Pense numa casca de banana: ela protege a fruta por período determinado, que não é nem maior nem menor do que o necessário e, quando descartada, vira adubo para que uma próxima planta possa se desenvolver. E assim funciona com todas as outras “embalagens” da natureza.
Essa é a analogia que Stelvio Mazza faz para explicar o que motiva sua busca pela embalagem perfeita. Nesse caminho, há uma série de perguntas incômodas, que nos fazem refletir sobre nosso padrão de consumo. Uma delas é: por que ao consumir um sorvete em 20 minutos usamos um material que leva 400 anos para se decompor?
Para dar uma resposta disruptiva a esse desafio, entra em cena a startup Já Fui Mandioca, cuja proposta é dar novo significado às embalagens descartáveis. Com uma tecnologia inovadora, de fabricação limpa e impacto positivo, a empresa produz embalagens biodegradáveis e que se decompõem em até 90 dias –parte delas, em 20.
O segredo para isso, já diz o nome, está na mandioca, planta nativa da América do Sul, rica em amido e largamente empregada na alimentação brasileira. Mazza destaca ainda dois pontos ligados à sustentabilidade da produção: é um alimento que pode ser produzido por pequenos agricultores e em sistema de policultura.
Mas o segredo está na propriedade físico-química da fécula da mandioca. Depois de 20 anos de pesquisas e ainda em contínuo desenvolvimento, a empresa chegou à criação de modelos de copos, tigelas e embalagens para delivery de pratos. Alguns modelos contam inclusive com propriedades térmicas semelhantes ao isopor, podendo receber alimentos quentes, frios e até congelados.
A iniciativa já recebeu diversos prêmios pelo mundo e passou por aceleradoras como a Endeavor Scale Up Transforma e o programa Sustentabilidade 100+, da Ambev, além de fazer parte do programa internacional de economia circular CE100 Brasil, da Ellen MacArthur Foundation.
A seguir, alguns trechos da conversa de NetZero com Stelvio Mazza:
NETZERO: Globalmente, empresas discutem formas de reduzir a geração de resíduos no planeta. A Já Fui Mandioca parece estar um passo à frente, propondo o resíduo zero. Como você identificou nessa nova tecnologia uma oportunidade de negócio e como chegou a essa solução ambiental inédita?
STELVIO MAZZA: A gente acredita genuinamente que lixo é um erro de design. Se, ao conceber um produto, pensássemos no seu descarte, haveria muito menos resíduo do que temos hoje. As pessoas pensam em lançar o produto e acabou, não pensam no pós-vida dele.
Não paramos para pensar, mas tomando o cafezinho em 1 minuto em um copinho de isopor que vai levar 400 anos [para se decompor]. Ou tomamos um sorvete, que derrete em menos de 20 minutos, em um pote de isopor que vai durar para sempre. Não faz o menor sentido essa aplicação.
O plástico é um material muito bom, mas para outro uso. Por que usar um material indestrutível, tão resistente, para uma aplicação imediata, de uso único? O plástico tem e sempre vai ter, mesmo que a reciclagem evolua, problema para reciclar.
“Então, nós pensamos: tem que ter uma forma mais inteligente para esse tipo de uso, algo que não precisa durar. E nos inspiramos na embalagem mais perfeita da natureza: a casca da fruta, que embala o produto pelo tempo necessário, nem mais nem menos, e, quando descartada, ela vira insumo para uma nova planta, fazendo o ciclo da economia circular, o ciclo da natureza.”
A mandioca, pelo fato de ser um amido que nos dá essa propriedade físico-química, nos possibilitou esse desenvolvimento. As pesquisas começaram 20 anos atrás e agora estamos começando a escalar o produto comercialmente.
Somos uma empresa de tecnologia, não de embalagem, porque estamos desenvolvendo tudo, os processos, as máquinas, para chegar a uma solução que, acreditamos, faça mais sentido para a sua aplicação.
Além de estar focada em oferecer soluções ambientais para outras empresas, a Já Fui Mandioca também planejou sua estratégia ESG. A empresa aderiu aos ODS e se tornou uma “empresa B”, por exemplo, o que vemos as empresas de grande porte fazerem. Como a empresa trabalha esses princípios?
Essa é nossa missão de existir. Queremos acelerar o desenvolvimento de bioembalagens no mundo e temos isso tão forte que criamos uma embalagem de impacto positivo.
Tentamos agregar esses elementos que gerem benefícios: a produção de mandioca é feita via agricultura familiar e com policultura e usamos na produção do produto 480 vezes menos água que uma embalagem de papel e 100 vezes menos que uma de plástico.
Nossa produção não gera resíduos, é totalmente limpa, e ainda sequestra carbono na atmosfera, é vegana, e por aí vai. Todas as decisões são guiadas para ser melhor em termos de impacto. Estamos agora pensando em carros elétricos para fazer as entregas, por exemplo.
O Já Fui Mandioca produz embalagens que podem ser descartadas diretamente no lixo orgânico. Então por que criar um sistema de logística reversa? Que volume vocês esperam receber e qual a destinação desse pós-consumo?
Sim, elas podem ser descartadas no lixo orgânico. O problema é que o lixo orgânico não vai para onde deveria ir, que é a compostagem. Mais de 50% dos resíduos gerados no país são orgânicos, mas só 2% vão para o destino correto, o resto vai para aterro. É um problema estrutural do país.
Então, a gente faz a logística reversa como uma forma de resolver esse problema e levar nosso produto para a compostagem. Isso porque no aterro ele gera metano, que é muito pior que o CO2. Além disso, se ele vai para o aterro, deixa de gerar o subproduto, que é o fertilizante, o adubo, que pode até ser vendido depois. Não queremos desperdiçar matéria-prima.
É uma mandioca que vira embalagem, que vira terra, que vira mandioca, infinitamente. Não estamos falando em gerar menos lixo, estamos falando em não gerar lixo.
Mas o que acontece com uma embalagem feita a partir da mandioca quando descartada de forma incorreta? Para usar uma imagem que nos remete a extremos, ela pode ser uma fonte poluidora do oceano?
Quando ele vai para ambientes que não devem ir, como oceanos, ele também se biodegrada, ao contrário de outras bioembalagens.
Pouca gente sabe disso: achamos que ao depositar nossa comida como lixo orgânico, nas nossas casas, ele terá a destinação certa, mas vai tudo para o mesmo lugar, infelizmente.
A logística reversa é uma forma de completar esse ciclo e suprir uma deficiência no país que é a compostagem.
A Já Fui Mandioca lançou recentemente um novo tipo de embalagem, com capacidade térmica que pode substituir o isopor para os alimentos de consumo rápido. Como os clientes avaliaram essa novidade? Em que outras inovações a empresa está trabalhando?
As embalagens de sorvete já são nosso carro-chefe e hoje estão com uma demanda muito boa. E isso acontece porque ela questiona essa premissa na veia e exige uma mudança de paradigma muito expressiva inclusive por parte dos consumidores. É uma mudança de hábito necessária.
A gente está trabalhado agora num mandala-bow para uma saladeiria de São Paulo que vai se dissolver com a água da chuva, no quintal de casa. É a mesma lógica dos outros produtos, porque a embalagem de uma salada de delivery também não precisa durar mais do que o tempo em que o produto vai ser consumido.
Qual é o principal desafio da empresa hoje ao trabalhar inovação e sustentabilidade?
Uma coisa é fazer um protótipo e outra é produzir esse produto em larga escala. Estamos tentando criar algo que ninguém nunca fez. Quando se cria um carro, existem protótipos, especialistas, maquinário. Para bioembalagem de mandioca não tem. Estamos inventando um novo processo para o futuro.
“Eu comparo esse momento ao plástico em 1920: todo mundo sabia que era muito legal, mas ainda levou anos para escalar. Nosso maior desafio, então, é ter que criar desde o produto até o processo industrial, porque não tem quem faça isso com o amido. Brincamos aqui que não fazemos P&D, fazem T&E, tentativa e erro, porque não temos em que nos basear. Esse é o maior desafio.”
Claro, tem o desafio do mercado, de fazer os clientes entenderem a diferença entre os biodegradáveis. É um mercado prostituído. As pessoas estão usando o termo ecológico para o que de ecológico muitas vezes não tem nada. Como a gente se diferencia diante do consumidor final, se na cabeça dele é tudo igual? Então tem esse ponto, de educar o mercado, para que ele entenda a diferença entre as soluções. Eu diria que esse é um segundo desafio.
Quem são os principais clientes da Já Fui Mandioca e quais são as perspectivas para a ampliação do negócio?
A gente fornece desde produtos para escritório para grandes empresas, como Google, Uber, Gerdau, até embalagens para restaurantes veganos e sorveterias, como Da Matta Salada e La Botteghe di Leonardo. Temos clientes no Brasil inteiro.
Mas é um cliente de nicho, que está preocupado com propósito, preocupado em agregar valor com o propósito. Ele procura na gente uma causa, um conceito, para agregar valor à marca dele e reter clientes, além de agregar sustentabilidade aos pilares da empresa.
Hoje temos cerca de 30 funcionários e voltamos a crescer depois de sentir um baque na pandemia, porque fornecíamos para muitos escritórios que deixaram de funcionar. Mas 2022 vai ser um bom ano para gente.
O bagaço de malte e a borra do café são mais valiosos do que você imagina. A cientista de alimentos Natasha Pádua fundou com o marido a Upcycling Solutions, consultoria dedicada a descobrir como transformar resíduos em novos produtos.
O descarte incorreto de redes de pesca ameaça a vida marinha. Cofundada pela oceanógrafa Beatriz Mattiuzzo, a Marulho mobiliza redeiras e costureiras caiçaras para converter esse resíduo de nylon em sacolas, fruteiras e outros produtos.
Aos 16, Fernanda Stefani ficou impactada por uma reportagem sobre biopirataria. Hoje, ela lidera a 100% Amazonia, que transforma ativos produzidos por comunidades tradicionais em matéria-prima para as indústrias alimentícia e de cosméticos.