Quando a carioca Karen Franquini conseguiu uma bolsa integral para estudar Engenharia de Produção na PUC-Rio, a conquista foi muito celebrada.
“Sou uma mulher negra e de origem periférica, então essa oportunidade foi muito importante”, afirma.
Ao buscar estágio, porém, ela voltou a enfrentar barreiras: “Eu não tinha inglês fluente, intercâmbio, nenhuma experiência relevante na área, nenhuma especialização…”
Analisando sua trajetória e de outros jovens com o mesmo perfil, Karen entendeu que não bastava se capacitar. Era preciso que as empresas adotassem processos de seleção mais inclusivos.
Foi a partir dessa ideia que ela empreendeu a Ganbatte, um negócio social que conecta micro e pequenas empresas a jovens diversos.
O recorte principal é renda, seguido por outros, como raça e identidade de gênero. Em cinco anos, Karen inseriu e capacitou mais de 2 300 jovens no mercado, contratados por oito empresas (do Rio e de São Paulo) clientes da Ganbatte, que recebeu, no seu desenvolvimento, o apoio de parceiros como Aliança Empreendedora, Fundação Telefônica e Unisuam.
ALÉM DE SELEÇÃO, A GANBATTE ATUA COM CONSULTORIA E CAPACITAÇÃO
Karen explica o nome do seu negócio (pronuncia-se ganbatê):
“Na cultura japonesa, eles acreditam que o sucesso vem do esforço e do estudo, e não da sorte. Traduzindo de forma simples, Ganbatte significa ‘esforce-se, aguente firme, não desista, faça seu melhor’…”.
O principal produto é o processo de recrutamento e seleção inclusivos, pelo qual ela cobra de 100% a 120% do salário-base de cada vaga a ser preenchida (segundo Karen, o percentual praticado no mercado por consultorias tradicionais de RH varia entre 90% e 200%).
A startup também presta consultoria de diversidade (com mapeamento do perfil da equipe e workshops de sensibilização) e oferece, a um valor social, cursos presenciais e online para ajudar na capacitação dos candidatos.
“É importante cobrar para que o jovem valorize a formação e saiba que é um cliente, tem voz ativa para dizer se o conteúdo está bom ou não, e o que pode ser melhorado”, diz Karen. Essas formações já cobriram temas como inovação, gestão de tempo e até uso de excel.
O FOCO É MOSTRAR OS ATRIBUTOS DOS JOVENS PARA ALÉM DO CV
Lá atrás, na faculdade, em 2014, Karen chegou a pensar em outra solução contra a barreira de entrada no mercado.
Ela cogitou criar um portal de bolsas de estudos em que doações (por meio de crowdfunding) custeariam cursos de aperfeiçoamento para jovens de baixa renda.
Mas, após sua primeira aceleração (em 2015, pelo Social Good Brasil) e em conversas com uma centena de universitários, entendeu que só as bolsas não bastam.
“Por mais que o desenvolvimento seja importante, não soluciona o problema desses jovens que sofrem para se inserir no mercado em oportunidades relevantes.”
Karen passou a estudar técnicas de recrutamento e seleção para criar uma metodologia própria, mais inclusiva e ao mesmo tempo vantajosa para os recrutadores:
“Vi que era muito comum as empresas contratarem pelo currículo, mas demitirem pela falta de competências comportamentais… E é exatamente isso que esses jovens têm de sobra. Por conta de suas experiências de vida, costumam desenvolver resiliência, criatividade e facilidade para a resolução de problemas”
Com esse novo foco, Karen investiu 50 mil reais no negócio, com apoio da família e uso de recursos economizados por ela desde os 15 anos, quando começou a trabalhar.
“NÃO SE TRATA DE BAIXAR A RÉGUA, MAS SIM AVALIAR DE OUTRA FORMA”
Assim que a empresa contrata o serviço, é feito um mapeamento do perfil da vaga. Depois, começam a divulgação e triagem de currículos; interessados podem acessar os anúncios no site da Ganbatte.
Dentro da proposta de recrutamento inclusivo, há flexibilidade com alguns pré-requisitos. O domínio do inglês fluente, por exemplo, costuma ser desconsiderado.
“Não se trata de baixar a régua”, diz Karen, “E sim avaliar de uma outra forma, olhando mais para as competências comportamentais e tendências de personalidade.”
A segunda etapa é um desafio: uma atividade mão na massa, proposta pela Ganbatte com base nas funções que os candidatos deverão desempenhar na empresa.
“Tivemos experiências bem legais, como a de uma candidata que recebeu o desafio de fazer um vídeo de vendas. Ela não sabia mexer em softwares de edição, mas aprendeu no YouTube, fez o vídeo e foi selecionada. Ficou mais de dois anos na empresa como estagiária — até ser efetivada”
A terceira fase é uma entrevista por competências. “Geralmente, escolhemos três competências por vaga, analisando a rotina da função que será exercida”, diz Karen.
Em média, a Ganbatte encaminha três candidatos para a quarta e última etapa: a entrevista com a empresa contratante.
UM DESAFIO: CONVENCER EMPRESAS QUE A DIVERSIDADE NÃO PODE SER FACHADA
A Ganbatte, diz Karen, explora três grandes problemas que as empresas enfrentam: a escassez de talentos, a rotatividade de colaboradores e a falta de diversidade.
“Com o recrutamento e seleção baseados em competências comportamentais, a probabilidade de o candidato se ajustar à cultura organizacional é muito maior, o que diminui a rotatividade e a escassez de talentos”, afirma. “Assim, resolvemos os primeiros dois problemas. E a cereja do bolo vem com a questão da diversidade”
Porém, algumas companhias parecem ter dificuldade em colocar na prática esse discurso…
“As empresas chegam à Ganbatte dizendo que querem diversidade, mas uma diversidade ‘mais próxima do padrão’. Ou seja, querem o profissional negro com a formação de um branco de alta renda, um profissional LGBT que seja o mais próximo do heteronormativo…”
Por outro lado, há clientes, segundo ela, que realmente se propuseram a mudar suas equipes. Entre os exemplos, Karen cita Thelírios, Barkus, Piraporiando, Quero na Escola e ID_BR, todos atendidos pela Gambatte nos últimos cinco anos.
ELA DEU O SANGUE PELA EMPRESA — E QUASE MORREU NUMA VIAGEM DE TRABALHO
A Ganbatte ainda não é financeiramente sustentável. Para seguir empreendendo, Karen precisou fazer renúncias; de 2015 a 2018, se dedicou exclusivamente à empresa.
Em setembro de 2018, ela foi diagnosticada com anemia por causa de uma disfunção menstrual. “Eu ia para o hospital público, tomava sete dias de remédio, me liberavam… Mas eu não melhorava e voltava de novo para o hospital.”
Esse ciclo de idas e vindas ao pronto socorro no Rio durou 40 dias, período em que ela não parou de trabalhar. Ao contrário, até viajou a trabalho.
E aí, o corpo cobrou a conta.
Assim que chegou a São Paulo (para uma imersão de negócios do Pense Grande, programa da Telefônica de fortalecimento do empreendedorismo social entre jovens), Karen começou a passar mal. Encaminhada ao hospital, soube que tinha sofrido um choque hemorrágico — e já perdera 50% do seu sangue.
“Empreendedores costumam dizer que verteram lágrimas, sangue e suor pelas suas empresas… Eu, literalmente, dei meu sangue”
Depois de uma cirurgia de emergência no útero, Karen continuou o tratamento no Rio. “O que fica para mim é que eu estava disposta a morrer pela Ganbatte.”
COMO CONCILIAR PROJETOS PARA MANTER A SAÚDE (FINANCEIRA, INCLUSIVE)
A emergência médica fez Karen repensar sua dedicação à Ganbatte.
Em 2018, ela ampliou o horizonte para focar em outras atividades que trouxessem retorno financeiro e permitissem manter seu negócio operando com um estilo de vida menos extenuante.
Passou a trabalhar para o Pense Grande, onde atua hoje como subcoordenadora de formação, e aplicou para um edital do Programa Marielle Franco de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras, do fundo Baobá. Além de formação política e de liderança, Karen recebeu um aporte de 40 mil reais.
“Com esse apoio, comecei a me desenvolver, fiz várias formações de mentoring e coach, e abri, em setembro deste ano, meu segundo negócio, minha marca pessoal, focada em mentoria de carreiras”
Na nova empreitada, diz, ela usa os conhecimentos adquiridos com a Ganbatte para ajudar profissionais, em especial negros periféricos, a planejarem suas carreiras e conquistarem seus objetivos.
“Também dou apoio e dicas para que as pessoas conciliem vida pessoal e profissional de forma equilibrada — o que eu não fiz, mas aprendi.”
A META PARA 2021: OFERECER UMA FERRAMENTA AUTOMATIZADA DE SELEÇÃO
Com a pandemia e os cortes de vaga em micro e pequenas empresas, Karen reduziu 75% da estrutura da Ganbatte, deixou de captar novos clientes e manteve a operação só com capital de giro para resistir até 2021.
A empresa chegou a ter cinco pessoas por projeto. Hoje, há apenas Karen e um colaborador tocando os atendimentos.
Para reverter a situação, seu objetivo agora é captar 200 mil reais e automatizar o trabalho de recrutamento e seleção — hoje, o match com as empresas é feito manualmente.
Com a adoção de tecnologia, Karen crê que conseguirá escalar o número de empresas atendidas — e o impacto gerado pelo seu negócio.
“A Ganbatte já não é mais apenas ‘uma ideia’, não se encaixa mais em muitos editais de aceleração. Ao mesmo tempo, não está em fase de crescimento, em que se concentram os programas de investimento. Esse é o desafio: captar mesmo estando no vale da morte”
Apesar do desafio, ela se diz otimista. Para quem já viu a morte de perto e deu o sangue pela empresa, o vale da morte das startups não parece mesmo tão assustador.
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