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Imagine: e se fosse possível prever uma crise de epilepsia com meia hora de antecedência? Esse é um dos objetivos da Epistemic

Dani Rosolen - 1 jun 2022
Paula Gomez, fundadora da Epistemic.
Dani Rosolen - 1 jun 2022
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Você saberia como agir se uma pessoa, ao seu lado, de repente, começasse a ter uma crise de epilepsia?

A falta de conhecimento sobre quais procedimentos tomar tem a ver com o estigma sobre a doença. A epilepsia foi associada por séculos a forças sobrenaturais, possessão e loucura devido às convulsões que causa. Antes de Cristo, Hipócrates já havia afirmado que a doença não tinha origem divina ou demoníaca, mas era causada por alguma disfunção do cérebro.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a epilepsia afeta cerca de 65 milhões de pessoas no planeta. E, ainda assim, permanece cercada de tabus. O diagnóstico é difícil, depende muito dos relatos dos pacientes — e mesmo quando realizado, cerca de 30% não respondem às medicações.

Para ajudar os pacientes, em especial os que não reagem aos remédios, a Epistemic desenvolveu ferramentas que auxiliam no gerenciamento da doença e melhoram a qualidade de vida dos epiléticos e seus familiares.

Incubada na USP, a empresa foi fundada em 2015 pela engenheira Paula Gomez, 49, e oferece três soluções. A primeira é o Epistemic App, um diário digital em que os pacientes podem registrar suas crises, atividades diárias e possíveis gatilhos. Testado por pacientes e neurologistas do Ambulatório de Epilepsia do Hospital da Unicamp, o aplicativo conta com 1700 usuários e já teve 10 mil downloads.

A segunda solução é o Epistemic Web, plataforma na qual o médico pode acessar informações autorizadas do diário do paciente – tudo na forma de gráficos, o que facilita a correlação das informações. E a terceira, em fase de testes clínicos no Hospital da Unicamp, é um wearable (vestível) batizado de Aurora, que ajuda a prever ataques epilépticos, alertando tanto o paciente quanto o cuidador até 30 minutos antes de uma crise.

A startup ainda não monetiza, mas já coleciona prêmios. A lista inclui Desafio Pfizer Inovação (2015), Empreender Saúde: Sírio Libanês e Fundação Everis (2015), Shark Tank – Epilepsy Foundation of America (2017), Cartier Women’s Initiative Awards (2018) e o Startups Criativas da Samsung (2019). Mais recentemente, neste ano de 2022, a Epistemic foi semifinalista do Mafre Inovação Social.

A seguir, a fundadora da Epistemic fala sobre o desenvolvimento das soluções, a luta contra os estigmas relacionados à doença e o desafio de se empreender com ciência no Brasil.

 

Você é engenheira. Como se envolveu com o mundo dos negócios, em especial o empreendedorismo científico?
Sim, sou formada em Engenharia Elétrica e cheguei a fazer mestrado e doutorado na área. Me envolvi com o empreendedorismo em 2000, quando fundei um negócio de cursos na área técnica para grandes empresas de telecomunicação. Logo na sequência, fui fazer um MBA em Administração na INSEAD, na França.

Quando voltei, passei por empresas como a consultoria estratégica Value Partners, a Natura, a boutique de M&A Principal Partners Capital Group e até por uma startup, a EBER, de energia renovável. Depois, fiquei um tempo pensando no que iria fazer.

Sabia que queria empreender, mas ainda estava avaliando as possibilidades. Até que em uma conversa com a minha mãe [a física Hilda Cerdeira, que trabalha com Teoria de Caos], ela comentou que estava pesquisando sinais de eletroencefalograma (EEG), que têm comportamento caótico.

Após pesquisar o assunto por cinco anos, ela criou uma metodologia que, por meio dos sinais do eletroencefalograma, identifica uma crise de epilepsia antes de acontecer. Eu fiquei super empolgada com a descoberta e achei que a gente deveria transformar isso em uma empresa

Minha mãe não era muito ligada a esse mundo dos negócios, por ter uma veia mais acadêmica, mas topou. Fomos, então, buscar alguém para desenvolver o software e o hardware. Fizemos várias tentativas para achar alguém até que conhecemos os engenheiros Conrado e Giuliano Leite de Vitor, que hoje são nossos sócios.

Quais foram os primeiros passos para transformar o estudo da sua mãe em algo palpável, um produto?
A primeira coisa que gente queria fazer era transformar a metodologia matemática da minha mãe em um software.

Mas primeiro, criamos um aplicativo que funciona como um diário de epilepsia. Participando de congressos médicos, tanto de neurologia como de epilepsia, notamos a necessidade de um diário eletrônico, porque até então os pacientes registravam tudo em papel, mas isso não é prático, já que nem sempre as pessoas estão com um caderno em mãos e acabam esquecendo rapidamente o que aconteceu. Além disso, em um diário de papel não é possível fazer gráficos para entender o que está acontecendo.

Antes do lançamento, no final do ano passado, o aplicativo passou por testes no hospital da Unicamp, com 40 pacientes e dois médicos, os doutores Fernando Sende e Clarissa Yasuda, que nos ajudaram a identificar que tipo de informações precisaríamos coletar e a questão da usabilidade.

E o que o paciente encontra neste diário virtual?
Há duas opções: fazer um registro ou adicionar um medicamento.

Quando o paciente adiciona um registro, ele coloca a data, diz se teve crise ou não e responde algumas perguntas relacionadas ao seu dia a dia, como humor, atividade física, sono, alimentação, funcionamento do intestino, ingestão de medicamentos, entre outros tópicos, que são possíveis gatilhos

Se teve uma crise, o usuário também pode registrar informações sobre os sintomas, intensidade, quanto tempo demorou etc.

O aplicativo da Epistemic funciona como um diário virtual para gerenciar a epilepsia.

Recomendamos inserir os dados no aplicativo diariamente, mesmo que o paciente não tenha tido uma crise, pois as informações de rotina também são muito importantes na definição do tratamento. Caso a pessoa não deseje responder todas as informações do nosso questionário no momento, ela pode apenas deixar anotado no aplicativo que teve uma crise e editar o registro depois com mais detalhes.

No app, o usuário pode ainda definir alertas para lembrar de tomar os remédios e fazer os registros. Além disso, tem acesso às melhores práticas da administração da epilepsia no dia a dia e informações sobre nutrição levando em conta a influência do tipo de dieta no quadro do paciente.

Atualmente, os usuários conseguem baixar o Epistemic App gratuitamente e são cobrados apenas para parear o aplicativo com o smartwatch, função que ajuda a coletar automaticamente para o diário dados do sono e das atividades físicas.

Estamos mudando o plano de negócios e talvez isso fique na parte gratuita também. A ideia é passar a oferecer um plano de R$ 5,99 mensais para que a pessoa acesse o histórico dos registros de anos atrás. Teremos também outro de R$ 9,90 para o usuário acessar o histórico e mandar, quantas vezes quiser, os relatórios para seu médico. Hoje, se a pessoa quiser fazer isso, ela paga R$ 29,70.

Como a plataforma funciona para os médicos?
Do lado do médico, ele tem acesso aos dados do paciente na plataforma web, se tiver a autorização do usuário, o que ajuda muito a entender o quadro e melhorar o tratamento, pois com a visualização das informações em gráficos é possível correlacionar padrões que levam a uma convulsão, por exemplo.

O importante desta plataforma para o médico é ter acesso a dados mais precisos. Imagina que eu tenha enxaqueca e vou de seis em seis meses ao neurologista. Aí ele me pergunta quantas crises eu tive… Sei lá eu!

A gente tem uma ideia muito errada de como as coisas aconteceram e uma memória muito curta para fatos desagradáveis. Isso acaba atrapalhando o trabalho dos médicos, que usam o relato dos pacientes para entender o a evolução das doenças

Estamos no processo de divulgar a plataforma para médicos e associações, que contratariam a Epistemic e ofereceriam o aplicativo como um diferencial para os seus pacientes, com um desconto na contratação por trazer volume para a nossa base. Mas, hoje, o médico tem acesso gratuito à plataforma web caso seus pacientes já assinem o aplicativo.

E sobre o Aurora, como funciona o wearable na prática?
Já temos o dispositivo pronto, que se conecta com o aplicativo por bluetooth.

O Aurora, vestível inteligente da startup, consegue prever crises de epilepsia antes que elas ocorram.

É como se fosse uma tiara, com um aparelho de eletroencefalograma em miniatura que tem seis eletrodos. Eles encostam na cabeça, igualzinho como o aparelho do hospital, mas não precisam de uma pasta condutora, que geralmente deixa o cabelo melecado.

Os dados não são enviados para o médico ou para o paciente, pois trata-se de um volume de informações muito grande, que não seria possível passar por celular, pois acabaria com os dados e bateria de um smartphone em poucos minutos.

Então, o Aurora só capta os sinais do eletroencefalograma, o software de previsão vai lendo esses dados o tempo todo e, quando detecta uma anomalia, emite uma notificação para o paciente e o cuidador com até 30 minutos de antecedência de uma crise.

E agora que o dispositivo está pronto, quais os próximos passos?
Já realizamos testes em laboratório com bases colhidas anteriormente, mas não com pacientes, e a leitura do EEG do Aurora já provou que está com menos ruído do que os aparelhos dos hospitais.

Há poucas semanas, começamos os testes no Hospital das Clínicas da Unicamp, que tinham sido adiados por causa da pandemia. Agora, queremos ver como será o funcionamento com os pacientes, mas sem indicar ainda a previsão da crise.

Os médicos vão comparar o que o aparelho deles mostra com o que o Aurora identifica, para ver se bate. Posteriormente, vão identificar, com os dados do eletroencefalograma, quando teve crise e ver se nosso dispositivo está marcando também a anomalia naquele momento

A princípio, os primeiros testes serão com 15 pessoas. E depois de validado, com mais umas 50, mas aí entra o custo do dispositivo, que não é um só, mas um por pessoa. Hoje, calculamos que o Aurora custaria 4 mil reais.

Quais os desafios de trabalhar com esse tipo de tecnologia, ainda pouco acessível — e com poucos incentivos — no Brasil?
Ainda vemos poucas empresa trabalhando com o desenvolvimento de hardware no país. É algo mais complexo e demorado se compararmos com o trabalho de outras startups que fazem só software — isso é muito mais rápido.

Há desinteresse dos investidores de aportarem neste tipo de tecnologia, pois eles preferem produtos que cheguem mais rápido ao mercado. Várias aceleradoras também já quiseram falar conosco, mas no momento em que a gente fala que o Aurora não vai entrar no mercado nos próximos dois anos, não há mais interesse…

E eu entendo, porque eles têm outro foco, que é acelerar algo em três meses e colocar logo no mercado. Felizmente, a Epistemic está incubada na Cietec e quase todas as empresas de lá são de base científica. Então, estamos em um ambiente em que um entende o outro.

A gente ainda teve sorte de poder contar com o apoio de um órgão forte de fomento do Estado de São Paulo, a FAPESP, por meio da qual conseguimos três auxílios. Ganhamos também um outro edital da FAPESP com o Sebrae e alguns prêmios em dinheiro, entre eles o prêmio FINEP Mulheres. Todos esses incentivos totalizaram quase 2 milhões de reais.

Apesar de todo o conhecimento difundido sobre o tema, a epilepsia ainda é um tabu. Como a Epistemic quer mudar esse cenário?
A informação ajuda a diminuir o tabu. Por isso, nas nossas redes sociais, a gente divulga dados, pesquisas e notícias sobre o assunto.

Hoje, tem gente [que sofre de epilepsia] que não estuda ou trabalha por causa do preconceito, e precisa de um cuidador o tempo todo — ou seja, são duas pessoas fora do mercado. Além disso, tem paciente que deixa de lado as atividades físicas por medo de se machucar, por exemplo.

Eu acredito que o Aurora vai ajudar muito nestes casos, porque se a pessoa souber que dentro de alguns minutos vai ter uma crise, ela consegue ir para um lugar seguro e isolado, pedir ajuda ou, dependendo do caso, tomar um remédio para evitar que a convulsão aconteça

Tudo isso dará ao paciente mais autonomia e independência em relação a seus cuidadores.

Quais os próximos passos da Epistemic?
Além dos testes do Aurora, nosso plano para 2022 e 2023 é adicionar Inteligência Artificial no aplicativo. A ideia é coletar os dados dos usuário para gerar informações relevantes tanto para o paciente quanto para o médico, e dicas úteis.

Por exemplo: recomendar que [o paciente] coma menos carboidrato naquele dia porque o machine learning detectou que geralmente a pessoa se sente melhor quando segue sua dieta cetogênica. Ou priorizar o sono, porque a IA mostrou que quando dorme mal tem mais chances de ter uma crise.

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