“Se eu não vejo pessoas como eu ocupando lugares em empresas, na política, na publicidade, na mídia e nas redes sociais, acho que esses espaços não são pra mim. Por isso, decidi mostrar que é possível assumir uma fala de protagonismo tendo uma deficiência.”
Quem diz isso é Andrea Schwarz, 45, empreendedora, influencer (do LinkedIn ao Instagram e TikTok), mãe do Gui e do Léo, companheira e sócia de Jaques Haber e uma pessoa com deficiência desde os 22 anos, quando foi diagnosticada com uma má formação congênita na medula espinhal e passou a usar cadeira de rodas.
Segundo o IBGE, há 45 milhões de pessoas com deficiência no Brasil. Para ajudá-las a, cada vez mais, ocupar os espaços que desejam no âmbito pessoal e profissional, Andrea fundou a iigual, uma consultoria de inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Ao longo de 20 anos, ajudou a inserir mais de 20 mil PCDs em cerca de mil organizações.
Nessa jornada, Andrea transformou sua consciência acerca de seus próprios privilégios em motivação para levar oportunidades a mais pessoas:
“Claro que sei que tive todo um privilégio de educação, de saúde, de emprego… Só que eu entendi que o tamanho desse meu privilégio era o tamanho da minha responsabilidade. E a sociedade, já entendeu isso?”
Há pouco mais de seis meses, ela assumiu uma nova função, paralela: o cargo de CEO no Brasil da EqualWeb, empresa israelense que com sua tecnologia permite tornar um site acessível em cinco minutos. Com 60 clientes no Brasil (entre os quais Coca-Cola, Motorola, Suvinil, Espaço Laser, FGV e Dasa Hospitais), a companhia afirma já ter tornado acessíveis mais de 10 mil sites pelo mundo.
Além de empreendedora, Andrea ainda atua como palestrante e é autora de três livros, em parceria com Jaques (seu sócio na iigual e Chief Impact Officer da EqualWeb). A seguir, ela fala sobre sua trajetória, os impactos da pandemia — e o papel das empresas para fomentar a inclusão, a diversidade e a acessibilidade digital.
Quando e como a deficiência passou a fazer parte da sua vida?
Me tornei uma pessoa com deficiência aos 22 anos, quando fiquei da cadeira de rodas do dia para a noite. Eu estava na praia com o Jaques e, de repente, fui tentar levantar para ir ao banheiro e não conseguia mais me mexer.
Voltamos de Santos para São Paulo, fiquei internada durante 30 dias e foi literalmente um mês de uma imersão interna.
Era tudo muito novo, eu tinha acabado de me formar em fonoaudiologia, entendia um pouco desse universo de pessoas com deficiência…, mas [naquela época] eu estava do outro lado, não sentia isso na pele.
Então, fui descobrindo o que era ser uma pessoa com deficiência em um país completamente inacessível em relação à estrutura física e cultural, onde as pessoas com deficiência eram — e continuam sendo — invisíveis.
O que fez você enveredar pelo empreendedorismo?
Este incômodo de não me sentir representada fez com que eu me interessasse muito pelo assunto de inclusão, pois desde que me vi nessa situação eu sou a mesma pessoa — mas a sociedade me enxerga de forma diferente, subestimando as minhas possibilidades em função da minha deficiência.
Comecei a me aprofundar nesse assunto e a entender onde eu poderia arrumar emprego, que meios de transporte eram acessíveis ou quais os locais que eu frequentava tinham acessibilidade.
Daí, veio a ideia de começar a escrever o Guia São Paulo Adaptada, em 1999, ano em que a lei de cotas foi regulamentada. O livro mapeava a cidade sob o ponto de vista do que ela oferecia para uma pessoa com deficiência, levando em conta a minha vivência em um ano e meio na cadeira de rodas. De lá para cá, já escrevi outros dois livros.
Essa experiência foi me dando um gás muito grande e maravilhoso e comecei a ver que queria trabalhar com isso, pois a grande conclusão do livro é de que não era eu a deficiente — e sim a cidade de São Paulo, que potencializava minha deficiência, me impedindo de ir e vir
Na época, comecei a sair muito na imprensa e receber solicitações de empresas que queriam palestras minhas e consultorias. Assim nasce a iigual, com o objetivo de auxiliar as organizações a serem mais inclusivas.
E como aconteceu o envolvimento com a EqualWeb?
A gente trouxe essa representação com exclusividade para o Brasil e a proposta tem tudo a ver com o que eu já fazia. Na verdade, é um complemento dessas ações. Fala-se muito de acessibilidade física, mas a tecnológica e a de comunicação são muito necessárias.
A tecnologia é um meio muito forte de inclusão, só que as empresas precisam se conscientizar da necessidade de acessibilizar seus sites, porque, por enquanto, a informação não é para todo mundo. Apenas 1% das empresas brasileiras têm sites acessíveis
Acho que isso tem a ver com a questão da invisibilidade em relação às pessoas com deficiência. No geral, a maioria das pessoas não teve oportunidade de conviver durante a infância ou a formação com alguém que tenha deficiência e assim passar a entender suas necessidades. E o que a gente não vê, a gente não entende.
Muitas empresas vão lembrar disso quando o site já está totalmente construído. Só que, antes de ter uma ferramenta como a da EqualWeb, seria muito difícil e caro acessibilizar um site, pois a empresa teria que refazer as páginas. Agora, em cinco minutos está resolvido.
O que são atitudes capacitistas?
O capacitismo é uma forma de preconceito, consciente ou inconsciente, em que se subestima a pessoa em função de sua deficiência — mas não só. Supervalorizar alguém em função da sua deficiência também é capacitismo, por exemplo, me transformando em uma “super mulher” porque eu trabalho, cuido dos meus filhos e da minha casa.
Tem gente que diz: “Nossa, ela faz tudo isso, apesar da deficiência”. E eu não vivo apesar da minha deficiência, mas com a minha deficiência. Isso é muito diferente.
O modo como a gente se comunica também mostra em que contextos sociais vivemos e como vemos o mundo.
E como ser anticapacitista?
Primeiro, se questionando sobre como a gente se coloca no mundo; e, depois, parando de objetificar deficiências.
O que quero dizer com isso é que não sou uma pessoa com deficiência apenas para inspirar os outros. O que tem que inspirar é minha história, o que eu fiz com a minha deficiência — e não minha deficiência propriamente dita
É preciso reconhecer esse preconceito, porque as pessoas sempre entenderam deficiência como algo muito ruim, que desperta pena. Mas a partir do momento em que a gente começa a conviver com essas pessoas, quebramos muitos desses vieses.
As pessoas com deficiência podem levar uma vida como qualquer outra, mas, claro, elas precisam de acessibilidade física, atitudinal, de comunicação, porque do jeito que está hoje, já largamos em desvantagem.
Para corrigir essa desvantagem social, são necessárias ações afirmativas, como a lei de cotas de emprego para pessoas com deficiências, para tentar equiparara oportunidades. Ainda tem gente, no entanto, que acha isso um privilégio, sem entender que as pessoas com deficiência viveram muitos anos de exclusão
Agora, tem se falado muito nisso, mas se olharmos em termos de proporcionalidade — e não de representatividade –, são poucas pessoas com deficiência representadas na política, na publicidade, nas lideranças das empresas, nas novelas… É preciso se questionar e se incomodar com isso.
Tem aquela frase famosa que diz que “diversidade é convidar para o baile e inclusão é tirar para dançar”. Eu digo mais: dançar a música que eu escolhi dançar, não [aquela] que a sociedade quer que eu dance.
Quais dicas você daria para um profissional PCD que está tentando se recolocar no mercado?
Seja você mesmo, não esconda sua deficiência, ela é parte de você, mas não te define. Procure empresas que sejam inclusivas e que já tenham lideranças com deficiência, que enxerguem além da sigla PCD.
Mas também vá atrás do seu sonho e se qualifique cada vez mais, porque esse movimento é bidirecional, tanto da empresa para a pessoa com deficiência, mas também da pessoa com deficiência para a empresa. Então, faça sua parte e conquiste seu espaço.
Como é ser uma influencer tanto no LinkedIn como no Instagram e no TikTok? E o que você tenta passar através dos seus posts?
No LinkedIn, fui escolhida como Top Voice entre 40 milhões de usuários. Foi a primeira vez que uma mulher com deficiência ganhou um título desses numa rede social.
Somando essas três redes juntas, LinkedIn, Instagram e TikTok, são quase 500 mil pessoas conectadas ao meu conteúdo.
Meus posts têm muito a ver com a minha vida real, em que sou protagonista da minha própria história. Depois de 20 poucos anos sentada na cadeira, eu disse muito ‘sim’ para a Andrea e fui driblando os ‘nãos’ que a sociedade ia me falando
E, nesse meio tempo, me casei com o Jacques, tive meus dois filhos…, mesmo com a falta de informação, de não ter tido representatividade, alguém em que pudesse me espelhar, porque naquela época não existia redes sociais.
Essa exposição, no entanto, não é fácil, mas muito necessária para normalizar as questões da deficiência e mostrar que ela não me limita. Eu cheguei aonde quis chegar. Pode ter sido com mais obstáculos do que uma mulher ou uma pessoa sem deficiência.
O Jaques é seu companheiro, cuidador e sócio. Como funciona essa parceria?
O papel do Jaques é bem importante na minha vida, mas não porque ele assume essa função de cuidador, porque eu também cuido dele. A gente não é interdependente.
Ele assumiu uma responsabilidade muito jovem, tinha 19 anos quando fiquei na cadeira de rodas, mas ao mesmo tempo sempre houve entre a gente um amor que transpõe qualquer dificuldade.
Claro que a gente briga como qualquer casal, ainda mais porque ficamos o tempo inteiro juntos, mas somos pessoas que se agregam e se fortalecem, tendo o mesmo propósito e objetivo de vida.
Não tem muito uma divisão de “eu faço isso e você faz aquilo”; os dois juntos cuidam das crianças, tocam a empresa — e cuidam também um do outro
Conhecemos mais de 40 países juntos — sempre se redescobrindo e se apaixonando mil vezes pela mesma pessoa.
Falando em filhos, como o Gui e o Léo lidam com sua deficiência?
Eles têm muito orgulho, tanto que teve uma vez que fiz uma propaganda com meu filho mais novo e questionaram: “Léo, sua mãe não anda, né?”. Ele falou: “Não, ela não anda, ela voa. Para mim, ela faz tudo muito rápido, nunca deixa faltar nada para a gente”.
Como eu já tive eles na cadeira, os dois nasceram e cresceram com uma visão de lentes inclusivas, entendendo que a gente não vive sozinho, que precisamos uns dos outros para construir uma sociedade pensada para todos
A limitação é minha, mas eles sabem o valor que tem a acessibilidade. Tudo o que peço, na mesma hora, eles fazem, porque sabem das minhas necessidades específicas — mas também sabem da minha potência.
Entendem também que ser inclusivo é deixar a pessoa fazer as coisas, então não ficam 24 horas por dia perguntando se eu quero que eles façam algo. Eu, como mãe, faço muito mais, eles não assumem esse papel.
Como a pandemia afetou sua rotina pessoal e profissional?
Eu consegui fazer um paralelo com o que me aconteceu há mais de 20 e poucos anos. Quando fiquei na cadeira de rodas, essa questão da liberdade pesou, pois meu ir e vir ficou congelado. E na pandemia, também.
Eu aprendi a me reinventar naquela época e agora estou fazendo isso novamente. Acho que a deficiência me trouxe uma resiliência maior, de saber que a gente pode fazer as mesmas coisas de maneira diferente
Minha rotina mudou porque as crianças estão o tempo todo em casa. Voltaram, na verdade, agora para as aulas presenciais, mas até pouco tempo estavam todos aqui. E, com isso, eu descobri uma oportunidade de ficar mais tempo com eles.
Tive também a oportunidade de morar na praia por um tempo e saber que a gente pode trabalhar de qualquer lugar: o anywhere office veio mesmo para ficar.
E aprendi a me desprender de algumas coisas e viver o aqui e o agora. Então, passei a fechar alguns momentos da minha agenda para, de manhã cedo, ir à praia, caminhar um pouco, tomar sol. Depois, volto, me arrumo e está tudo bem, eu consigo cumprir a agenda.
Aprendi a ter mais de flexibilidade, me permitindo respirar um pouco mais.
Você vislumbra um dia em que mais pessoas com deficiência ocuparão o cargo de CEO de uma empresa, como você? Ou a possibilidade de a Disney ter uma princesa com deficiência, por exemplo?
Eu torço e batalho muito para que uma pessoa com deficiência possa conquistar esses lugares. Acho que as empresas têm que ter metas para isso.
No meu LinkedIn fiz um post dizendo que gostaria que as empresas colocassem pessoas com deficiência em seus conselhos. Temos que ter outras cabeças em pontos estratégicos para gerar inovação
Sobre as princesas da Disney, acho que isso já está acontecendo neste universo mais lúdico. Temos, por exemplo, a Barbie cadeirante.
As companhias começaram a entender que têm um papel importante nessa mudança, que precisam assumir essa responsabilidade. É uma tendência as empresas investirem cada vez mais em diversidade para se conectar com o público, com todo mundo, até porque a gente não tem só um tipo de corpo na sociedade, são vários tipos de corpos — e todos têm o direito de ser feliz.
Eu tenho esperança e acho que o ativismo é isso: quando a gente coloca a esperança em movimento
Enfim, esse é meu propósito de vida mesmo. E eu não sossego enquanto não vir as pessoas com deficiência podendo ser quem elas são e ocupando os espaços que querem ocupar.
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