Esses dias me dei conta de que vivo há 18 meses no coração da “New England”.
A rigor, esse termo significa a região formada pela meia dúzia de estados que fica acima de Nova York, no nordeste dos Estados Unidos.
Mas me refiro aqui, de modo mais amplo, aos territórios de colonização britânica que ainda guardam essa ancestralidade bem marcada, desde a arquitetura de tijolinhos vermelhos (que eu adoro) até a comida sem graça (que eu lamento).
Pense no quadrante norte/leste dos Estados Unidos, mais as províncias canadenses do lado do Atlântico – exceto Québec.
Estamos falando do umbigo do mundo WASP (White Anglo-Saxon Protestant). Do centro gravitacional do homem branco, oriundo da Europa ocidental, que veio para a América construir uma nação e afirmar seus costumes e tornar o inglês a nova língua franca do planeta – com uma arma no coldre e uma bíblia na mão
Estamos falando dos Yankees que venceram a Guerra de Secessão estadunidense. Do Norte letrado e industrial, que depois guerreou com meio mundo e enriqueceu um bocado em cada uma dessas refregas.
Estamos falando dos Founding Fathers da democracia e do capitalismo, que inventaram o mundo do conforto material e das facilidades tecnológicas do qual nos beneficiamos hoje – mas que também escravizaram negros e dizimaram índios de costa a costa.
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Não me refiro aqui àquele branquelo babaca, afogado em seu próprio ódio e em sua própria ignorância, que fica fazendo saudação nazista. Esses idiotas que levantam a bandeira torpe da “supremacia branca” são, em sua maioria, white trash. São a expressão mais vulgar e virulenta do poder branco.
O controle da sociedade pelos brancos, as vantagens e prerrogativas dos WASPs sobre os demais, como um direito de nascença, são um fenômeno muito mais sutil, profundo e poderoso: está no controle do sistema financeiro mundial, e das grandes companhias, nas principais indústrias do planeta, pelo homem branco. Isso, sim, é garantia de privilégios
Boa parte dessa pax mundial definida pela concentração do dinheiro entre os caras-pálidas – e dessa ordem econômica ensurdecedora em seu silêncio elegante – está enraizada, há gerações, em “New England”, esse pedaço do mundo em que me encontro.
Também não me refiro aqui àquele idiota brasileiro que se considera branco e que faz de tudo para afirmar essa “vantagem” sobre os demais – os brancos brasileiros, no mais das vezes racistas estruturais (quando não racistas orgulhosos da ofensa), sequer são brancos. (Ao menos não do ponto de vista da “Nova Inglaterra”.)
Não estou sequer falando do homem branco mediterrâneo. Estou falando do homem branco de ascendência nórdica – britânicos, alemães, holandeses, escandinavos. É nesse ninho que estou pousado.
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Logo aqui, do outro lado do lago Ontário, repousa a ideia do destino manifesto – uma autossugestão megalômana que deu certo, sob certo ponto de vista, por vários anos.
A ideia era que aqueles colonizadores tinham a missão divina de se espalhar pelo continente, a partir do seu porto de chegada – “New England” –, para civilizá-lo. Para catequizá-lo. Para torná-lo mais branco, mais protestante e mais anglo-saxão
E por que não espalhar essas benesses pelo mundo todo? Conquistadas as fronteiras, a gente as defende. Depois, a gente as expande. Mesmo que na base do tiro.
Trata-se de um compromisso do povo eleito. Aqueles colonos de olhos e cabelos claros enxergavam em si virtudes especiais que tinham o dever de ungir sobre os gentios – essa era a vontade de Deus.
Começaram fincando sua bandeira santa, e suja de sangue, a oeste do Mississipi. E não pararam mais – conquistaram territórios e anexaram ilhas, espalharam bases militares e apoiaram golpes, invadiram países e derrubaram regimes mundo afora.
Sem jamais alterar sua rotina de comer ovos com bacon no café na manhã e de assistir a longos e tediosos jogos de beisebol.
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Essa é a minha vizinhança. Moro em Toronto, a terceira maior cidade da América do Norte. A rigor, trata-se de uma das cidades mais multiculturais e cosmopolitas do mundo.
Toronto é uma das portas de entrada para o Canadá, um país construído na imigração (e que país não é?). Uma metrópole em que quase 50% dos residentes pertencem a grupos sociais considerados não-hegemônicos – há mais de 200 origens étnicas diferentes entre seus 4,5 milhões de habitantes (7,1 milhões na Grande Toronto).
De todo modo, mesmo no lado canadense da fronteira, provavelmente mais civilizado e consciencioso do que o lado de lá, estou no QG do mundo branco. Estou nas cercanias da sede. No seu quintal. De onde é possível observar os hábitos do dono da casa.
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Observo sua cultura baseada na ética do trabalho, na acumulação de bens, no respeito à privacidade e à propriedade privada.
Tem sido instrutivo perceber como lidam com a cidadania, com os conflitos e discordâncias, com as disputas políticas. Observo o modo como colocam as coisas e como se colocam nas conversas. Estilos que não raro contrastam com o sistema operacional de um latino.
Tento compreender seu senso de decência. A respeitabilidade não é tanto uma questão física, corporal – tem mais a ver com os gestos, as palavras, a reputação. Algo sutil, que demarca outra diferença importante em relação ao modo latino de ver as coisas
Admiro seu gosto pela eficiência. Pelos processos que constroem sistemas que fazem as coisas funcionarem.
E aprecio seu humor a um só tempo ferino e respeitoso. Que busca sempre o wit e a (auto)ironia.
Eles não acham, ao contrário de nós, que seguir a cartilha emburrece e que o brilho está no improviso. Para eles, a cartilha nos protege dos idiotas – e a necessidade do improviso é só falta de planejamento e organização.
Vejo como trabalham o senso de dever do indivíduo em relação à sua comunidade – desde a escola. E como valorizam os direitos individuais, e como preservam o espaço e a integridade do outro.
Eles praticam uma espécie de individualismo altruísta. É cada um na sua, mas todo mundo cuidando do que é de todos.
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Adoro a arquitetura que me cerca – o estilo inglês produz casinhas de boneca (ou de hobbits, se você preferir), com tijolo ou pedras à vista. Os quarteirões, de modo geral, são maquetes bem cuidadas. Com seus jardins, chaminés, gramados e alpendres. Há uma sensação generalizada de conforto – talvez porque o frio torne o aconchego uma obrigação.
Ou muito me engano, nesse primeiro ano e meio de vida boreal, ou o frio é quase um fator de estímulo à virtude moral e ao denodo de uma gente que ergueu uma civilização contra a hostilidade da natureza e a dureza do clima.
(Em contraposição à suposta lassidão dos trópicos, talvez? Será que aquele eterno coqueiro que dá coco ajudou a ferrar com a vida do nosso patrício inzoneiro?)
E há a beleza, surpreendente para um brasileiro, da relativa igualdade de condições entre os cidadãos – as coisas boas da vida são distribuídas de modo muito mais equânime entre todos.
A coisa mais feia do Brasil, em termos estéticos mesmo, é o nosso abjeto fosso social.
O equilíbrio econômico entre os indivíduos propaga as coisas bacanas em escala: elas estão por todo lado. O que no Brasil é bolsão, aqui é padrão
Outro choque para um brasileiro: não é necessário que os outros não tenham para que você se sinta bem por ter. Ao contrário: se os outros têm também, você pode curtir com mais tranquilidade aquilo que conquistou.
Tenho aprendido que não é possível nutrir um sentimento de comunidade e erguer cercas ao mesmo tempo. Uma coisa é incompatível com a outra.
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Eis, talvez, a principal lição que aprendi no berço do capitalismo liberal: só é possível construir um ambiente de mais confiança e solidariedade entre as pessoas se ninguém se sentir compelido a instalar fechaduras auxiliares nas portas.
E só é possível dormir tranquilo sem esses cadeados se seus vizinhos também tiverem uma casa para morar e alguma comida na geladeira.
Adriano Silva é fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft, Founder do Draft Inc. e Chief Creative Officer (CCO) do Draft Canada. É autor de nove livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores.
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