosas; muitos desses trabalhos de habilidade média usam regras e procedimentos bem compreendidos, que podem ser cada vez mais codificados em softwares e executados por computadores.
Esse fenômeno acaba por criar o que os economistas chamam de polarização da política de emprego. A automação intensiva provoca, cada vez mais, o distanciamento entre os polos de emprego. De um lado aqueles que, por conta do excesso de mão de obra, trabalham em empregos mal remunerados, cuja responsabilidade principal é cuidar do conforto e da saúde dos mais ricos.
De outro lado, atividades altamente qualificadas, reservadas às pessoas que tiveram acesso à informação, formando um conjunto de profissionais altamente remunerados e realizando trabalhos interessantes. Enquanto a escada econômica sobe, reduz-se o tamanho da classe média.
A grande ameaça é que a sociedade se torne ainda mais estratificada. Já enfrentamos transformações econômicas igualmente importantes no passado – e as enfrentamos com êxito – quando a automação eliminou um grande número de empregos. A esperança é de que o mesmo ocorra agora.
Gabriel Pinto é especialista em Futuro do Trabalho, economista, pesquisador, líder de projetos de inovação e escritor. Graduado em Economia pela PUC-Rio, Mestre em Administração de Empresas pela UFRJ, coordena o Centro de Estudos e Projetos em Futuro do Trabalho, é empresário da área digital, diretor da Associação Brasileira de Propaganda (ABP) e fundador da plataforma qualquerfuturo.com.
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