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Por que tanta gente está voltando às ruas? Estão todos loucos? De certa maneira, sim. Entenda o motivo

Rosana Zakabi - 1 jun 2020
Rosana Zakabi, jornalista, psicóloga, psicanalista e autora do blog Uma Conversa Franca.
Rosana Zakabi - 1 jun 2020
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Na terça-feira (26), o Brasil bateu um novo recorde na pandemia do coronavírus, com 391 222 casos confirmados da doença e 24 512 mortes, de acordo com os dados do Ministério da Saúde.

Somos atualmente o segundo país com a maior quantidade de ocorrências de Covid-19 no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Superamos a Rússia e o Reino Unido e também passamos a China, a Itália e a Espanha, que já foram os epicentros da enfermidade.

Em ocorrências de óbitos por dia, viramos infelizmente os campeões mundiais: nossa média diária passa de 1 000; nos Estados Unidos, ficou em 592 na última terça, segundo levantamento do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC

Devido à subnotificação de casos, a situação no Brasil é, provavelmente, ainda pior do que mostram os números oficiais; pesquisas indicam que o montante real de doentes no país pode passar de 1 milhão.

Mesmo diante de números tão dramáticos e tantas evidências, os brasileiros continuam desrespeitando o isolamento social.

Seria um comportamento compreensível se a curva de contágio estivesse em queda, mas ocorre justamente o contrário. Por que tantas pessoas estão agindo assim? Enlouqueceram?

A resposta é: mais ou menos.

QUANDO A REALIDADE É DURA DEMAIS, ENTRAMOS EM MODO “DELÍRIO COLETIVO”

Não é exagero dizer que está ocorrendo em nossa sociedade uma espécie de delírio coletivo. Trata-se de um artifício, uma maneira de negar a realidade à nossa frente para que a situação não pareça “tão ruim assim”.

As redes sociais, videoconferências e grupos de WhatsApp viraram um terreno fértil para a disseminação de ideias que contrariam os dados oficiais. Uma das mensagens que aparece com frequência é aquela questionando a quantidade de mortes por Covid-19. 

Há um consenso entre os órgãos de saúde de que há mais óbitos ocorrendo do que o montante divulgado oficialmente, pois nem todos entram para as estatísticas devido à falta de testes ou pelo atraso no resultado dos exames

Ainda assim, tem gente afirmando (de forma equivocada) exatamente o oposto: que as mortes estariam “inflacionadas”, pois incluiriam falecimentos por outras causas, além do novo coronavírus.

Um compartilhamento emblemático foi o de uma notícia em abril mostrando um caixão que teria sido enterrado vazio em Manaus para incrementar o número de óbitos na cidade – que, àquela altura, batia recordes de ocorrências no país.

Descobriu-se depois que a reportagem era de 2017, sobre um assunto completamente diferente (denúncia sobre o golpe do seguro de vida) e em outro município bem longe dali: São Carlos, no interior paulista. 

SEGUNDO A OMS, “IMUNIDADE DO REBANHO” SÓ FAZ SENTIDO QUANDO HÁ UMA VACINA

Nas últimas semanas, muita gente está voltando às ruas sob outra justificativa: a da “imunidade do rebanho”. Segundo essa teoria, quando mais de 60% da população já tiver contraído a doença e adquirido imunidade, o vírus não circulará mais e a doença desaparecerá.

No entanto, segundo a Organização Mundial da Saúde, essa prática não é recomendável no caso da Covid-19, pois ela só é bem-sucedida quando existe vacina; sem ela, a suposta “imunidade” vem acompanhada de muitos infectados — e uma quantidade trágica de mortes

Além disso, ainda não se sabe, ao certo, se todas as pessoas que contraem a doença tornam-se imunes. Estudos preliminares realizados na Europa e nos Estados Unidos mostram que poucas pessoas desenvolveram anticorpos após se contaminarem.

Essas constatações não são suficientes para que as pessoas fiquem em casa. Muitas delas, se não estão acusando as autoridades de estarem inflacionando os números por questões políticas, justificam sua volta às ruas porque “falta de trabalho mata mais do que Covid-19”.

FREUD JÁ DIZIA: CADA UM DE NÓS, EM ALGUM PONTO, AGE DE MODO PARANOICO

Não é só por ignorância ou ausência de empatia que esses indivíduos agem dessa maneira; trata-se de uma espécie de instinto de sobrevivência psíquica. É menos doloroso pensar assim do que ter de encarar a ameaça invisível, da qual não se tem controle algum.

O vírus virou o fantasma, o bicho-papão que ameaça a criancinha que ainda não sabe como se defender; que nos obriga a ficar confinado em casa, longe do convívio social, da liberdade.

Mais do que isso: passar 24 horas por dia sob o mesmo teto com o marido ou a esposa e os filhos pode despertar o “monstro” que existe dentro de nós. E causar sentimentos ambíguos e de frustração ao percebermos que não somos pais, esposas ou maridos perfeitos 100% do tempo

Tudo isso é apavorante. “Enlouquecemos” para não deparar com a miséria humana.

Em seu texto “O Mal-Estar da Civilização”, de 1930, Sigmund Freud já dizia que cada um de nós, em algum ponto, age de modo semelhante ao paranoico, corrigindo algum traço inaceitável do mundo de acordo com seu desejo — e inscrevendo esse delírio à realidade.

Grande número de pessoas atua assim de maneira conjunta, na tentativa de assegurar a felicidade e proteger-se do sofrimento. E quem partilha o delírio não o percebe. 

OSCILAR ENTRE A “NEGAÇÃO” E A “BARGANHA” NÃO VAI NOS SALVAR DO VÍRUS

A psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross, autora de Sobre a Morte e o Morrer, escrito em 1969 e republicado diversas vezes, coloca a “negação” como o primeiro dos cinco estágios pelos quais passa o indivíduo que recebe a notícia de que está com os dias contados.

Nessa fase, o sujeito age como se esse problema não fosse com ele. Há ainda o estágio da “barganha”, na qual se negocia com uma entidade superior (Deus) um milagre para a cura – ou para a não contração da doença, se aplicarmos essa teoria para a Covid-19.

Pode-se dizer que, nesse contexto, quem burla o isolamento social oscila entre esses dois estágios, a negação e a barganha. 

Tanto na teoria de Freud como na de Kübler-Ross, o que fica denotado é que usamos esses recursos fantasiosos porque a realidade à nossa frente é tão dura que é melhor fingir que ela não existe 

O problema, no caso da Covid-19, é que, se a gente simplesmente ignorar, colocar “para baixo do tapete”, as consequências serão imediatas e avassaladoras. Não temos para onde fugir.

É urgente encararmos essa questão. Devemos admitir que a doença existe, sim, e pode ser fatal. Se não adotarmos as medidas propostas pela Organização Mundial da Saúde e pela ciência, não sairemos desse looping.

Aí, o delírio pode virar o verdadeiro pesadelo. 

 

Jornalista formada pela UNESP, Rosana Zakabi trabalhou por quase 30 anos em veículos do Grupo Folha e da Editora Abril, incluindo Veja, Veja São Paulo e Viagem e Turismo. Atualmente também é psicóloga, atendendo em clínica, e psicanalista filiada Ao Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). É autora do blog Uma Conversa Franca, com artigos sobre assuntos relevantes do dia a dia sob um viés psicológico/psicanalítico.

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