Primeira advogada transexual a ter o direito de usar o nome social na carteirinha da Ordem dos Advogados do Brasil, Márcia Rocha, 56, reconhece que essa conquista é gigante.
Reconhece, também, o tamanho dos seus privilégios. Por exemplo, Márcia nunca teve dificuldade em conseguir emprego. “Eu era menino, homem branco, de família boa, que estudou nas melhores escolas… Tive um monte de portas abertas, ninguém sabia que eu era trans”, ela contou ao Draft.
A paulistana começou a tomar hormônio aos 13, mas, convencida pelo pai, suspendeu a transição de gênero, concluída aos 39. Assim, encontrou as “portas abertas” na vida profissional. O que não a impediu de descobrir os óbvios obstáculos no caminho de pessoas vindas de contextos mais difíceis.
Foi para ajudar outras pessoas trans a ingressar no mercado de trabalho (ou a alçar voos mais altos em suas carreiras) que Márcia idealizou a TransEmpregos.
O projeto de empregabilidade para pessoas trans começou a tomar forma em 2013, a partir de uma articulação de Márcia com o psicólogo João W. Nery, a atriz Maitê Schneider, a cartunista Laerte Coutinho e a psicanalista Letícia Lanz (as três e Márcia são também fundadoras da Associação Brasileira de Transgêneros — ABRAT).
Sem fins lucrativos, a plataforma é usada por empresas como Carrefour e IBM. Em seu primeiro ano, a TransEmpregos viabilizou a contratação de uma única pessoa trans. Em 2020, foram 707.
A seguir, Márcia fala sobre sua trajetória, a evolução do projeto, explica quem tem mais dificuldade de arranjar trabalho — homem trans ou mulher trans? — e comenta a inserção da comunidade no mercado, no contexto da Covid-19.
Você começou a tomar hormônio na adolescência, em pleno regime militar, depois de conversar com uma travesti. Como foi essa fase?
Me lembro de como eu mantinha uma identificação com as meninas [travestis] desde a infância. Percebia os corpos delas mudando e queria que o meu mudasse daquele jeito também. Era uma coisa um pouco inconsciente.
Um dia, já na adolescência, vi uma travesti e fui conversar. Ela me disse o que tomava, é uma pílula que existe até hoje. Fui na farmácia, comprei e comecei a tomar. Em alguns meses, meus seios começaram a crescer
Só contei para um amigo, que me disse: “Agora você vai ter que escolher um nome!”. Foi aí que escolhi Márcia.
Eu tinha 13 anos, estava toda contente, sentindo meu corpo mudando… Mas meu pai percebeu, me levou ao médico e tive de dizer o que eu estava fazendo. Aí, me convenceram a parar [de tomar hormônio].
Fui levando uma vida dupla. Terminei o colegial, entrei na faculdade. Hoje penso que, se tivesse insistido naquela época, não teria conseguido terminar os estudos.
Qual foi o período mais difícil da sua transição?
O que a gente chama de transição é uma mudança de corpo, do que precisa de adequação. Tem gente que quer operar. Eu quis fazer lipoescultura, colocar prótese, mesmo já tendo uma quantidade razoável de seios por conta dos hormônios.
Fui fazendo uma série de mudanças, fiz [depilação a] laser no rosto, tirei a barba, mas, antes disso, ainda na adolescência, como eu tinha desenvolvido seios, meu pai me colocou numa academia para desenvolver a musculatura, principalmente do peitoral, e disfarçar.
E, dos 14 aos 18 anos, realmente disfarçou, mas eu ainda tinha muita sensibilidade nos mamilos. Tinha gente que vinha com gracinha e até apertava. Homens, né? Doía, eu via estrela.
Todo esse período foi difícil. Eu quase não tirava fotos minhas e, veja, eu era um cara bonitão, a mulherada “pagava um pau”… Mas eu olhava no espelho e não estava ali. Não era eu, entende?
É uma coisa que só trans entende. Depois, quando voltei a me hormonizar, deixei o cabelo crescer, comecei a fazer a sobrancelha, que é uma coisa que dá uma bandeira gigante. Me assumi aos 39 anos.
Como surgiu o projeto TransEmpregos?
Em 2013, eu já estava no ativismo, tinha me assumido, conhecia algumas lideranças trans e fazia parte de um grupo de crossdressers com pessoas muito esclarecidas: Laerte, Letícia Lanz, Maitê Schneider, João Nery [morto em 2018, João W. Nery foi o primeiro homem trans a passar por uma cirurgia de redesignação sexual no Brasil]…
Pensamos na questão da empregabilidade porque conhecíamos muita gente qualificada que ou tinha ficado no armário como eu, ou tinha sido colocada na rua na adolescência por terem se assumido. Tive a ideia do projeto, juntei mais uma galera, e começamos a discutir o que fazer.
Inicialmente pensamos em fazer o site, depois fui convidada a fazer parte do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+ que estava sendo criado. Eram oito empresas, depois passaram a onze, hoje são mais de 100. E, nesse Fórum, as multinacionais começaram a fazer parcerias conosco e contratar pessoas.
O site [da TransEmpregos] foi lançado em agosto de 2014. Naquele ano, teve [apenas] uma pessoa contratada. Tinha gente que me falava que aquilo era perda de tempo… Ouvi isso de uma trans, veja só! E, no fim, olha no que deu: no ano passado, foram 707 pessoas trans contratadas
Não tinha dinheiro envolvido: eu paguei durante alguns anos a hospedagem do site, depois conseguimos de graça. Não cobramos nada das empresas: é simplesmente uma ferramenta de ajuda, para quem quer trabalhar, e para as empresas que querem contratar e não sabem onde procurar. A empresa quer diversidade, quer uma pessoa trans na equipe, e vai achar onde? Com a gente.
Como se dá a divisão das atividades entre vocês, no dia a dia? Há uma equipe de apoio?
Nos primeiros anos era só eu. As outras [fundadoras] ajudavam na ideia, mas quem ia até as empresas e fazia palestras, reuniões, era eu.
Em 2017, tínhamos em torno de 1 200 a 1 400 currículos cadastrados. Foi uma época que a gente ficou sem o site e divulgava as vagas no Facebook. Em dezembro, a Maitê Schneider, que é do Paraná, veio morar em São Paulo e eu não estava mais dando conta de tocar sozinha, pedi para ela me ajudar.
Ela tinha mais energia e tem mais tempo que eu, e deu um gás forte, cuidou da parte digital, até hoje faz algumas visitas a empresas. Eu ainda vou, também. A Laerte ajuda muito na divulgação, mas no dia a dia somos mais a Maitê e eu.
Há algum case de corporação mais receptiva a acolher pessoas trans em suas equipes?
A empresa que mais contrata pela TransEmpregos é a Atento [multinacional de contact center]. Quando nos procuraram, já tinham muitas pessoas trans trabalhando lá.
É uma empresa com mais de 40 mil funcionários, dos quais mais de mil são trans. Mas por que isso? Porque é um trabalho em que a pessoa só fala, ela não aparece, então é mais fácil para lidar com o público [sem sofrer preconceito]…
Bom, tem outras empresas que a gente sabe que têm pessoas trans, como a Chilli Beans, o Pão de Açúcar. E outras, como a IBM, que têm poucas, mas as que estão lá ocupam cargos mais altos, então é legal, porque muda a visão, mostra que pessoas trans podem subir na carreira, ser grandes executivas.
A plataforma é voltada apenas à comunidade trans, ou também a outros segmentos da comunidade LGBTQIAP+?
Já aconteceu mais de uma vez de lésbicas e gays me procurarem e falarem que precisavam de uma vaga que a gente tinha anunciado. Eu sempre digo: “Não tem problema, vai lá e tenta! De repente não aparece uma pessoa trans e você pega a vaga”.
Porque, por exemplo, tem empresa que anuncia dez vagas com a gente e duas pessoas trans se candidatam — aí sobram oito.
Já cheguei a pensar que deveríamos ter feito uma coisa mais ampla com LGBT. Nos eventos a gente trabalha a questão da mulher, de raça, etnia, das questões de pessoas com deficiência, porque o problema é junto. Mas, hoje, já existem entidades para todas essas questões.
É cada uma na sua, mas todas juntas e ninguém fica puxando o tapete de ninguém; pelo contrário, só se incentiva.
Mulheres trans versus homens trans: arranjar um emprego é igualmente difícil para ambos os públicos?
Para mulher trans é pior. Homens trans, quando transicionados [concluído o processo de transição] e ninguém percebe, muda o documento, vira um homem, né? E machismo não pega o homem, então eles têm uma vantagem.
Já as mulheres trans dão muito na vista, apesar de terem algumas mais “passáveis” [que aparentam mais o gênero para o qual transicionaram]. Mas, em geral, o preconceito contra elas é maior por causa das travestis, aquelas que estão na rua e que as pessoas associam imediatamente à prostituição.
Acontece até mesmo comigo. Eu me considero travesti, mas, às vezes, estou andando na rua e um cara vira e fala “e aí, aonde nós vamos?”, achando que sou garota de programa. É difícil desassociar, está no viés inconsciente
Mas, claro, varia de pessoa para pessoa. Eu tenho uma amiga engenheira, super passável, que trabalha em uma empresa gigante, coordena mecânicos de três fábricas e todos a respeitam pra caramba. Então depende muito da situação. Tem de tudo, né?
De que forma sua trajetória pessoal se conecta com o papel da TransEmpregos? Você também enfrentou dificuldades para encontrar oportunidades profissionais?
Não, porque eu era menino, homem branco, de família boa, que estudou nas melhores escolas, fez curso… Então não tive problema nenhum. Pelo contrário: tive um monte de portas abertas, ninguém sabia que eu era trans. Nesse ponto, meu pai tinha razão.
Quando transicionei, já era empresária, advogada, então isso não afetou em nada minha vida profissional. Meu problema, hoje, é essa violência que existe o tempo todo, de saber que posso morrer só por estar em determinado lugar
Isso pesa na hora de fazer as coisas, de ir a uma reunião. Sempre tem que sair de casa pensando [no risco]. Mesmo hoje, com direitos garantidos, leis, vejo preconceito nos espaços públicos. Mas sinto a força da resistência, também.
Você é a primeira advogada trans do Brasil com nome social reconhecido pela OAB, além de uma das responsáveis por essa virada no país. Qual é o peso disso para você? E o que você pode contar sobre essa luta?
Já teve advogada trans antes de mim [Robeyoncé Lima], ela é de Pernambuco, mas usava o nome masculino para trabalhar, então fui a primeira trans com direito de usar o nome “Márcia Rocha” no documento federal da OAB. Um ano depois, o Supremo Tribunal Federal autorizou mudança de nome no documento sem a necessidade de entrar na Justiça.
É toda uma caminhada de conquista de direitos. Participei da luta pela união estável [de pessoas do mesmo sexo], pelo casamento, pela adoção por casais de gays e lésbicas e, mais recentemente, teve a luta pela doação de sangue e a criminalização da LGBTfobia, que foi igualada ao crime de racismo.
E o que você leva do direito para a TransEmpregos? Ou melhor, tem isso de “levar”? Ou o direito está em tudo o que você faz?
Tem sim, porque as empresas têm certas questões legais. Querem saber, por exemplo, como fica a questão do uso do banheiro, como fica o nome do funcionário no crachá, no email institucional.
Às vezes a pessoa quer ter “Márcia” no email, mas é “João” na carteira de trabalho, aí o Jurídico me procura para tirar dúvidas
Tem também questões envolvendo saúde. A pessoa pode ter aparência de homem, nome masculino em todos os documentos, mas não tirou o útero e o ovário — e engravida, ou tem cistos… Aí, chega no hospital, na emergência, e como fica? Eu, como advogada, ajudo nessas questões, vamos solucionando.
A chegada do governo Bolsonaro impactou de alguma forma mais clara a atividade da TransEmpregos e a empregabilidade da comunidade trans?
Olha, na verdade o que mudou foi que muita gente que conheço foi embora do país, por medo. Não achei que mudou tanta coisa, não. Era muito discurso, blá blá blá… Houve algumas complicações, mas nada tão impactante quanto eles [do governo] gostariam de ter feito; mas toda vez que tentam, a gente enfrenta na hora, não só no âmbito federal.
Recentemente, quiseram proibir empresas de fazer propaganda LGBT em São Paulo. Imediatamente juntamos centenas de empresas, fizemos abaixo-assinado e mandamos para a Assembleia, houve um movimento social. Hoje não tem mais cabimento um projeto desses, que tenta fazer regredir.
E a Covid-19? De que maneira impactou o projeto e a comunidade trans, pensando sobretudo em trabalho e emprego? E a sua vida pessoal?
Por causa da pandemia, muitas pessoas trans, que estavam superfelizes, trabalhando em grandes restaurantes, lugares famosos, foram mandadas embora… Tinha garçom, cozinheiro. Vamos ver como fica agora, com as coisas voltando.
No meu caso, eu já trabalhava em casa. Em termos de palestras e eventos, até melhorou, porque tinha que perder um dia, pegar avião, ir para outro estado, dormir em hotel. Agora, consigo fazer evento para diferentes estados, online.
Já na advocacia tem algumas mudanças, porque tem processos que ficam parados; e, com as minhas empresas que são imobiliárias, uma eu tive que fechar porque, na pandemia, passou a dar muito prejuízo.
Dá para traçar um perfil médio das pessoas que compõem a base de currículos da TransEmpregos? Pensando em idade, regiões, formação?
No final de 2014 tínhamos uns 300 currículos, hoje são 24,4 mil inscrições. A gente não precisa mais do currículo, em si. Desses mais de 24 mil inscritos para as vagas, que são do Brasil inteiro, mais da metade são homens; 40% [do total] têm curso superior, 30% têm o segundo grau completo ou curso técnico e outros 30% não têm o segundo grau. Desde 2016, esses percentuais não mudam, mesmo com cada vez mais inscritos.
Queremos fazer uma enquete, juntando associações de travestis do país inteiro, para ter uma ideia mais geral [de quantas pessoas trans buscam recolocação]. Porque para se cadastrar na TransEmpregos ela precisa ter um celular ou computador — isso já elimina uma parte da população sem acesso
Então, fazendo esse mapeamento junto com ONGs, teremos uma fotografia mais verdadeira da situação das pessoas trans no Brasil.
O banco de talentos da TransEmpregos tem currículos com mestrado e doutorado, inclusive. Mas você já comentou que às vezes questionam a veracidade desses títulos acadêmicos… Esse preconceito ainda persiste?
Escrevi o livro Vidas Trans: A Coragem de Existir com a Amara Moira, que tem doutorado em Literatura e é travesti [o livro tem coautoria de João W. Nery e T. Brant]. O João Nery era psicólogo, Letícia Lanz é psicanalista, a Maitê é diretora teatral, eu sou advogada, tem a Laerte… É que a questão da violência, de pessoas assassinadas, acaba repercutindo mais.
Eu faço palestras em universidades pelo Brasil inteiro. Quando comecei, não tinha trans em lugar nenhum; hoje, todas as faculdades aonde eu vou têm trans. Essas pessoas vão conseguir estágios, vão entrar em empresas e fazer carreira, coisa que não acontecia até 10 anos atrás
É uma mudança muito rápida em pouco tempo. Então, a gente imagina um futuro um pouco melhor mais adiante.
Pela sua percepção do mercado de trabalho, as empresas estão mais abertas às pessoas trans? A empregabilidade aumentou?
Todo dia tem empresa nova, né? Na TransEmpregos mesmo, começamos o ano [de 2021] com 670 e já estamos em 1 090 empresas. A mídia tem ajudado na divulgação, assim como as redes sociais. A gente bombou no LinkedIn, no Instagram, e ficou mais fácil de nos acharem.
Ainda assim, esperamos conseguir ajudar as pessoas trans na formação delas, já que 30% [das pessoas cadastradas] não têm o segundo grau, então temos esse problema para resolver. É um problema muito mais do estado do que nosso, mas precisamos pensar em como solucionar isso.
Você chega a ter contato (offline, inclusive) com alguma dessas pessoas que se cadastram na plataforma? Alguma história te marcou mais?
A gente não sabe quem são as pessoas, porque elas só vão lá e se cadastram. Mas tem uma que eu conheci menino, que foi contratado em uma multinacional já como uma mulher linda que eu acabei reconhecendo depois, e tomei um susto quando soube que tinha entrado na empresa pela TransEmpregos.
Tem uma menina negra, da periferia, que morava na favela e a família não apoiou. Ela conseguiu estágio numa multinacional, foi efetivada e está lá, fazendo plano de carreira. Outra, engenheira, estava numa empresa, veio outra que pagou um salário mais alto e levou a profissional [risos]
Também tem a história de uma diretora de multinacional que, quando contratou a primeira trans, ouviu de um grupo de religiosos da empresa que não poderiam trabalhar com aquela funcionária. A diretora respondeu: “Então pede a conta [demissão]”.
Já ouvi isso duas vezes, de lugares diferentes. Isso mostra comprometimento com a causa, é muito legal.
Quanto a você: que sonhos ainda te movem?
Olha… Eu, pessoalmente, só trabalho feito louca, não tenho tempo para mim. Meu sonho é poder parar um pouco, descansar, viajar. Já estou com quase 57 anos. Mas, por enquanto, ainda é pauleira.
Quais são os próximos passos da TransEmpregos? Há planos de monetizar a plataforma?
Monetizar, não. A TransEmpregos funciona bem assim até hoje. Tenho um projeto que gostaria de fazer na área da educação, na mesma linha da TransEmpregos, mas, com a pandemia, ficou engavetado. Seria para ajudar as pessoas a se prepararem para o futuro. Preciso juntar uma galera, como fiz antes, e começar a discutir, mas ainda vai demorar um pouquinho.
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