Bolsonaro prometeu retroceder a história do Brasil em pelo menos 50 anos. E ele tem cumprido essa promessa.
Se o slogan de Juscelino era “50 anos em 5”, no sentido de caminhar adiante, em direção ao futuro, o slogan de Bolsonaro poderia ser “50 anos em 2”, no sentido de caminhar para trás, em direção ao passado.
Estamos revivendo um clima de tensão entre as forças do autoritarismo e da reação, com o aplauso ou o silêncio cúmplice dos patrícios mais conservadores, e o desejo de democracia e mudança, expresso pela exasperação atual de todos os demais brasileiros, dos liberais aos esquerdistas. Um cenário muito parecido àquele que havia no país na década de 70.
Estamos de volta aos anos de resistência democrática ante à ameaça aos direitos civis, às liberdades individuais, às conquistas das minorias, ao bom funcionamento das instituições.
E, outra vez, estamos assistindo nossos capitalistas se bandeando para o lado do tacape, sem o menor constrangimento em jogar no lixo a construção de uma vida mais civilizada no país em nome de ganhar uns trocados a mais no curto prazo.
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Eu fico triste quando penso em todo mundo que lutou muito lá atrás para tirar o país das trevas. Para que inseríssemos o Brasil no clube das democracias ocidentais, para que transformássemos o país num lugar mais justo e sustentável, numa nação com uma taxa melhor de civilidade estendida a todos os seus cidadãos.
Esse pessoal, que enfrentou os coturnos quando eu era criança, não imaginava que iríamos, décadas depois, usar o voto, tão arduamente reconquistado, para jogar o país de volta à escuridão.
Estamos colocando sob risco todos aqueles avanços. Estamos tendo que reabrir discussões que já julgávamos superadas, e argumentar o óbvio. Com gente que parece ter chegado ontem da Idade Média — com a memória, a noção de justiça e o senso de ridículo zerados
Ter que defender a imprensa livre, e instruir as pessoas sobre a óbvia diferença entre uma informação apurada profissionalmente, por um veículo jornalístico, e boatos e mentiras que qualquer um pode criar sobre qualquer coisa e enviar para qualquer outra pessoa por meio de correntes via celular, é um exercício deprimente.
Da mesma forma, ter que argumentar para que sigamos a ciência e não a religião, para que ouçamos os cientistas e não um general, para que acreditemos nos médicos e não nos pastores, é de fazer cair todos os butiás do bolso.
Enquanto o planeta acelera em enfrentar questões importantíssimas, de gênero, de raça, de orientação sexual, com o viés de incluir as diferenças e garantir direitos a todos, ampliando esse olhar para novas fronteiras, como a gordofobia e o etarismo, e banindo de vez o uso de slurs (termos pejorativos usados para depreciar ou insultar indivíduos ou grupo sociais), a gente parece chafurdar numa pauta setentista.
Assistimos, constrangidos, na televisão, a um presidente que xinga jornalistas (e suas mães), e se dirige aos brasileiros como um bando de “maricas”, e tenta construir uma realidade própria, cafona, grosseira, burra, apartada dos fatos.
Na verdade, em 2021 estamos piores do que há meio século.
Em nenhum momento de nossa história vimos um general, mesmos nos períodos mais cruentos da ditadura, renegar a existência de uma doença grave (quanto mais de uma epidemia global), nem obstaculizar o acesso da sua própria população a medicamentos, nem estimular comportamentos lesivos à saúde pública
A ditadura militar brasileira nunca promoveu esse tipo de absurdo.
Penso na minha mãe. Que se emancipou aos 17 anos, nos anos 60, e foi à luta, encarar a vida. Ela, que foi feminista de primeira hora e brigou por tantos direitos que eram negados a mulheres como ela – do jeito de vestir, falar e se comportar ao direito a vez e voz e voto; do direito de não se submeter a um homem e ser o “chefe” de sua própria família ao direito de ser respeitada como cidadã em todas as instâncias da vida.
Às vezes imagino que ela, hoje, aos 71, talvez se sinta um pouco frustrada com o curso da história. Ou decepcionada com os destinos que o país escolheu para si.
Penso na vanguarda dessa geração que rompeu com tanta coisa. Caetano, Chico, Gil, Gabeira, José Celso Martinez Corrêa. Eles quebraram um bocado de paradigmas. Se colocaram na linha de frente para mover uma série de tabus e ideias antiquadas.
A visão do Brasil em 2021 – com tantos conceitos obsoletos e tortos sendo ressuscitados, com o título de “mito” sendo entregue a quem disser mais barbaridades, a quem for mais imbecil, quem soar mais ofensivo – deve ser um bocado melancólica para essa turma.
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A evidência mais clara dessa marcha do Brasil em direção ao passado é que não há melhor trilha sonora para os tempos atuais do que a MPB de protesto dos anos 70.
Canções marcam época. Traduzem o espírito de um determinado tempo. E catalogam com seus acordes os eventos dentro da gente
Que músicas definem melhor o sentimento do país hoje do que “Desesperar jamais” (1979), do Ivan Lins, “Apesar de você” (1970), do Chico, ou “Amanhã” (1977), do Guilherme Arantes?
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Essas canções traduziam o sentimento nacional há quatro ou cinco décadas. E voltaram a ser a mais justa expressão dos brasileiros com mais de dois neurônios em 2021.
Ivan, que nos anos 80 já estava cantando canções de amor, Chico que nos 90 apontou sua lírica para a grande poesia, e Guilherme, que em seguida viraria um ídolo da juventude antes da eclosão do rock nacional, bem que podiam voltar a compor como antigamente. Nada seria mais contemporâneo.
Adriano Silva é fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft, Founder do Draft Inc. e Chief Creative Officer (CCO) do Draft Canada. É autor de nove livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores.
Ao longo da vida, vamos colecionando papéis sociais que “definem” quem somos – mas só na superfície. Quando foi a última vez que você se despiu dessas personas e se viu no espelho? Ou enxergou de verdade quem estava ao seu lado?