Os cosméticos naturais, com pouco ou nenhum processo sintético, já são uma tendência e hoje disputam as prateleiras com produtos industrializados.
Agora, imagine uma marca de cosméticos que, além de priorizar plantas medicinais e fabricação artesanal, se preocupe em extrair as ervas de territórios de povos e comunidades tradicionais, levando em conta a ancestralidade e a cosmovisão de matriz africana na preparação de seus cremes, sabonetes e xampus.
Assim é a Iyá Omi, marca soteropolitana de cosméticos fundada em 2018 que busca promover o autocuidado diário e o equilíbrio energético, emocional, físico e espiritual.
A matéria-prima são plantas cultivadas em terreiros de candomblé, na região metropolitana de Salvador. Um ingrediente importante num contexto em que a intolerância religiosa ainda impera (segundo o Ministério Público da Bahia, os episódios cresceram mais de 80% em 2019, sendo 90% dos casos têm como alvo as religiões de matriz africana).
Doutora em Desenvolvimento e Meio Ambiente, Sueli Conceição, 45, está à frente da empresa. Ela diz que, em iorubá (idioma da família linguística nigero-congolesa), o nome Iyá Omi significa “Mãe D’Água” — uma forma simbólica de traduzir cuidado.
Parte da inspiração de Sueli para empreender veio dos saberes tradicionais da avó materna, Camila Batista Silva, em relação às plantas:
“Minha avó também empreendia como lavadeira. Eu a via produzir sabão a partir das cinzas, pegar patchouli para aromatizar as roupas e cuidar de todo mundo da família com as virtudes terapêuticas das plantas… Essa é uma memória afetiva muito forte e que me inspirou”
Hoje, a Iyá Omi oferece 33 produtos vendidos pelo site para todo o Brasil e em uma loja física colaborativa no Pelourinho, chamada Botica Rhol.
OS FLORAIS DE BACH LEVARAM ELA A PENSAR NOS “FLORAIS DOS TERREIROS”
Sueli foi levada a empreender pelo desdobramento de suas pesquisas acadêmicas e consultorias governamentais.
Ela sonhava em ser geneticista. Em 1999, ingressou no curso de Biologia. Mas, ao tomar contato, nas aulas de Botânica, com os Florais de Bach, seu rumo mudou:
“Eu já era uma mulher do candomblé, que utiliza muitas plantas em seus rituais, e comecei a me questionar por que as pessoas falam tanto dos Florais de Bach e ninguém tinha pensado em fazer os ‘florais dos terreiros’, onde geralmente se encontram muitas plantas e flores poderosas”
Pesquisando, ela descobriu que o desafio era encontrar áreas que tivessem as plantas para produzir os florais — com a especulação imobiliária e as modificações urbanas, muitos terreiros vinham perdendo seus espaços em Salvador.
“Com essas mudanças, no início dos anos 2000 os terreiros passaram a ter outra dinâmica para conseguir suas plantas, recorrendo aos centros de abastecimento.”
COMO AJUDAR NA SUSTENTABILIDADE DE POVOS TRADICIONAIS
As inquietações acompanharam Sueli em sua trajetória acadêmica.
Durante sua especialização em Gestão Ambiental, ela começou a investigar como o apelo turístico de Salvador poderia adentrar os espaços de terreiro a partir da lógica ecológica, de conservação da flora.
No mestrado, ela se dedicou a estudar o desaparecimento das áreas verdes dentro e fora dos terreiros na região metropolitana de Salvador.
No final do curso, Sueli participou como consultora de um edital do Governo do Estado, promovido pela Secretaria de Desenvolvimento e Combate à Pobreza e financiado pelo PNUD.
O foco eram as potencialidades comerciais dos povos de terreiro da região metropolitana de Salvador e do Recôncavo Baiano. Sueli ajudou a implantar farmácias vivas nas localidades dessas comunidades para que elas se tornassem autossustentáveis.
O PROJETO DE UMA REDE DE HORTOS DEU INÍCIO AO QUE SERIA A IYÁ OMI
Sueli realizou outras consultorias, uma delas com povos quilombolas. Até que, em 2014, participou outro edital para fomentar empreendimentos com base na economia solidária em povos de comunidades tradicionais.
“Neste cenário, surgiu o projeto de Rede de Hortos de Plantas Medicinais e Litúrgicas, em que implantamos hortos em 12 espaços de terreiros em cinco municípios da região metropolitana de Salvador, com plantas certificadas e doadas aos terreiros pela Universidade Estadual de Santa Cruz [onde Sueli fazia seu doutorado] e pela Universidade Federal de Feira de Santana.”
Como parte do projeto, 24 jovens dos terreiros passaram por uma capacitação de cultivo agroecológico; um dos terreiros virou um centro de beneficiamento, onde plantas importantes para os rituais de candomblé se transformavam em sachês, xampus, sabonetes, xaropes e outros produtos. Sueli conseguiu até um espaço físico, no Pelourinho, para escoar a produção.
E foi pensando em como dar continuidade às conquistas da Rede de Hortos — e mantê-la em operação mesmo após o fim do projeto (com duração de quatro anos) e dos repasses governamentais — que ela decidiu empreender e colocar de pé a Iyá Omi.
SEU LEMA: NÃO COLOCAR NA PELE E NO CABELO O QUE VOCÊ NÃO PODE COMER
Ao engravidar, Sueli decidiu que cuidaria da sua criança usando apenas produtos livres de petrolatos e outros químicos. Resolveu fazer um curso de cosmetologia, e foi assim que adquiriu conhecimentos para empreender.
Todas as plantas para a produção são coletadas nos hortos, explica Sueli.
“Quando a gente opta por comprar matéria-prima desses espaços, estamos fortalecendo os grupos, estamos fazendo a economia circular”
Ela investiu 5 mil reais em matéria-prima e equipamentos para dar os primeiros passos, depois que o projeto governamental acabou.
O lema da marca é: não podemos colocar na pele e no cabelo o que não podemos comer. As bases dos produtos são óleo de palma e de palmiche, que vêm do azeite de dendê, e o próprio dendê in natura.
Ou seja, todos os produtos são feitos a partir de ingredientes comestíveis. A Iyá Omi também usa óleos essenciais na formulação, como os de alfazema, capim santo e menta.
ANTES DE COLHER CADA PLANTA, ELA PEDE PERMISSÃO AOS ORIXÁS
Não são só os elementos físicos medicinais que diferenciam a marca.
Como mulher do candomblé, Sueli conta que tem o cuidado de pedir permissão aos orixás antes de colher as plantas .
“Por exemplo, eu tenho um sabonete que se chama Iyá Paz e é feito só com plantas femininas… Tenho que levar em consideração esse detalhe na hora de coletar, saber como manipular… E para cada planta tem uma cantiga específica. Faço isso porque, para mim, não é só um negócio”
Entre os produtos mais vendidos, ela cita os sabonetes de aroeira, menta, patchouli e arruda (25 reais a barra de 110 gramas).
A empresa também tem cremes hidratantes de abacate, babosa, dendê com amêndoas (40 reais), xampus sólidos (25 reais), condicionadores (25 reais), máscaras capilares (60 reais), óleos pós-banho (50 reais), repelentes (40 reais), entre outros itens.
“COMO FALAR DE COSMÉTICOS ENQUANTO HÁ PESSOAS MORRENDO?”
Pré-pandemia, o foco de Sueli era investir em marketing e em matéria-prima para expandir o negócio no ambiente digital (antes, a marca se limitava à atuação na loja física e em dois estabelecimentos parceiros em Salvador).
Com esse objetivo, a Iyá Omi foi acelerada pela Vale do Dendê e selecionada, com outros negócios, para receber um capital semente de 10 mil reais.
Para ter acesso ao dinheiro, os os empreendedores deviam participar de um matchfunding na Benfeitoria (com apoio de parceiros como a Fundação Tide Setubal), que poderia triplicar o aporte.
A campanha estava prestes a ser lançada… Mas aí veio a pandemia.
“Ficamos no fundo do poço”, diz Sueli. “Pensei: como vou falar de autocuidado e de cosmética com as pessoas morrendo?”
UM MATCHFUNDING SOLIDÁRIO AJUDOU A COLOCAR A EMPRESA NOS TRILHOS
Sueli conta que uma amiga a fez relembrar de suas crenças.
“Ela perguntou se eu tinha esquecido da essência do meu trabalhos, que era justamente apostar no poder multifuncional dos fitocosméticos, que poderiam ajudar as pessoas nesse momento de estresse e ansiedade.”
O chacoalhão a fez repensar a proposta da campanha de matchfunding, que passou a incluir um viés solidário.
“A ideia foi usar parte do dinheiro arrecadado para produzir 200 kits de higiene com plantas ansiolíticas para doar a mulheres chefes de família de comunidades periféricas de Camaçari”
Assim foi feito. Além dos kits com cremes, xampus e sabonetes, Sueli doou mil litros de sabão líquido, produzido a partir de resíduos de óleo ou azeite de dendê que seriam descartados de forma inadequada.
O lançamento da ação social alavancou a campanha na Benfeitoria, que superou a meta de 30 mil reais, chegando a 42 mil.
PARA COMPENSAR PERDAS COM A COVID, ELA CONCENTRA FORÇAS NAS REDES
Antes da pandemia, duas pessoas ajudavam Sueli a formular os cosméticos. Hoje, por conta do distanciamento social, ela realiza esse trabalho sozinha.
Outro prejuízo decorrente da Covid-19 foi a perda de alguns terreiros que participavam da Rede de Hortos de Plantas Medicinais e Litúrgicas. Muitos fecharam as portas pela necessidade de isolamento; outros deixaram de plantar na época das chuvas.
Atualmente, cinco terreiros resistem com o plantio (três em Camaçari, um em Lauro de Freitas e outro em Itaparica) e seguem fornecendo matéria-prima para a Iyá Omi.
Pelo lado positivo, o aporte da campanha da Benfeitoria está permitindo estruturar o marketing da empresa, com ajuda do marido e do filho de Sueli, que planeja e executa as fotos de divulgação. Clécia Cruz, outra colaboradora, produz os textos postados nas redes.
Os seguidores no Instagram hoje são 3 400, quatro vezes mais do que eram em junho, segundo a empreendedora.
COMO EXPANDIR SEM SE SUBMETER À “LÓGICA MASSACRANTE DO CAPITALISMO”
O número de seguidores ainda não se reflete no volume de compras.
Mesmo assim, Sueli acredita que as vendas impulsionadas pelas redes sociais foram essenciais para que a Iyá Omi não sucumbisse na pandemia.
Antes do coronavírus, diz, o faturamento costumava ser de cerca de 6 mil reais mensais.
“Mês passado tivemos um valor bruto de entrada de apenas 2 500 reais; já em agosto, depois da campanha, foram 8 mil. Ainda estamos tentando estabilizar essa entrada mensal”
Para virar o jogo, desde setembro a empresa participa de uma iniciativa do Instituto GPA e da Fundação Tide Setubal de apoio a 17 microempreendedoras negras impactadas pela Covid-19, com direito a mentorias e a um aporte de até 9 mil reais por negócio.
“Muita gente diz que, para escalar, eu preciso industrializar meus produtos… Mas a indústria não vai me dar o que tenho hoje, a conexão com o modo de produzir. Minha ideia é expandir, sim, mas mostrando que é possível empreender e ter qualidade de vida sem viver nessa lógica massacrante do capitalismo.”
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