O lançamento recente do Pix e a regulamentação do Open Banking (que começará a ser implementado em fases, a partir de novembro) devem beneficiar o consumidor e trazer mais competitividade para o setor bancário do Brasil, ainda dominado por um punhado de grandes bancos.
Fundado em 1988 como Banco Votorantim, o BV (o nome mudou em 2019) sempre foi um banco de médio porte, com financiamento de veículos como um produto forte entre suas linhas de receita. De olho nas transformações que despontavam no horizonte, começou a mirar o ecossistema de fintechs.
Desde o fim de 2019, quem toca essa frente é Guilherme Horn, diretor do BVx, unidade dedicada à conexão com parceiros e experimentação de tecnologias por meio de um laboratório de inovação.
Uma das iniciativas é o BV Open, uma plataforma em que startups se plugam e têm acesso às APIs do banco; em contrapartida, oferecem seus produtos e serviços a clientes do BV. Hoje há 178 parceiros utilizando essa biblioteca de APIs, dividida em três classes (Banking-as-a-Service, Credit-as-a-Service e Investment-as-a-Service).
O BV também conta conta com um fundo de corporate venture capital, com 400 milhões de reais para investir em startups com as quais tem “sinergia”. Já foram realizados 25 investimentos em empresas como Banco Neon, Weel, Olivia, Portal Solar, Pravaler, Carflix, Guiabolso e Just.
A seguir, Guilherme explica melhor como funciona a estratégia do BV e quais serão os impactos de Open Banking e Pix para o setor no Brasil.
Você assumiu como diretor de estratégia e inovação do BV no fim de 2019. Quais foram suas principais motivações?
Eu já conhecia o Gabriel [Ferreira], CEO, ele tinha acabado de assumir. Eu queria ir para alguma empresa com uma marca sólida, acionistas fortes, um balanço saudável… E que tivesse uma liderança com uma visão próxima à minha visão de mundo, além de uma cultura alinhada com um mindset moderno.
No BV encontrei esses elementos, e mais um. Acredito que o mercado financeiro está vivendo uma fragmentação que vai gerar uma oportunidade muito grande pra quem está no meio do caminho. Os grandes bancos tendem a perder margem.
Hoje o Brasil é um mercado muito concentrado, os maiores bancos concentram, a maior parte das operações. Do outro lado a gente vê centenas de fintechs com produtos muito específicos, conhecimento muito grande dos seus clientes, uso intensivo de dados…
Mas, na hora em que essas fintechs começam a crescer, chega um momento em que é importante ter um balanço, principalmente se forem de crédito. Há um desafio de custo de capital, de gestão do capital, gestão do risco, alavancagem… E aí você precisa de um balanço forte.
Por essa análise, os bancos médios têm a oportunidade de ser os grandes vencedores desse movimento. Tenho essa crença há um tempo, e quando olhei para o BV, pensei que ele pode ser um desses grandes vencedores. Então foi um casamento perfeito.
Como o BV vem se preparando para esse contexto de disrupção?
O BV tomou uma decisão importante de crescer através de parceiros e se posicionar como uma plataforma para o ecossistema de inovação. A gente chama de “Bank as a Platform”. Esse é um posicionamento único no mercado brasileiro.
O banco tem suas linhas de receitas sólidas. Por exemplo, financiamento de veículos: o BV atua há 30 anos nesse mercado, é uma operação lucrativa. Tem também outras linhas de receita, outros tipos de crédito… Mas decidiu expandir para novos produtos através de parcerias, usando o ecossistema de fintechs.
Para isso, montamos uma plataforma tecnológica em que uma fintech se cadastra, começa a usar nossas APIs, tem acesso por exemplo à nossa expertise de concessão de crédito… E pode alavancar seus negócios usando nossa infraestrutura, nossa licença bancária e uma série de serviços que a gente provê
Esse é um posicionamento muito diferente, até globalmente. O mercado financeiro tem uma cabeça de ver o pequeno com um olhar de “aquisição”. Quando eu estava na Accenture, dei consultoria para bancos, e vários falavam em montar fundos de venture capital para comprar startups… E eu dizia: se comprar você vai matar [o negócio].
O mindset “normal”, não só de grandes bancos, mas de grandes empresas em geral, é um olhar quase de desprezo para pequenas empresas, startups… O BV tem uma postura muito diferente, de parceria, de alavancar essas startups.
Fala-se que dados são o “novo ouro”. Acredito muito nisso — e acredito que ninguém melhor do que essas startups para conhecer os dados dos seus mercados e dos seus clientes. Porque são [negócios] muito nichados, especializados e orientados para tecnologias.
Pode dar exemplos dessas parcerias do BV com startups?
O Portal Solar é um marketplace de instaladores de energia solar residencial, com milhares de instaladores pelo Brasil. No site tem todos os equipamentos disponíveis, as simulações… Ele te pergunta onde bate o sol, de que hora a que hora…? Você coloca os dados e o portal informa: “Você precisa dessa placa aqui, com essa configuração, vai te custar tanto…”.
Se a instalação for viável, o cara que pagava uns 300 reais de energia por mês para a concessionária vai pagar um valor muito próximo de prestação por esse equipamento, que daqui a cinco anos vai ser dele, próprio, ele não vai gastar mais um centavo com energia. Essa conta é matadora, isso faz com que esse mercado quase não tenha inadimplência.
Mas imagine que o BV quisesse entrar no mercado de financiamento de energia solar residencial… Como vamos competir com o Portal Solar? Vamos montar um portal igual ao deles? Seria muito difícil, nunca vamos ter esse foco… Essa fragmentação do mercado acaba gerando players com alto conhecimento sobre aquele negócio
Esse cara está focado nisso, cada vez mais ele está melhorando o conhecimento sobre os seus clientes, cruzando isso com outros dados… Está 100% do dia dele focado nisso.
Hoje, fazemos todo o funding para o Portal Solar fazer o crédito, ajudamos com os nossos modelos de crédito… Outro exemplo que tangibiliza o conceito da plataforma é o Banco Neon: toda a “cozinha” do Neon, a parte operacional de liquidação, custódia, arrecadação, boleto…, é feita pelo BV de forma 100% automatizada, através das nossas APIs. Tem um CDB lá, você pode investir um real no CDB do Banco Neon, na verdade é um CDB do BV.
São dois modelos diferentes. O do Portal Solar é um modelo de parceria, tem um revenue share, divisão de receita. O do Neon é fee-based, baseado em taxa, paga por transação.
No caso do Portal Solar e de outras startups, o BV também investe no negócio, por meio do seu fundo de corporate venture capital. O que define essa decisão?
Não buscamos ganhar dinheiro com equity, não é esse o objetivo. Nosso investimento de corporate venture é muito mais de sinergia. Se é um negócio que tem sinergia com o nosso, queremos dar um fôlego para esse empreendedor, ver esse cara crescer….
Buscamos mercados onde a gente não atua para trazer skills que a gente não tem. Temos por exemplo investimento na QueroQuitar, que faz cobrança de forma digital. Eles estão totalmente focados nisso, então queremos trazer esse skill de cobrança digital que eles têm.
Mas há aquisição de equity, certo?
Sim. O empreendedor quando precisa de grana para crescer, bota o foco nisso. E esse processo de captação é lento, consome tempo… Às vezes o cara passa um ano levantando capital, e enquanto isso está deixando de olhar para o negócio, fazer o negócio crescer. Nosso investimento tem muito a ver com isso.
E quando colocamos dinheiro, muitas vezes um fundo de venture capital também se interessa, tem vários que são parceiros nossos. Como nós somos do ramo, já fizemos uma análise, gostamos e estamos investindo, a gente acaba facilitando esse processo de levantar capital para o empreendedor.
Você falou de um mindset das grandes empresas olharem com certo desprezo para startups… Isso não está mudando?
Sim e não. Dentro de uma empresa, a alta administração, diretores, vice-presidentes, CEO, eles entendem isso, você vê que há uma mentalidade de olhar para as startups de forma a ver o que tem de legal, trazer para dentro, colaborar… Mas na medida em que vai descendo para o dia a dia operacional, ainda tem muita resistência.
Não é simplesmente uma mudança de chave. É um processo. E vai nesse caminho de entender que a arena competitiva mudou. Antigamente, a arena competitiva era “grande briga com grande”. Quando o WhatsApp nasceu, era uma “startupzinha”. Quem imaginava que uma startup ameaçaria os negócios de uma grande empresa de telecom?
Sobre transformações em mercados: como a regulamentação do Open Banking pode impactar o mercado bancário brasileiro daqui para frente?
Estou há vinte anos nesse mercado. Já na época em que eu estava na Ágora, 90%, 95% do mercado estava nas mãos de quatro, cinco bancos. O mercado brasileiro é um dos poucos assim. Mas isso vai reduzir. No mundo todo aconteceu, e vai acontecer no Brasil.
Teve um movimento forte de investimento em tecnologia, mas que não mexeu nisso. Depois teve a internet chegando mais pesado, os aplicativos, as startups… E isso também não mexeu muito nessa indústria. Mas agora, acho que a regulamentação [do Open Banking] será a grande responsável por essa mudança.
Por quê?
Por causa do compartilhamento de dados que o Open Banking vai proporcionar. Imagine que eu vou poder pedir acesso aos seus dados no Itaú ou no Bradesco… E você me concedendo acesso, eu vou ver quanto você paga de anuidade no cartão de crédito ou no seguro do seu carro, por exemplo. E só vou te oferecer algo melhor do que aquilo.
Todas as ofertas vão ser muito assertivas. E naturalmente quem vai ser “atacado” [pela concorrência] nesse processo serão os melhores clientes, aqueles que pagam anuidades, juros maiores, e dão as maiores margens para os bancos
O que está acontecendo hoje é um ataque aos melhores clientes — e isso tende a gerar compressão nas margens dos bancos. As margens vão cair, o retorno vai cair, e você vai ver uma migração desses clientes para outras instituições.
Dá para cravar que o setor bancário está, de fato, prestes a viver uma disrupção?
Se você olhar historicamente as disrupções nos diversos segmentos, tem três elementos presentes em praticamente todos: 1) eram setores que tinham margens altas; 2) setores que tinham marcas pouco amadas, que não tinham um bom relacionamento com o cliente; e 3) barreiras de entrada supostamente altas.
O mercado bancário brasileiro tinha esses três elementos: as margens são altas, ninguém ama o seu banco… E as barreiras de entrada — de regulamentação, acesso a capital –, isso já não existe mais. Então a disrupção está batendo na porta, vai entrar a qualquer momento
Vamos finalmente ver uma mudança de configuração grande nesse mercado, proporcionada pelo Open Banking.
E quanto ao Pix? Como esse novo meio de transferência instantânea, desenvolvido pelo Banco Central, vai mexer com o setor?
De certa forma, a mudança será ainda maior. Dos 900 participantes que se inscreveram no Banco Central para participar dessa primeira rodada do Pix em novembro, uns 830 são participantes indiretos, ou seja, não são instituições financeiras. São varejistas, empresas de tecnologia etc., que vão passar a exercer um papel nessa cadeia de valor.
Antes a gente tinha que contratar um adquirente e por aí vai… Agora, essa cadeia de calor está sendo reescrita, redesenhada — e isso vai gerar uma baita de uma competição.
Além disso, o Banco Central proibiu os bancos de cobrarem no Pix a transferência para pessoa física e MEIs, só permite para PJ. O Nubank já anunciou: a gente não vai cobrar para PJ. E, claro, daqui a pouco o C6 vai dizer a mesma coisa, o Banco Inter… Até chegar no Itaú, no Bradesco. Ou eles fazem isso — ou os clientes vão sair de lá.
Se os serviços são considerados ruins, as taxas são altas e “ninguém ama seu banco”, por que essa debandada não aconteceu até hoje?
O consumidor em geral tem uma inércia natural. Quando está se relacionando como uma determinada marca, você tem que ter um trigger [gatilho] muito tangível, muito forte, para trocar aquela marca por outra. E no mercado financeiro a inércia é ainda maior, porque envolve dinheiro, riscos…
Um fator que sempre alimentou essa inércia era o processo de se cadastrar num banco… Até poucos anos atrás isso não era digital, você tinha que preencher uma ficha de quatro páginas… Com o Open Banking você vai fazer esse cadastramento num segundo, vai ser como criar uma conta no Netflix
Pelo último número que eu vi, entre clientes que têm conta em algum banco digital, só 8% usavam como seu primeiro banco. Em 92% dos casos era um segundo banco: o cara abriu a conta para testar, sentir como é… Agora, com esse processo de cadastramento mais fácil, você vai começar a vencer essa inércia que as pessoas têm de tirar dinheiro do seu banco.
Os grandes bancos vão perder os trunfos que tinham para reter seus clientes?
Os bancos sempre fizeram pressão com a reciprocidade: “ah, se vc tiver 100 mil reais aplicados com a gente, você não paga taxa nenhuma”…. Isso vai acabar, eles não vão poder cobrar mais essa taxa [por causa da concorrência]. A venda casada, do tipo “se você fizer um seguro aqui eu te dou anuidade grátis…”, vai ser cada vez mais difícil.
Daqui para a frente, teremos um aumento da competitividade, uma queda nas taxas em geral… Os produtos terão que ser melhores. Acredito mesmo que a regulamentação fará o que a tecnologia não foi capaz: mexer realmente no poderio do mercado bancário brasileiro.
Master System, Mega Drive… Nos anos 1990, a Tectoy chegou a vender 2 milhões de consoles, até entrar em crise. O CEO Valdeni Rodrigues conta como a empresa desbravou outra indústria — meios de pagamentos — sem abrir mão dos jogos eletrônicos.
Há cada vez menos motoristas de caminhão no mercado. A Votorantim Cimentos criou uma startup para digitalizar a jornada desses fornecedores autônomos, tornar a atividade mais lucrativa – e ajudar a evitar um colapso no transporte de carga.
Inovação aberta não é anarquia, exige processo. Ricardo Sanfelice, diretor do BV, conta como o banco — que em 2023 quadruplicou os contratos com startups — vem transformando a cultura interna e gerando receita através de novos negócios.