Você já considerou reduzir o consumo de carne? Se sim, saiba que você não está sozinho.
Segundo uma pesquisa do The Good Food Institute (executada em parceria como o IBOPE), 49% dos brasileiros tomou essa decisão entre maio de 2019 e abril de 2020. Divulgado em dezembro, o levantamento ouviu 2 mil pessoas das classes A, B e C, em maio do ano passado.
Esse estudo revela a ascensão dos flexitarianos. São consumidores que buscam reduzir a ingestão de carne por preocupações ambientais, de natureza ética ou por cuidados com a saúde, mas que não abrem mão totalmente do consumo da carne — e procuram, em paralelo, opções vegetais que imitam o aroma, o sabor e a textura da proteína animal.
Para abocanhar essa fatia do público (além dos vegetarianos e veganos, claro), foodtechs e gigantes da indústria alimentícia travam uma disputa acirrada. Nos últimos cinco anos, as vendas de substitutos da proteína animal cresceram 11% ao ano no país, segundo a Euromonitor. Em 2020, o setor faturou 418,7 milhões de reais — e esse faturamento deve dar um salto e chegar a 666,5 milhões de reais até 2025.
Mas do que estamos falando quando falamos em carne plant-based? Qual é a base vegetal desses produtos?
Na maioria das empresas em operação no Brasil, estamos falando de grãos — ou das proteínas deles, isoladas em laboratório.
A seguir, destrinchamos os principais players desse mercado, seus desafios e estratégias.
FAZENDA FUTURO
Grão de bico, ervilha e soja não-transgênicos são a base das almôndegas, carnes moídas, frangos, hambúrgueres e linguiças plant-based da Fazenda Futuro.
A foodtech fundada em 2019 sacudiu o mercado no país com sua primeira linha de produtos. Segundo Marcos Leta, fundador da startup (confira nossa entrevista completa), ao longo do tempo, a equipe de desenvolvimento foi se desafiando:
“Depois de atingir o aroma, sabor e textura, fomos colocando novas variáveis para serem alcançadas como maciez, conseguindo dar a elasticidade da carne, algo que geralmente os vegetais não têm”
Em janeiro de 2021, a Fazenda Futuro lançou uma nova versão de seu hambúrguer, com óleo de coco e canola na receita.
“O Burguer 2030 é muito mais saboroso, saudável e sustentável, além de ter menos calorias, sódio e teor de gordura do que a versão 2.0”, diz Marcos.
NOTCO
A foodtech chilena NotCo está no mercado brasileiro desde 2019 (leia nossa entrevista com o fundador).
Eleita recentemente em um ranking da Fast Company como uma das dez empresas mais inovadoras da América Latina, a startup utiliza uma inteligência artificial (batizada de Giuseppe) para testar e definir as formulações veganas de seus produtos — maioneses, leite, sorvetes e hambúrgueres. Segundo o country manager Ciro Tourinho:
“O Giuseppe usa o machine learning para aprender e se retroalimentar. O primeiro produto da NotCo, a NotMayo, demorou 18 meses para ser feito. Já o hambúrguer levou [apenas] dois meses de desenvolvimento”
Comparados aos de outras marcas, os insumos da carne vegetal da NotCo são mais variados.
O hambúrguer da NotCo leva proteína de ervilha, óleo de coco e de girassol, fibra de bambu, cacau em pó, proteína de arroz, beterraba (para emular o aspecto de carne “sangrenta”), e têm suplemento de ferro, zinco, vitamina A, B9 e B12.
Mesmo com a inteligência artificial, o fator humano ainda é fundamental, diz Ciro.
“O sabor fica por conta do Giuseppe, mas ele não chega na textura — isso é algo que nossa equipe faz testando. E não adianta ter um gosto de hambúrguer se não tem a textura.”
SADIA (BRF)
Em março de 2020, chegou ao mercado a linha Veg&Tal, da Sadia (marca da BRF, dona também da Perdigão), que inclui hambúrguer e nuggets à base de proteína de soja e de trigo, com aromatizantes naturais.
Os produtos são enriquecidos com B12. Segundo Demetrio Teodorov, executivo de inovação da BRF:
“Foi um soft launch para entendermos o mercado e agora em 2021 colocar em prática todas as estratégias que desenvolvemos com o lançamento de seis a dez produtos por trimestre”
Demetrio diz que o know-how da empresa foi fundamental para superar os desafios:
“Temos aptidão corporativa de pesquisa, desenvolvimento e da área de novos negócios em olhar para uma melhor formulação e para uma embalagem com mais informações.”
Para chegar ao sabor e à textura de seus dois produtos que imitam carne, a empresa pesquisou 14 diferentes tecnologias e aplicações e realizou teste sensorial com equipe externa e interna da BRF.
SEARA (JBS)
A Seara, marca da JBS, lançou a Incrível, sua linha de carnes vegetais, em janeiro de 2020.
Além de proteínas de ervilha, soja e trigo, os produtos levam o que a empresa chama de biomolécula I, desenvolvida no hub de estudos da empresa.
“A biomolécula I é um conjunto de aromas extraídos da natureza e que concede sabor e textura de carne aos produtos”, diz Renata Nascimento, gerente de P&D Inovação.
Os produtos são enriquecidos com ferro e B12. Há 13 itens no catálogo, que incorpora versões de carne bovina, suína, aves e pescados, além de pratos prontos como escondidinho e frango oriental.
Raphael Cumplido, gerente executivo de marketing da Seara, diz que, além dos desafios técnicos do plant-based, foi preciso trabalhar a cultura interna da companhia:
“No começo, causava uma certa estranheza, por sermos uma empresa de proteína animal. Mas mostramos para o time que, sendo uma empresa especialista em carne, seria um diferencial competitivo investir também na categoria plant-based.”
SUPERBOM
Muito antes que se falasse em “foodtech” e “plant-based”, a quase centenária Superbom já produzia carnes vegetais. À venda desde 1969, esses enlatados à base de soja e glúten não têm intenção de imitar a carne.
Hoje, porém, a empresa tem uma linha de 18 opções de congelados plant-based, como empanados, filé de frango, hambúrguer, linguiça e salsicha. Segundo David Oliveira, gerente de marketing:
“Nossa equipe de desenvolvimento e inovação testou mais de 100 tipos de proteína isolada de ervilha até chegar na fórmula ideal”
Reproduzir a textura foi um dos principais obstáculos, em especial no caso das réplicas de frango:
“Conseguimos produzir um frango vegetal com fibras longas que desfiam. Foi um processo bem dispendioso de tempo, técnica e profissionais. Para este ano, vamos lançar a versão 2.0.”
A Superbom produz 41 toneladas de carnes vegetais por mês. Lançados entre 2018 e 2019, os congelados plant-based são enriquecidos com vitaminas A, B9, B12, ferro e zinco e estão disponíveis em mais de 25 mil pontos de venda em todo Brasil.
THE VEGETARIAN BUTCHER (UNILEVER)
A The Vegetarian Butcher, empresa holandesa comprada pela Unilever em 2018, oferece no Brasil desde outubro de 2020 quatro produtos à base de proteína de soja: almôndega, carne moída, empanado de frango e hambúrguer.
Atingir o sabor ideal foi o que levou mais tempo de desenvolvimento, diz Camille Lau, gerente de marketing da Unilever Food Solutions:
“Ouvimos em pesquisas pessoas falando que desistiram dos produtos plant-based por causa do gosto. Elas achavam os produtos muito carregados de temperos. Pensando nisso, desenvolvemos uma tecnologia de aromatização própria para essa categoria”
Os itens são vendidos apenas para o food service. São mais de 180 endereços no Rio e em São Paulo.
“Quisemos começar no food service, onde o consumidor pode ter uma primeira experiência com nosso produtos, e estamos estudando a possibilidade de oferecer também no varejo.”
WESSEL
Empresa familiar há mais de 60 anos no mercado de carnes, a Wessel também resolveu entrar neste nicho. Em parceria com o fundo Bela Vista Investimentos, investiu 20 milhões de reais para construir uma nova fábrica e tirar do papel a Meta Foods
Desde janeiro de 2021, a Meta Foods vende hambúrgueres à base de soja, em dois sabores (cebola e ervas; e páprica, tomate e alecrim).
“Estamos agora desenvolvendo o empanado de frango, que deve ser lançado nos próximos meses e vai manter aquela textura e crocância da carne animal”, diz Titi Wessel, que toca a empresa com o pai, o fundador István Wessel.
Para István, a principal dificuldade foi replicar textura e suculência: “Queríamos que essas duas características chegassem perto dos hambúrgueres que a gente produz de carne.”
Outra missão foi criar sabores diferentes, comenta o fundador:
“Como não queríamos que nossos produtos tivessem gosto de carne, como é com a maioria dos plant-based hoje, pensamos em temperos e ingredientes naturais interessantes”
Sim, esse é um dos lemas da Meta Foods: oferecer um hambúrguer plant-based que não tenha o sabor da carne animal — apenas a textura.
O CUSTO DA MATÉRIA-PRIMA É UM ENTRAVE PARA O GANHO DE ESCALA
Apenas 36,5% dos entrevistados daquela pesquisa do The Good Food Institute topariam pagar a mais por um produto análogo vegetal.
O pacote com duas unidades de hambúrguer vegetal custa R$ 17,99 na Sadia e na NotCo; R$ 22,99 na Seara; 19 reais na Superbom; R$ 18,90 na Fazenda Futuro; e R$ 19,90 na Wessel (a Vegetarian Butcher só abastece o food service, então não há como comparar o preço).
O custo da matéria-prima em dólar é um dos principais entraves para permitir o ganho de escala e reduzir preços.
“Hoje, grande parte da nossa matéria-prima é importada. Existe um trabalho grande, não só da NotCo, mas de outras empresas do setor, de desenvolver fornecedores locais”, diz Ciro.
Raphael diz que a Seara lida com o mesmo problema:
“Muitos dos nossos insumos ainda são importados, temos o desafio de democratizar essa linha e nacionalizar os ingredientes para não ficarmos tão refém do dólar e da importação”
István, da Wessel, dona da Meta Foods, faz coro. “A soja pode até ser plantada no Brasil, mas a [nossa] matéria-prima não é a soja — é a proteína da soja, que vem de fora do país.”
A FALTA DE SUBSÍDIOS DESEQUILIBRA A COMPETIÇÃO COM A PROTEÍNA ANIMAL
O investimento em tecnologia acaba pesando contra a indústria plant-based, diz Camille, da Vegetarian Butcher:
“A carne de origem animal não demanda tecnologia, é uma indústria que tem seus subsídios, então é difícil de competir nesse contexto. Por isso, hoje o consumo do plant-based [ainda] acaba ficando para algumas ocasiões específicas”
Marcos, da Fazenda Futuro, também cita a questão dos subsídios. “O único jeito de diminuir custo é aumentar o volume — e contar com algum benefício para produzir plant-based aqui.”
NA PANDEMIA, A DIGITALIZAÇÃO TEM AJUDADO A CHEGAR AOS CONSUMIDORES
A pandemia, parece, despertou preocupação com hábitos mais saudáveis — o que se reflete nas escolhas alimentares.
Para se conectar com o público em um momento de restrições no funcionamento dos restaurantes, a Fazenda Futuro resolveu investir em uma hamburgueria “dentro” do iFood (apenas para pedidos na capital paulista): a Futuro Station, com quatro opções de sanduíches plant-based, além de acompanhamentos, bebidas e sobremesas.
Outras marcas também enveredaram por essa estratégia. Além de manter uma loja online, a Seara lançou, no fim de 2020, em parceria com a ghost kitchen Taste Cloud, a Lanchonete Incrível, que vende hambúrgueres e cachorro-quente plant-based pelo iFood:
“Estamos num projeto piloto porque existe uma limitação em termos da área que a gente consegue atender em São Paulo. Mas a ideia é expandir essa proposta”, diz Raphael.
Com o mesmo propósito, a NotCo experimentou, entre outubro e dezembro de 2020, vender hambúrgueres plant-based por meio do restaurante Why Not, que funcionava com apoio de uma ghost kitchen e pedidos pelo iFood.
“Foi uma boa maneira de as pessoas experimentarem nosso produto, desde o hambúrguer à maionese e o sorvete usado nos milkshakes”, afirma Ciro. O Why Not foi desativado, mas loja online da NotCo segue vendendo e entregando produtos em São Paulo.
A BRF também lançou seu e-commerce na quarentena, a Mercato em Casa, e a primeira loja modelo física, o Mercato Sadia, na Vila Leopoldina, Zona Oeste da capital paulista.
É O FIM DA PECUÁRIA? NÃO TÃO CEDO
A pecuária é responsável pela emissão de 7,1 gigatoneladas de gases de efeito estufa por ano. Além disso, traz dilemas éticos, devido ao confinamento e ao abate de animais.
Enquanto Fazenda Futuro, NotCo e Superbom já nasceram com o propósito de não envolver animais na produção, Sadia, Seara, Wessel e Unilever acreditam que a produção de proteína animal ainda é uma tendência.
A indústria da carne, de fato, não sofreu grandes impactos. A proteína animal manteve-se no prato de 99% dos entrevistados do The Good Food Institute. Para Titi, da Wessel, o crescimento do plant-based é uma realidade por enquanto restrita ao mercado A e B.
“Existe uma demanda crescente por carnes vegetais, mas a quantidade de churrasqueiros postando nas redes sociais também aumenta. São dois movimentos meio antagônicos e simultâneos”
Raphael, da Seara, vai na mesma linha: “A gente ainda tem um público que consome os dois, não vemos essa linha canibalizando o consumo de nossos outros produtos”.
O FUTURO DO SETOR PODE ESTAR NA CARNE CULTIVADA EM LABORATÓRIO
Os dois segmentos — proteína animal e plant-based — podem conviver bem, mas com estratégias claras para a divulgação de cada um, explica Demetrio, da BRF:
“Se é um produto meat like, provavelmente vamos tocar o coração de um curioso ou de um flexitariano, que não come carne às segundas-feiras, por exemplo. Se o foco for os vegetarianos, temos que pensar em expor nas embalagens os selos de certificação”
Recentemente, a BRF deu um passo além e se tornou a primeira empresa brasileira a se envolver no desenvolvimento de produtos diretamente a partir das células dos animais, a chamada carne cultivada.
O anúncio foi feito no começo de março de 2021; a inovação será possível graças a uma parceria com a startup israelense Aleph Farms. Segundo a BRF, os produtos de carne cultivada devem chegar ao mercado brasileiro até 2024.
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