Sempre gostei de esporte, embora matasse aula de educação física no colégio.
Porém, nunca fui competente o bastante para ir muito além da participação em competições nacionais de remo com a camisa do Botafogo.
Busquei, então, viver o sonho olímpico através do meu trabalho. Primeiro como jornalista, depois como dona de uma agência de PR e, atualmente, no cargo de Diretora de Comunicação e Marketing do Comitê Olímpico do Brasil (COB).
Assim como ajudei grandes atletas a contar suas histórias e alcançar seus objetivos, acabei pautando minha vida de mulher pelos ciclos de quatro anos. E mais: trouxe para o meu mundo, corporativo e pessoal, valores que o esporte ensina melhor do que ninguém
Foi pensando em “alcançar meus objetivos”, “me superar” e “evoluir” que mergulhei de cabeça na rotina profissional. Atletas, afinal, não sabem fazer nada pela metade.
Nesse tudo-ou-nada do dia a dia, abri mão, por muito tempo, de fantasiar a maternidade em nome do sucesso como executiva de comunicação — e do deslumbramento (que até hoje sinto) de vivenciar os Jogos Olímpicos.
COMO ATLETA SERIA IMPOSSÍVEL. DECIDI VIVER O SONHO OLÍMPICO DE OUTRA FORMA
Tive meu batismo em coberturas olímpicas aos 26 anos, em Atenas 2004, à frente da minha agência recém-fundada.
O meu imaginário era povoado pelas histórias fantásticas do meu pai, também jornalista, vividas nas edições de Roma 1960 e Montreal 1976. Jogos Olímpicos eram tudo aquilo e muito mais.
Confesso que voltei da Grécia acreditando até que poderia buscar uma vaga como remadora no Pan Rio 2007 e, quem sabe, em Pequim 2008… O que me faltou de talento no barco sobrou em dedicação fora d’água para fazer minha Media Guide Comunicação crescer
Nesse meio-tempo, comecei a namorar. A vida estava boa, mas a balança continuava pendendo para aquela palavrinha mágica: Olimpíadas.
O remo acabou passando ao status de hobby. Um hobby levado (muito) a sério e, por um tempo, com as cores do Flamengo — para desgosto profundo da minha família tricolor.
O amor ia bem, a carreira entrava nos eixos… E os valores do esporte continuavam moldando minha personalidade.
COM A ROTINA A MIL, PERDI A CHANCE DE ESTAR COM A MINHA AVÓ PELA ÚLTIMA VEZ
Enquanto isso, o relógio biológico seguia no seu tique-taque. Sem pressa.
A minha rotina, ao contrário, seguia a mil.
Em 2007, envolvida com os Jogos Pan-Americanos do Rio e o Mundial de Judô que se aproximava, fiquei mais de mês sem ver minha avó, que morava a dois quarteirões.
Dona Judite morreu sem eu ter contado as novidades daquele agosto tão cheio de esportes… Morreu sem eu ter sequer cogitado dar um bisneto a ela. Tudo o que eu dizia era: “Vó, não tenho tempo para filho agora”
Mesmo assim, continuei no ritmo pegado. No ano seguinte, na China, experimentei tudo o que Pequim 2008 podia oferecer — incluído aí de espetinho de escorpião à visita à Grande Muralha, passando por muito trabalho com fuso horário trocado…
WORKAHOLIC, EU ASSUMIA COMPROMISSOS COMO SE FOSSE UMA JOVEM MILLENNIAL
Após Pequim, logo começou o barato de preparar Londres 2012.
E, não satisfeita em liderar uma agência especializada em esportes, inventei de assumir paralelamente um posto como Diretora de Mídia na Federação Internacional de Judô, em outubro de 2008.
Isso às vésperas do período mais efervescente para o setor no país, com a Copa 2014 e a Rio 2016 no radar (além dos muitos eventos que pipocariam por aqui).
Tudo ao mesmo tempo agora. Como se eu fosse uma jovem millennial.
A ponte aérea Rio-Paris passou a fazer parte da minha rotina quinzenal, com idas à Federação de Judô (na Suíça) e para acompanhar competições pela Europa.
Meus amigos falavam que isso era sucesso. Meu namorado dizia que a distância nos aproximava (como é bom ter saudade!). E eu ia acreditando que tudo aquilo era normal
Eu já estava mais madura, mais segura, com mais clientes — e, olha que legal, com minha irmã morando na Inglaterra. Nessa época, chegava a ver Elisa até três vezes por ano, graças às muitas viagens pré-Jogos.
O QUE CHAMAM DE SUCESSO CUSTA CARO. NO MEU CASO, A FATURA VEIO COM O CÂNCER
A essa altura eu praticava pouco esporte, comia mais fora do que em casa, dormia longe do meu travesseiro… Foram bem mais de 100 dias em trânsito por ano.
Ah, isso é sucesso, insistiam.
Sucesso que custa caro. E a fatura veio em 2011, na forma de uma biópsia que apontou carcinoma papilífero da tireoide (apenas seis meses depois de eu ter me recuperado de uma pneumonia bacteriana atípica). Câncer. Palavra que soa como uma sentença de morte
Soube sozinha, ao baixar o email do laboratório, sentada à beira do tatame em Sheffield, num evento-teste para Londres 2012. E eu mais preocupada com a possibilidade de não estar com a credencial em volta do pescoço, quando os Jogos chegassem.
Convenientemente, aproveitei outra ida à Europa para contar aos meus irmãos (Caetano a essa altura morava em Brighton).
De quebra, corri a Maratona de Amsterdã: 42 195 metros que me mostraram que maratonas são mais mentais do que físicas. Chorei dos 12 km até cruzar a linha de chegada, pensando no que teria de encarar quando voltasse ao Brasil
Pedro, o namorado que já havia passado ao status de namorido, estava firme e afetuoso nessa fase pesada. Cirurgia + radioterapia + falta de hormônio + falta de iodo na comida.
O esporte? Continuava me ensinando a superar o inesperado, a cair e levantar. Filhos? Não, não estavam em pauta. E agora eu tinha duas desculpas: a radiação no corpo e a Rio 2016, dali a pouco.
MESMO ME RECUPERANDO DO TRATAMENTO, NÃO DEIXEI DE TRABALHAR UM SEGUNDO
Se havia uma certeza na minha cabeça era que os Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016 seriam os meus Jogos.
Eu almejava não apenas viver o sonho de ajudar a realizar Jogos fantásticos na minha cidade (o que, em retrospecto, parece ter sido uma utopia…). Queria também, por que não?, surfar ao máximo essa onda, profissional e financeiramente falando.
Ainda com o lenço no pescoço protegendo a cicatriz da tireoide, posei para a foto oficial de venda da minha agência para um grande grupo de comunicação. Voltei para casa com um pote de sal sem iodo oferecido com carinho pela minha nova sócia. Tudo em ordem, eu pensava
A agência estava bombando; eu segui à frente da operação. Tínhamos no portfólio dois dos três patrocinadores nacionais da Rio 2016, além do próprio Comitê Organizador dos Jogos, mais cinco confederações e o Comitê Paralímpico Brasileiro. No total, 14 clientes envolvidos no evento.
E assim, nesse turbilhão, a meses da abertura, sucumbi a uma meningite virótica, em março de 2016. Foram duas semanas de hospital, mais duas de repouso — e a aflição de deixar meu trabalho na mão “justo agora”.
Passei a fazer reuniões em casa e a usar loucamente o WhatsApp para despachar as coisas do dia a dia profissional. Não seria uma “meningitezinha” que me derrubaria, eu pensava. Afinal, eu tinha histórico de atleta…
Chorei de soluçar na cerimônia de abertura da Rio 2016, no Maracanã. Tinha consciência de que aquilo era um sonho se materializando na minha frente — e o quanto eu tinha contribuído.
Para além do trabalho, curti os Jogos. Assisti a todas as regatas na “minha” raia da Lagoa Rodrigo de Freitas. Hospedei uns 15 amigos em casa durante as duas semanas da Rio 2016, com direito a churrascos diários.
Eu em êxtase, clientes felizes, meta da agência batida. Sucesso, sucesso, sucesso.
ENCARAR UM ABORTO ESPONTÂNEO SOZINHA NO JAPÃO ME FEZ REFLETIR SOBRE A VIDA
O furacão olímpico passou e me deparei com um sentimento ambíguo: um vazio e ao mesmo tempo a plenitude de ser dona da própria vida.
Depois de tantos anos, nada no horizonte me inquietava. Tóquio 2020 não me dava frio na barriga.
Às vésperas de completar 40, eu estava mais do que satisfeita com a vida que levava com o Pedro. Liberdade, maturidade, tempo, dinheiro. A possibilidade de jantar onde quisesse, viajar para onde bem entendesse, remar as regatas que me interessassem
Trocar isso pela maternidade? Por quê? Ainda mais aos 40, com seus riscos. Minha mãe já tinha desistido de ter netos meus e começava a delegar a responsabilidade a meus irmãos.
Só que no esporte você nunca está sozinho. Depende do outro, o que deixa tudo imprevisível e incontrolável. E assim também é a vida.
Engravidei em 2018. Fiz o teste de farmácia uma semana depois de ter aceito o convite para largar a agência e assumir a Diretoria de Comunicação e Marketing do COB.
“Que péssimo timing”, pensei.
Era setembro, peguei meu passaporte e fui para o Japão com um feto de oito semanas na barriga, para uma reunião sobre Tóquio 2020.
Evitei saquê e peixe cru, mas nada que chamasse atenção dos meus colegas de viagem. Até que tive um aborto espontâneo na frieza daquele quarto micro de hotel em Tóquio, sem ninguém para me abraçar. No Brasil, era noite de aniversário da minha mãe, e eu dando descarga em um coágulo de sangue no outro lado do mundo…
Não sabia como dar a notícia a ela ou ao Pedro. Liguei para ele com a voz trêmula: “Acho que não vai ser agora, meu amor…”
42 anos. Brincava que estava prestes a completar a minha primeira maratona de vida. E eis que a gravidez interrompida trazia sentimentos contraditórios.
Não fiquei devastada. Fiquei reflexiva.
O que aquilo queria dizer? Não tinha mais todo o tempo do mundo. Eram 15 anos com o Pedro e a dubiedade de não sonhar em ter filhos — mas ao mesmo tempo fazer questão de ser mãe da filha dele.
NÃO CURTI A GRAVIDEZ, MAS VIVI O CLICHÊ DA MATERNIDADE ASSIM QUE VI A CECÍLIA
O tal tique-taque do relógio biológico foi ficando frenético.
Tive uma conversa informal sobre congelamento de embriões com uma amiga do remo, especialista na área. Ela iria sair de férias. Assim, a vida seguiu despretensiosamente, naquele início de 2019, esperando a sua volta para marcarmos uma consulta.
Nem deu tempo: engravidei em abril de 2019, sem tratamento — e, de novo, sem planejar, depois de conquistar 13 medalhas no Campeonato Sul-Americano de Remo Master no Paraguai, duas semanas antes.
Sinceramente? Não curti a gravidez. Parecia um eterno misto de TPM com ressaca, sabe? E até por volta das 36 semanas (sim, agora eu era uma dessas que falavam em “semanas”…!), simplesmente me recusei a tirar fotos com a mão na barriga
Sem fotos fofas com legendas emocionadas nas redes sociais, pouca gente sabia que eu estava grávida. E me incomodava abrir mão, de repente, do meu estilo de vida: o remo, o vinho, a minha autonomia.
Trabalhei intensamente, com viagens, reuniões e salto alto, até 10 de dezembro — quando, com pernas inchadas após cinco horas de pé num evento, ouvi do meu chefe: já passou da hora de você parar.
Cecília nasceu no dia 3 de janeiro de 2020. Em questão de segundos, todos os clichês da maternidade passaram a fazer sentido. Logo eu! Fiquei uma semana chorando de amor só de olhar para ela dormindo
Apaixonada por biologia na escola, eu descobria que o tal milagre da vida estava mais para uma aula fascinante que eu jamais havia pensando em ter.
FAZER REUNIÃO COM BEBÊ NO COLO É DIFÍCIL, MAS ESTOU APRENDENDO A RELATIVIZAR
Essa pandemia está me oferecendo um intensivão do que é a maternidade.
Pedro diz que hoje não conseguiria mais me ver passando pelo mundo sem experimentar ser mãe. Eu sempre o corrijo: já não me enxergo mais sem ser mãe da Cecília.
No íntimo, de vez em quando ainda me questiono se nasci “para isso”. Nesses tempos de Covid, já me peguei resmungando sobre como é difícil ter um bebê no colo em modo de home office e isolamento social.
Sobrecarregada e envolta na minha capa de supermulher, cheguei a esbravejar que a Cecília estava “atrapalhando meu trabalho”… Ainda não aprendi a não dar conta de tudo.
Como é difícil fazer reuniões com bebê no colo! Como era constrangedor (na minha cabeça) ter uma recém-nascida fazendo barulhinhos durante incontáveis vídeoconferências…!
Até que, um dia, parei para relativizar.
Eu não queria lembrar da quarentena como uma fase em que a minha filha prejudicou meu desempenho profissional. E, sim, como o período em que minhas circunstâncias de trabalho me permitiram o privilégio de conviver com ela 24/7, nos seus primeiros meses de vida.
Não sei para vocês, mas para mim o novo normal é ser mãe. E isso na minha cabeça agora é sucesso.
Manoela Penna, 43, é diretora de Comunicação e Marketing do Comitê Olímpico do Brasil e trabalha com comunicação e esportes desde 1994 (quando começou a carreira colaborando com a revista Esporte por Esporte). Migrou para o mundo corporativo ao fundar a agência Media Guide Comunicação, depois integrada ao Grupo In Press. Desde 1997 é remadora amadora, com seis ouros em mundiais de másters e dezenas de títulos brasileiros e sul-americanos. Recentemente acrescentou outra linha no currículo: mãe da Cecília.
Thaís Borges cresceu num ambiente de vulnerabilidade social, mas não deixou que sua origem definisse o seu destino. Ela conta como fez para crescer na carreira e se tornar mentora e investidora de negócios periféricos comandados por mulheres.
Neuza Nascimento cresceu em um ambiente de muita vulnerabilidade social. Enfrentou a violência e a precariedade, conseguiu retomar os estudos e hoje é colunista do portal Lupa do Bem, que repercute iniciativas de sucesso no terceiro setor.
Giuliana Cavinato sofreu uma pancada forte praticando wakeboard que resultou num acidente vascular cerebral. Ela conta como uma técnica de reabilitação criada na Itália a ajudou a recuperar sua autonomia e a descobrir um novo propósito.