O Brasil é uma potência do agronegócio, isso todo mundo sabe. Falando especificamente da pecuária, o país ostentou, em 2020, os títulos de maior rebanho bovino do mundo, com 217 milhões de cabeças de gado; e maior exportador desse tipo de carne, totalizando 2,2 milhões de toneladas e 14,4% do mercado global (os dados são da Secretaria de Inteligência e Relações Estratégicas da Embrapa).
O que às vezes muita gente esquece é que, para além do campo, granjas, lagos e tanques de aquicultura, os números também impressionam. Segundo o Radar Pet 2020, aqui vivem 84 milhões de cães, gatos e outros bichos de estimação, o que nos coloca na vice-liderança do ranking das maiores populações de pets do planeta.
Esses dois universos entram no escopo da MSD Saúde Animal, que produz vacinas e medicamentos veterinários. Presente em 76 países, a empresa pertence à farmacêutica americana Merck Sharp & Dohme e atua no Brasil desde 1952, ajudando a impulsionar um setor que cresceu 16,5% em 2020, segundo o SINDAN (Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Saúde Animal).
A novidade é o salto que a MSD vem desenhando. Uma vez que nenhum bicho é igual a outro, a empresa passou a mirar, em sua estratégia, a incorporação de soluções digitais que usam inteligência artificial, chips de identificação e sensores que monitoram individualmente o comportamento dos animais.
PARA PROMOVER A SAÚDE ANIMAL (E HUMANA), A ESTRATÉGIA DA EMPRESA É SER “AMBIDESTRA”
A MSD faturou, em 2020, 1,2 bilhão de reais. Tem o objetivo de faturar cerca de 1,4 bilhão de reais neste ano — e chegar a 1,6 bilhão de reais em 2022.
O Brasil é seu segundo mercado. Hoje, são mais de 1 300 colaboradores nas divisões de saúde animal, pesquisa clínica e nas três fábricas. A mineira, de Montes Claros, é a segunda maior planta da MSD Saúde Animal no mundo; há ainda uma unidade em Cruzeiro (SP) e outra em Joinville (SC).
Quem comanda toda essa operação é Delair Bolis, 49, presidente da MSD Saúde Animal no Brasil, Paraguai, Uruguai e Bolívia.
Ele explica que a ideia da empresa é transformar em realidade o conceito de Saúde Única – saúde do animal, saúde humana e saúde do meio ambiente.
“Queremos que os nossos clientes [produtores rurais e veterinários] e os nossos consumidores [tutores de pets] nos vejam não somente como empresa especialista em saúde animal, mas como uma empresa generalista em gestão de bem-estar, produtividade e saúde animal. Para ajudar o cliente, inclusive, a melhorar o acesso dele ao mercado”
O objetivo, portanto, é gerar transparência para o consumidor de proteína animal em relação à origem dos produtos encontrados nos supermercados; e bem-estar dos animais de produção e de companhia.
Para isso, a estratégia da MSD, diz Delair, é ser “ambidestra”, desenvolvendo novas drogas e vacinas (por meio de sua área de P&D) enquanto, paralelamente, consolida um braço forte de soluções tecnológicas.
O POTENCIAL DA INTELIGÊNCIA DE DADOS PARA A MEDICINA VETERINÁRIA
Há quatro razões principais para se usar produtos veterinários: controlar doenças; prevenir doenças; melhorar a produtividade e/ou a qualidade de vida; e agregar valor ao produto final, no caso específico dos animais de produção.
Antigamente, explica Delair, o rebanho era cuidado sem qualquer diferenciação entre espécimes. Isso no mundo todo.
Porém, conforme os animais foram se valorizando (hoje, segundo a empresa, um bezerro já nasce valendo 1,5 mil reais, e o valor sobe para 8 mil reais na idade do abate; uma vaca leiteira vale em média 20 mil reais), eles passaram a ser olhados de forma individual, recebendo atenção personalizada.
Claro, o nível de “personalização” varia dependendo do país. E se reflete na saúde do animal:
“Em Israel, a recuperação de um animal pós-tratado é de 72 a 78 horas. No Brasil, ela ainda é de cinco a sete dias. Por quê? Porque a inteligência de dados coletados no animal gera informação para que o veterinário possa entrar com a medicação no momento mais apropriado e usando, inclusive, uma menor quantidade de medicamento, porque ele vai atuar antes que a infecção se torne mais agressiva!”
Tecnologias hoje permitem saber se o animal comeu a quantidade usual, se caminhou a quantidade de passos que costuma caminhar, se bebeu água, se a temperatura de seu corpo alterou-se, se a água em que é criado está limpa e oxigenada, se ele é geneticamente mais resistente a uma doença e menos a outra, ter acesso ao histórico de alergias, cirurgias e medicamentos usados anteriormente…
As possibilidades são inúmeras. O ponto-chave é municiar pessoas — o tutor do pet, o médico veterinário e o produtor — com informações em tempo real, de modo que se possa acompanhar a saúde de cada animal de uma forma mais assertiva e detalhada.
UM INVESTIMENTO DE MAIS DE US$ 4 BI PARA ENCORPAR O PORTFÓLIO DE SOLUÇÕES DIGITAIS
Segundo Delair, a MSD Saúde Animal investe, historicamente, 20% do seu faturamento em desenvolvimento de novos produtos.
Para tangibilizar sua visão de unir tecnologia da informação e saúde animal, a companhia vem se transformando desde 2017, em âmbito global.
Esse processo começou pela criação do departamento de Venturing nos EUA, de acordo com o 3 Horizons Model – framework de estratégia de crescimento da McKinsey que ajuda a pensar sobre o futuro da empresa e a gerenciar o crescimento de forma coordenada. Hoje, há sete startups ativas no portfólio.
Na sequência, de 2019 para cá, foram investidos mais de 4 bilhões de dólares em seis aquisições de empresas com soluções digitais.
A lista inclui: Antelliq (identificação, rastreabilidade e monitoramento digital de animais de produção com Allfex e Biomark e de animais de companhia com Sure Petcare); IdentiGEN (monitoramento via DNA de carne bovina, frutos do mar, porcos e aves da fazenda à mesa); Poultry Sense (tecnologia para medir, comparar e registrar indicadores-chave de saúde e ambiental para prevenir doenças e melhorar o desempenho da produção avícola); Quantified AG (análise de dados que monitora a temperatura e o movimento do corpo de bovinos para detectar doenças precocemente); Scan Aqua (soluções para saúde de peixes); e Vaki (equipamentos de monitoramento de vídeo para peixes).
“Todas elas trazem o mesmo conceito: conectar cada vez mais os seres humanos com os animais — e vice-versa”, diz Delair.
DEPOIS DE INCORPORAR UMA CONCORRENTE, A EMPRESA MERGULHOU NA TRANSFORMAÇÃO DIGITAL
Antes de arrebatar essa meia-dúzia de companhias, a MSD já havia ido às compras, mas de olho no seu segmento tradicional, de vacinas e medicamentos veterinários.
Em 2016, a companhia adquiriu a Vallée, fabricante brasileira do setor. O negócio, de 1,285 bilhão de reais, foi a maior transação da história desse mercado no país.
A junção das duas empresas aconteceu, de fato, em 2019, ano em que a MSD disparou seu processo de transformação digital com a criação da diretoria de Estratégia e Inovação.
“Foi quando começamos a multiplicar internamente que a inovação não vem única e exclusivamente do processo de desenvolvimento de novos produtos. Ela vem da mente acelerada. Então, montamos uma estratégia chamada ‘Capacitação e Engajamento das Pessoas’, para preparar toda a transição”
Após determinar o que seria digitalizado dentro da organização, a nova diretoria passou a desenvolver (com um parceiro não divulgado) uma assistente virtual para uso exclusivo dos funcionários. A ferramenta de inteligência artificial recebeu o nome de MAIA.
PARA INCREMENTAR SUA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL, A MSD RECORREU A UM HACKATHON
A ideia por trás da MAIA é facilitar a gestão e acesso às informações e gerar insights para que colaboradores em campo e executivos fora do escritório tenham acesso a relatórios de maneira rápida e sucinta (por comando de voz ou por escrito), além de possibilitar novas interações com o cliente, melhorando a experiência final.
Atualmente, a plataforma condensa e provê informações da área de vendas como número de visitas digitais, número de visitas presenciais, efetividade de força de vendas e inventário – estoque da cadeia de distribuição.
Neste ano, a empresa realizou seu primeiro hackathon, em parceria com o Centro Universitário FIAP. Batizado de MSD Inovatech Challenge, o desafio visava estimular a criação de funcionalidades preditivas para a MAIA.
As inscrições ocorreram entre maio e junho. Os squads selecionados (cada um com até cinco pessoas) se engajaram, durante junho, em capacitação, mentorias e dinâmicas de ideação e prototipação.
A melhor sugestão receberá um prêmio no valor de 25 mil reais. As três melhores equipes vão ganhar bolsas de estudo na FIAP. Outros reconhecimentos serão oferecidos, segundo a companhia, como indicação do grupo como fornecedor e demoday do top 5 para o board da empresa.
A EMPRESA TIROU DO PAPEL UMA NOVA UNIDADE COM FOCO EM INTELIGÊNCIA DE DADOS
A MSD, claro, não vai abrir mão do seu core business, a frente de drug development, ou seja, a descoberta de novas moléculas.
Um resultado desse trabalho se deu em 2020, quando mais de 6 milhões de suínos foram vacinados sem agulha – e sem dor — no Brasil, graças a uma inovação trazida pela companhia.
A dúvida a ser respondida no futuro próximo é: quão relevante a tecnologia de dados será para o faturamento da empresa?
Ou, colocado de outra forma: o monitoramento e o rastreamento de animais terão um peso equivalente para o negócio ao que tem hoje a frente de medicamentos?
Uma resposta parcial apareceu no início de 2021, quando a empresa tirou do papel uma nova área de negócios especializada no uso estratégico de inteligência de dados – a MSD Saúde Animal Intelligence.
Sob esta unidade estão todas as tecnologias e soluções adquiridas com as startups — e o objetivo é disponibilizá-las no Brasil. Por enquanto apenas Allflex é comercializada por aqui.
A área de Inteligência já tem 33 colaboradores e previsão de faturar em torno de 50 milhões de reais neste ano. “Um ponto interessante é que ela é a sexta unidade em faturamento”, diz Delair, “mas é a quarta em investimentos.”
A CHEGADA DO 5G DEVE SER UM PONTO DE INFLEXÃO CRUCIAL PARA O FUTURO DO MERCADO
As oportunidades nessa nova vertente de negócios parecem ser imensas. Segundo Delair, 80% dos produtores e consumidores brasileiros ainda adquirem o produto veterinário pensando em controlar ou prevenir a doença.
Hoje, apenas a minoria recorre a esses produtos e tecnologias visando melhorar a produtividade, obter retorno do investimento ou prolongar a longevidade do pet.
“Setenta por cento dos produtos que você e eu consumimos no Brasil vêm de pequenas e médias propriedades e a adoção de tecnologia ali é muito menor do que na grande propriedade”, diz Delair. “O primeiro objetivo de todos nós é democratizar o acesso a essas tecnologias, a essa informação.”
Nesse contexto, a chegada do 5G é vista como um ponto de inflexão.
“Imagina o benefício para o animal, quando conseguirmos através da inteligência de dados, gerar informações para o médico veterinário conseguir definir o melhor calendário de vacinação para aquele animal específico, baseado na informação genética dele?”
De repente, explica Delair, aquele animal não precisa tomar quatro vacinas, e sim três — mas, talvez, o outro tenha que tomar cinco. “Essa especificidade é que a inteligência de dados vai nos trazer.”
Tudo indica que estamos bem próximos do dia em que não existirá mais saúde animal sem inteligência de dados.
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