“A maioria das startups que tentam inovar no setor de educação tem morrido”, diz Claudio Sassaki, 46. “Das centenas que começaram conosco talvez uma ou duas ainda estejam aí.”
A Geekie é uma sobrevivente. Fundada por Claudio e Eduardo Bontempo em 2011, a empresa desenvolve ferramentas digitais vendidas para escolas que visam personalizar o ensino e facilitar o acompanhamento da evolução de cada estudante. Nesses quase dez anos, afirma o empreendedor, foram cerca de 12 milhões de alunos impactados.
Na rede pública, o impacto se dá por meio de oferta gratuita de bolsas de estudo. Neste momento, a Geekie está disponibilizando 20 mil vagas para a plataforma Geekie Games, voltada ao aprimoramento dos alunos para prestar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e o vestibular.
A seguir, Claudio fala sobre os desafios de empreender em educação no Brasil, a guinada que levou à criação de sua principal solução, a Geekie One, os avanços e gargalos do setor, a polêmica do adiamento do Enem, além dos efeitos da Covid-19 e do distanciamento social sobre as escolas, a sua vida e o seu negócio.
Você cofundou a Geekie em 2011. Qual foi o grande desafio lá atrás?
Trazer talentos, que para muitos é um desafio enorme, para nós não foi tanto. Trouxemos quatro “meninos” que iam se formar no ITA, diziam que eram os melhores da Engenharia de Computação daquele ano, e eles foram responsáveis por tangibilizar em produtos as ideias que a gente tinha. Sem eles, não teríamos feito um décimo do que fizemos.
O grande desafio foi entender como funciona esse mercado. A gente não tinha essa noção de que [educação] era uma indústria muito hostil à inovação e a novos entrantes. Como em toda indústria onde há uma concentração muito grande, os que dominam são grupos consolidados, com capital “infinito”
As editoras estão sendo compradas por esses grandes grupos educacionais que hoje têm as marcas e controlam quase 100% [do mercado]. Quem vende livro para governo, através do Programa Nacional do Livro Didático, são uma meia-dúzia de editoras.
Como se dá essa concorrência com as editoras?
É uma briga muito desigual. Enquanto uma grande editora tem um exército de vendedores que viajam pelo Brasil, você, como empresa menor, não tem recurso para isso. Também não temos o fôlego financeiro que uma editora tem de dizer: não compra dessa tal de Geekie que te ofereço meu material por dois anos de graça. Ela consegue gerar uma pressão muito forte para que a escola não tenha interesse em te adotar.
Geralmente essas editoras têm o material [didático] do Infantil ao Ensino Médio, vendem de ponta a ponta. Para uma empresa que está começando, montar esse conteúdo inteiro é custoso, leva tempo. Então em geral você tem uma fatia só. E a editora pode falar [para a escola]: essa fatia eu te dou de graça, você não precisa comprar dessa outra empresa.
Falo como Geekie, mas qualquer empresa que esteja tentando entrar nesse mercado vai sofrer essa pressão brutal das editoras, é um “Davi e Golias”.
E qual foi a principal guinada nessa trajetória de quase dez anos?
Chegou um momento em que as nossas soluções tinham um impacto limitado na escola, complementavam um material didático que a escola já tinha. Eu não conseguia garantir que o impacto naquela escola era por causa da minha solução, porque tinha que integrá-la com outro material.
E havia esse desafio de modelo de negócio: a editora que vendia material para aquela escola iria fazer de tudo para “tirar” a Geekie, elas sempre nos viram como um potencial concorrente que poderia mudar essa indústria.
Então, em 2016, decidimos evoluir a nossa ferramenta Geekie Lab para substituir o material didático da escola. Migramos a Geekie para dentro do Colégio Internacional Radial, na Avenida Jabaquara, em São Paulo.
Ficamos um ano trabalhando de lá, com duas salas de aula, vendo o dia a dia e entendendo as dores dos professores, dos alunos, da coordenação, das famílias. E assim fomos criando o Geekie One, para ajudar nessas rotinas de forma mais eficiente e que pudesse substituir o livro didático impresso na sua totalidade
Em 2018 expandimos o Geekie One para 15 escolas, em 2019 fomos para 50, e neste ano começamos com mais ou menos 120 — e aí quando veio a Covid foi uma reviravolta, vimos que o Geekie One tinha muito potencial de ajudar escolas nessa situação. Porque aí, o que as escolas demorariam dez anos para evoluir em adoção de tecnologia, elas estão tendo que fazer assim [num estalo], né? Não teve escolha.
As escolas precisaram acelerar a digitalização “na marra”…
A escola perdeu o controle, a sala de aula veio para a sala das famílias. A escola ficou exposta, porque nunca nenhum pai assistiu à aula do seu filho. Agora você assiste à aula, julga, vê, avalia. Para o bem e para o mal.
E o Geekie One se encaixa muito bem nesse contexto. A gente captura todos os dados dos alunos, o que permite que a escola consiga fazer um acompanhamento de quem entrou e quem não entrou, quem aprendeu e quem não aprendeu. Na escola tradicional é tudo a posteriori, você só fica sabendo se seu filho foi mal depois da prova. Aqui não.
De que forma exatamente a plataforma permite personalizar o ensino e acompanhar a evolução dos estudantes?
O Geekie One é uma plataforma flexível que permite que a escola monte seu próprio currículo, então ela não fica engessada com um currículo pré-determinado por um sistema de ensino tradicional, por exemplo. Essa ideia de que toda escola é diferente ou é única é algo em que a gente acredita muito.
O desserviço que um sistema tradicional faz é de matar a criatividade do professor. Você tem que dar aula naquela sequência, daquele jeito, na forma que alguém pensou… Sem levar em conta o histórico ou a proposta da própria escola.
A escola, ao fazer essa configuração do próprio currículo, e o fato da plataforma ser toda digital, com textos, vídeoaulas, exercícios, atividades, animações, fotos, GIFs etc., tudo isso permite que cada interação com o Geekie One seja uma informação que a gente capture
Assim, a escola tem uma “foto” do aluno dia a dia, do que ele está e do que não está aprendendo, e de como essa turma está avançando. Isso permite uma fonte de informação muito rica para dizer: peraí, em vez de avançar na próxima aula, vamos voltar porque essa turma não conseguiu capturar esse conteúdo, desenvolver essa habilidade. Ou, na aula seguinte, separar a turma em grupos, com atividades mais ou menos desafiadoras.
Além disso, a gente gera um plano de estudos — semanal, quinzenal ou mensal, combinado com a escola — personalizado para cada aluno, com base nas lacunas que vamos identificando. Isso permite que nenhum aluno fique para trás, a menos que não se esforce. E a personalização também vale para o aluno de alto desempenho, que precisa ser mais desafiado, que quer avançar com mais rapidez e profundidade.
E como a crise da Covid-19 vem impactando a Geekie?
Essa pandemia mudou totalmente o negócio, em vários sentidos. Primeiro, o backlog de produtos: tudo o que a gente fazia que tinha a ver com dinâmica de sala de aula numa escola presencial deixa de ser relevante. Tudo o que facilita a interação professor-estudante em lugares diferentes passa a ser prioridade total.
Por exemplo, integramos o Hangout do Google Meet dentro do Geekie One, então o professor já consegue [acessar] com o próprio login. Além disso, criamos um canal para que os estudantes possam trocar, se comunicar.
Todas as formações presenciais de professores que a gente fazia, o acompanhamento pedagógico, tudo agora tem que ser remoto. As vendas deste ano estão sendo 100% remotas. Como vai voltar lá na frente, não se sabe ainda. Acredito que será um híbrido de presencial e remoto.
Antes, tínhamos 200 pessoas num lugar só, agora cada um na sua casa. Provavelmente no cenário pós-Covid, devemos ter um escritório itinerante, tipo um coworking, onde o movimento será mais fluido, sem obrigatoriedade de estar lá todos os dias.
Nesses quase dez anos de Geekie, você já pensou em desistir?
Ah, várias vezes. A gente não tinha ideia do desafio que era empreender com tecnologia em educação no Brasil. É o setor que, talvez, menos evoluiu nos últimos cem anos em adoção de tecnologia. Um setor historicamente muito conservador, arcaico.
É frustrante você saber que pode ser melhor, o dono da escola saber que pode ser melhor, mas por diferentes motivos você não conseguir tração… É um passo de cada vez. E com a pressão gigante das grandes editoras tentando exterminar o seu negócio porque você é uma ameaça à “galinha dos ovos de ouro”
Além disso, quem empreende em educação não é por causa do business, tem outros negócios muito mais interessantes do ponto de vista de oportunidade financeira. O sonho de quem empreende nesse setor é impactar a educação no país, levando também a solução para a rede pública, onde poderíamos fazer muita diferença.
Mas a incerteza política não é propícia para uma startup. Você investe o que tem e que não tem para fazer um projeto dar certo, mas se no final muda o Secretário de Educação, o seu projeto morre, sua startup morreu. Então a forma que encontramos de ajudar foi oferecer bolsas de estudo para os alunos dessas escolas.
Você nota avanços na educação brasileira nesses quase dez anos?
A BNCC, Base Nacional Comum Curricular, é um grande avanço. Do ponto de vista de política pública, padronizar o que os alunos têm que desenvolver ao final de cada ano, e com um olhar focado em habilidades e competências, foi um superavanço.
A consolidação do Enem como um instrumento de avaliação, um vestibular único, como porta de acesso para as faculdades, para financiamento, foi um passo muito importante. Mas enquanto não mudar o exame vestibular, você não fecha esse ciclo.
Precisa mudar o Enem para refletir esse olhar de habilidades e competências. Senão, é uma força muito grande nas escolas, [há] uma resistência a mudar esse olhar da decoreba, da memorização
E uma série de questões avançaram muito pouco. Começando pelo aprendizado. Por qualquer tipo de comparação, seja por testes locais ou comparativos, internacionais, tipo PISA, você vê que piorou. Acho que é reflexo da falta de consistência de uma política apartidária para a educação.
Enquanto a educação não for realmente prioridade, vamos viver essa situação de descaso, que começa pela formação e reconhecimento de professores.
Esse seria hoje o grande gargalo para a educação do país?
Ah, sem dúvida. Não tem como sair dessa situação sem um programa de formação, qualificação, remuneração, uma carreira mais interessante para esses professores.
A formação do professor é muito focada no conhecimento teórico, da disciplina que ele vai lecionar. Mas uma proporção gigante dos professores do Brasil não lecionam em disciplinas em que foram formados. E não existe uma prática de sala de aula, uma formação de condução, gestão de sala de aula, que é o dia a dia do professor.
Se aí já temos uma defasagem gigante, imagina agora nesse cenário de Covid, em que os professores foram “jogados” numa situação na qual obviamente não se sentem preparados para dar uma aula à distância, não foram treinados, não têm experiência com isso
Provavelmente, quando as escolas voltarem, em algum grau esse componente [online] ainda vai ser necessário, ainda vai se perpetuar por um tempo. Por tudo que tenho visto deve ser uma volta gradual, um rodízio de alunos. Essa defasagem [na formação] de professores, na minha opinião, ainda vai ter um efeito mais nocivo para os nossos resultados… Se em sala de aula a gente já sofria, imagina agora à distância?
A pandemia está escancarando a dificuldade das escolas trazerem a tecnologia para apoio tanto em sala de aula quanto em casa? E essas ferramentas digitais poderiam de fato transformar a educação aqui no Brasil?
Elas teriam condições de ajudar, e muito. Não acho que exista uma “bala de prata”, e se existisse não seria só a tecnologia. Eu começaria pela formação de professores. Mas a tecnologia, quando empodera o trabalho do professor, pode ser muito transformadora.
Vejo isso no meu dia a dia. Algo que o professor demora quinze minutos para fazer, você faz em dez segundos. Isso economiza um tempo que é muito valioso no dia a dia do professor
A tecnologia tem esse poder, teria esse potencial… Mas o acesso à tecnologia e a essa plataformas é desigual. Não dá para dizer que um aluno que estuda numa escola particular em São Paulo com uma mensalidade altíssima não tem acesso desigual que um menino da mesma idade que estuda numa escola pública e mora numa comunidade. Por mais que a ferramenta esteja disponível para os dois.
Quem tem um bom equipamento, notebook ou celular, e um acesso à internet com uma banda boa tem mais condições neste momento de pandemia de não deixar que essa defasagem seja tão grande do que um menino que não tem. Isso é inegável.
Como você viu a questão do adiamento do Enem?
Entendo por que o Ministério não quis adiar. O calendário escolar é sistêmico, tem campanha de matrícula, calendário escolar das universidades, toda uma rotina que gira em torno de um calendário que começa em janeiro. Deslocar isso, qualquer que seja o deslocamento… Nem consigo avaliar as consequências.
Por outro lado, dado que o Enem é um exame de extrema importância para quem quer acessar uma universidade pública, não tem condições de pagar [uma faculdade particular], um exame que acontece uma vez por ano, se não tivesse sido adiado seria muito prejudicial para quem neste momento não está tendo condições nenhuma de se preparar. Então sou a favor do adiamento por essa questão da desigualdade, acho que era inevitável.
E como você vê a atuação do Ministério da Educação?
Quantos ministros a gente teve nos últimos dez anos? Foram muitos. E você podia discordar ou concordar, mas sempre vi que existia uma visão, uma proposta. No governo atual, confesso que não vejo nenhuma proposta, articulação, capacidade de liderança que fizesse sentido — especialmente neste momento de isolamento, com tantos desafios para as escolas, em que uma articulação do Ministério poderia ser tão valiosa para minimizar o impacto e ajudar esses meninos e meninas que estão sendo privados de continuarem sua jornada escolar. Infelizmente, é uma pena.
Se você fosse hoje Ministro da Educação, quais seriam suas prioridades?
Minha preocupação número um seria: como consigo disponibilizar acesso e garantir que exista um acompanhamento para todos esses alunos de escola pública que neste momento estão privados do seu processo tradicional de aprendizagem?
Outro ponto tem a ver com o nivelamento. Quando a volta acontecer, as diferenças vão estar muito acentuadas. É inevitável que a gente tenha algum programa de reforço, de recuperação, bastante intenso para que essa turma não perca um ano da vida, para que a perda seja minimizada
E se eu fosse ministro, a maior parte do meu esforço seria em articular para que a educação realmente virasse uma prioridade. E começa pela formação do professor. Não tem nenhum outro caminho, não dá para falar de “soluções mágicas” sem investir e trabalhar para que a gente tenha um grupo de professores mais bem qualificados no Brasil.
A rotina de todo mundo mudou com a pandemia. O que teve de mudança mais aguda no seu dia a dia?
O lado bom é a proximidade, poder me organizar, estar com meus filhos o tempo todo, minha esposa também. Reforçou esses nossos momentos de família, esses vínculos.
Sempre acordei cedinho para fazer exercício, e isso continua valendo. Mas agora, das 7h30 às 9h30, fico com o meu filho de 6 anos, que está em processo de alfabetização e ainda não tem autonomia para estudar sozinho. Depois a minha esposa assume, e é assim que a gente tem conseguido manter a rotina saudável na medida do possível.
É desafiador. Mas, para ser sincero, eu me adaptei rápido, estou adorando. Não vou abrir mão de ter esse tempo com eles. Não volto mais ao que era antes, não.
A perspectiva branca e europeia molda desde cedo nossa visão de mundo. Recém-lançada no Web Summit, a edtech Biografia Preta quer chacoalhar esse paradigma aplicando uma “IA afro referenciada” ao ensino de História (e demais disciplinas).
Movida pelo lema “siga sua paixão”, Letícia Schwartz foi viver nos EUA e fez sucesso com livros sobre gastronomia. Até que se apaixonou pela educação e fundou uma consultoria que ajuda alunos a ingressar em faculdades americanas.
Criado no interior gaúcho, Alsones Balestrin fez do seu doutorado na França um trampolim para voos mais altos. Foi secretário de Inovação, Ciência e Tecnologia do RS e hoje capacita empreendedores por meio da edtech Startup Academy.