Agora é lúdico, é legal, é normal. Ela se tornou sujeito e protagonista da sua própria história. Já não era sem tempo.
Agora ela vem de fábrica com autoestima, não depende mais do olhar externo, da aquiescência do outro gênero, do veredito do chamado sexo oposto. Ela não precisa mais de nenhum tipo de aprovação alheia.
Depois de séculos escondida, objetificada, perseguida, temida, rejeitada, abusada, alienada, humilhada, invadida, mistificada, ela passa a não se ver mais pela lente dos homens. Ela não se deixa mais avaliar por critérios masculinos. Ela ganha vida própria – não existe mais para servir a quem quer que seja, exceto sua dona
Estou falando, é claro, da vulva. E da sua companheira inseparável, a vagina.
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Já chamamos a genitália feminina de muita coisa.
Há os nomes funcionais, que só a enxergam pela sua utilidade sexual – sempre do ponto de vista do falo. Como um ambiente penetrável: boceta, greta, cona, racha. Ou como um território a ser conquistado, um ente a ser dominado: perseguida.
Há os nomes rudes, de sonoridade tosca, que tentam conotar a ela algo de grotesco ou mal-acabado: xana, xavasca, xibiu, xota.
Há os nomes ridículos, de sonoridade pândega, que tentam rir dela, como se ela fosse algo burlesco ou caricato: xeca, xereca, prexereca, ximbica. Ou aranha, bacurinha, capô de fusca.
Há os nomes infantilizantes, que tentam amenizá-la como se fosse preciso um eufemismo para se referir a ela, como se fosse desconfortável ou ofensivo chamá-la por seu nome adulto, ou como se não se pudesse achar um nome neutro para se referir a ela: periquita, passarinha, perereca, pombinha, florzinha
Tudo isso é, no fundo, tentativa do interlocutor de lidar com o próprio desconforto diante dela.
Tudo isso, não se engane, é poder masculino oprimindo mulheres.
Tudo isso é vergonha e desconforto introjetados e reproduzidos ao longo de séculos e gerações pelas próprias mulheres em relação ao seu corpo.
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A dupla vulva/vagina parece ressurgir agora com um nome novo e luminoso: pepeca. A genitália feminina, aparentemente, ganha uma nomenclatura neutra, que não carrega nem agressividade, nem zombaria, nem constrangimento.
Pepeca, ao contrário dos palavrões que substitui, carrega uma autoestima alegre, uma autoafirmação lúdica, uma tranquilidade em se assumir frontalmente, com um sorriso sereno nos lábios. (Com trocadilho.)
Finalmente, temos à disposição um nome que normaliza e naturaliza aquilo que as mulheres têm no meio das pernas. Com leveza, com orgulho, de modo assertivo e divertido.
A pepeca finalmente ganha o direito de sair da alcova, do banheiro, dos cantos escuros e escondidos da casa, e vir para a sala, sentar com os demais. Talvez de perna aberta – por que não?
Xoxota é o termo que mais se aproxima da serenidade e do alto astral da pepeca. É como se ao dobrar a primeira sílaba, a “xoxota” tivesse anulado a intenção pejorativa do termo que lhe deu origem, e gerado um jeito bacana e afirmativo da gente se referir à genitália feminina, sem aquelas conotações indesejáveis.
Talvez a xoxota esteja para a pepeca como aquela tia libertária, feminista e prafrentex está para a garota emancipada de hoje.
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Pepeca tem a ver com a chamada quarta onda do feminismo, em curso no mundo na última década, marcada pelo ativismo digital, propagado pelas redes sociais e praticado pelas meninas no TikTok e também no Tinder.
Essa nova geração de feministas tem gerado expoentes como Malala e Chimamanda – ou as meninas do Think Olga e da AzMina aqui no Brasil.
A pepeca veio à luz com essas moças que exigem igualdade, lutam por direitos e não têm vergonha de ser mulheres – incluindo nessa autoafirmação todas as particularidades da sua condição (que elas redesenham aos discutirem as fronteiras do gênero feminino e do que significa ser mulher).
São mulheres (de várias idades, diga-se) mais inteiras e confortáveis consigo mesmas, mais satisfeitas com seus corpos – sejam eles mais jovens ou mais velhos, mais magros ou mais gordos, mais altos ou mais baixos, e que existem com grande diversidade de formas, texturas, cores e acabamentos.
Essas moças respeitam seus grelos e rompem com velhos grilos e grilhões, tantas vezes (auto)impostos. Assim assumem suas singularidades – aquilo que lhes torna únicas no mundo e, portanto, especiais.
Elas rechaçam os papeis de santa ou de puta – e querem mandar essa dicotomia medieval de volta ao puto que a pariu
Essas moças não têm a menor obrigação de dar satisfações a quem quer seja, ou de caber nesse ou naquele modelo ou chapéu. Elas estabelecem novas regras e elegem a si mesmas como sua própria régua.
Elas não nasceram necessariamente para ser mães, não reconhecem essa obrigatoriedade. Muitas delas, inclusive, recusam o caminho da maternidade – nunca tantas mulheres (e homens) decidiram não reproduzir.
Elas também não querem ser só amantes. A coisificação da sexualidade feminina lhes causa engulhos, seja sendo tratadas como princesinhas e bibelôs, seja sendo vistas como ninfomaníacas encharcadas de furor uterino – duas faces da mesma fantasia masculina que tenta amoldar a libido feminina ao seu próprio desejo.
Elas repudiam a ideia do complexo de castração – outra imensa bobagem machista. A pepeca é uma pepeca – ela não é a ausência de um pinto. Uma pepeca se basta, e muitas vezes nem cabe em si. Uma pepeca está muito longe de se definir pela falta de outra coisa.
Essas moças, e suas pepecas, não aceitam mais ser constrangidas – nem por ferros e tacapes, de modo violento; nem por versos e flores, de modo hipócrita. (Não raro, de onde vêm uns, também vêm os outros. E ambos são tentativas de controle externo.) Elas querem ser livres, autônomas, independentes, donas de si.
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Outra força importante nesse afloramento da pepeca é a emergência do mundo LGBTQIAP+. Ao passarem a assumir seu gosto por outras mulheres, as mulheres também passaram a descobrir sua admiração por si mesmas. Autoestima se constrói assim, olhando no espelho. (Inclusive um espelhinho de maquiagem bem posicionado.)
A pepeca está se curtindo tanto que descobriu que a melhor coisa do mundo pode muito bem ser outra pepeca
Perceba o quanto dar uma banana para o pinto num mundo falocêntrico é um gesto revolucionário poderoso, um ato de resistência extraordinário.
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No mundo dos negócios, o protagonismo da pepeca (não o que sempre quiseram lhe dar, mas aquilo que ela escolheu construir para si) está bem expresso nas Sextechs – empresas ligadas ao mundo do bem-estar sexual, não raro lideradas por mulheres e em geral com posicionamento libertário e inclusivo em relação a gênero, raça e orientação sexual.
Alguns exemplos de Sextechs brasileiras: Lilit, Feel, Lubs e PantyNova.
A nova ética trazida pela pepeca está presente também em perfis e comunidades com ótima curadoria, como o ShareYourSex ou o Tech4Sex, liderado por Lidia Cabral, que me deu várias das indicações que repasso aqui.
A égide da pepeca se faz ver ainda nas Femtechs, empresas que oferecem soluções para demandas femininas, num leque mais amplo do que as questões sexuais.
Alguns exemplos de Femtechs brasileiras: a aceleradora B2Mamy, a loja Herself e o aplicativo Lody. (Conheça outras quatro startups desse segmento que já foram destaque no Draft aqui).
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Viva a pepeca e a sua revolução particular, que impacta para muito melhor esse mundo com excesso de testosterona em que vivemos.
Adriano Silva é fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft e do Future Health. É autor de nove livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV e A República dos Editores.
Desde março, o combate ao assédio moral e sexual é uma obrigação de todas as empresas do país, mas a maioria das denúncias ainda fica sem punição. Entenda como as lideranças devem enfrentar este problema endêmico nas organizações.