Sou uma mulher negra e, como muitos brasileiros, tenho minha ascendência marcada pela miscigenação e a história construída através de atravessamentos de barreiras sistêmicas e episódios de violência.
Minha criação foi na periferia da Zona Sul de São Paulo, no distrito de Jardim São Francisco, no bairro Guarapiranga, onde, apesar do ambiente violento, tive bons professores no ensino fundamental – educadores que transformaram minha vida, me apresentando novas possibilidades.
A história das mulheres, sobretudo as periféricas, é cheia de desafios — algo estrutural que nos foi predestinado. Dentro deste contexto, minha jornada no ativismo social começou em casa
Filha da Dona Nenê (empregada doméstica) e do Seu Lima (motorista), desde muito cedo eu e meus irmãos fomos ensinados sobre consciência de classe.
Entre os aprendizados que tivemos com nossos pais: “não mexam nas coisas de ninguém”, “não se guiem pela cabeças dos outros”, “se estiverem junto de alguém e perceberem que essa pessoa está fazendo algo errado, saiam de perto, pois, se a polícia pegar vocês junto dela não perguntará quem é inocente”, “as oportunidades para a gente são diferentes, por isso estudem muito”, entre outras lições.
A música também teve forte influência na construção da minha identidade, principalmente o hip hop brasileiro, gênero que nasceu nas periferias. Foi com as obras dos Racionais MC’s que passei a entender tudo aquilo que me cercava.
Aos 14 anos, fui convidada pela Dona Rosa, uma grande liderança feminina do bairro, a realizar ações com mulheres em situação de rua e não parei mais.
Foram inúmeros trabalhos voluntários assistencialistas até meus 34 anos. Com mulheres em situação de rua, nós doávamos itens de higiene íntima e também acolhimento, através de conversas.
No período de inverno, fazíamos entregas de cobertores e comida e, aos domingos, encontrávamos com os moradores em situação de rua em um vestiário cedido por uma igreja, para que pudessem tomar banho e receber uma muda de roupa
Com crianças e adolescentes, realizávamos uma programação anual de celebrações em datas comemorativas, além de visitas semanais a abrigos de adolescentes, promovendo rodas de conversas e festas.
Em paralelo aos movimentos sociais, também me dediquei aos estudos.
Meu objetivo era cursar Pedagogia ou Ciências Sociais em uma universidade pública, o que não aconteceu…
Acabei ingressando, com bolsa, no curso de Ciências Contábeis. Pelo programa de bolsa, eu poderia escolher entre Administração e Ciências Contábeis.
Na inscrição, fiz “uni, duni, tê” e saiu Ciências Contábeis. Fiz o curso na força do ódio, pois não queria estar ali, e sim pensando em metodologias e aplicações de projetos para políticas públicas que contribuíssem com o desenvolvimento de crianças e adolescentes residentes de periferias
Acabei cumprindo o checklist dado pelos meus pais: “Estude para ser alguém na vida e para não passar pelo que nós passamos”.
E, no fim, o estudo sobre a ciência das contas acabou me abrindo muitas portas. Dediquei 12 anos da minha carreira profissional a esse mercado.
Desse período no mundo corporativo, gostaria de compartilhar o quão árduo foi ser gerida por homens no setor de finanças, área em que hábitos e comportamentos vêm de uma estrutura patriarcal de poder e os resultados são baseados na “meritocracia”.
Já tive que ouvir comentários sobre meu corpo gordo, meu cabelo, meu CEP… Era tachada de “sindicalista”, achavam que eu não deveria estar ali. Tudo isso me desestimulou a trabalhar para grandes empresas
Entrei em crise por ter me dedicado anos a uma profissão em que eu não era reconhecida. Por outro lado, essa frustração me fez refletir o quão necessário é repensarmos as lideranças dentro das organizações privadas e públicas — e incentivar a formação de uma liderança feita por mulheres negras.
Na linha do tempo, conquistas históricas de direitos humanos foram alcançadas por mulheres e para mulheres, entre elas o direito ao voto, à licença maternidade, ao trabalho remunerado, à inserção na política.
Não posso deixar de citar que para nós, negras, tais conquistas chegam muito tempo depois…
Cheguei a pensar em desistir e recomeçar. Alguns anos depois, entendi que este conhecimento da área financeira tinha mais sentido do que eu imaginava para a realização do meu projeto pessoal.
Foi o momento de ressignificar minha carreira. Assim, aos 30 anos, me tornei empreendedora
Melhor dizendo, meu primeiro empreendimento foi aos 10 anos, quando identifiquei uma “dor” entre os meninos da minha rua. Eles passavam raiva quando a rabiola da pipa era cortada, então comecei a confeccionar esse “acessório” e vendê-lo por centavos no portão de casa.
Mal sabia eu dos grandes desafios que estavam por vir na vida de empreendedora quando adulta!
O primeiro deles foi criar um negócio social que funcionasse através da economia solidária e da economia criativa e que pudesse ajudar outros empreendedores sociais de diversas áreas de atuação através da gestão de recursos.
O segundo foi iniciar esse negócio sem dinheiro. Eu tinha zero real, porém muita força de vontade e coragem.
O terceiro e maior desafio foi entender e aceitar que sim, eu poderia estar neste lugar de mulher de negócios, mesmo que tudo à minha volta me dissesse que não
Eu escutava que não passava de uma grande sonhadora… Mas meu propósito era maior, sempre foi maior.
Comecei a pensar em como juntar minha formação e o que já havia feito no mercado de trabalho com projetos sociais, algo que sempre fez meus olhos brilharem.
O Sebrae aponta que 49% dos negócios fecham as portas por má gestão financeira. Dentro do universo do empreendedorismo social, não se trata apenas da falta de gestão, mas da escassez de recursos.
Como reverter essa situação, principalmente para nós, empreendedores sociais periféricos? Mesmo sabendo que existe apoio financeiro para projetos sociais, por que é tão difícil que esses recursos cheguem em nossas mãos?
Para quê tanta burocracia nas propostas de editais de apoio financeiro, se é a base que traz o insumo para resolver as dores da desigualdade?
A partir dessas reflexões, nasceu a Burocras, uma consultoria que facilita a gestão financeira para causas de impacto, sejam elas pequenas, médias, sociais, culturais ou ambientais.
Acreditamos, sobretudo, na construção compartilhada de outras relações para além da dimensão econômica, na formação de parcerias!
Nestes cinco anos de operação, pude conhecer e apoiar pessoas e iniciativas incríveis, como o Projeto Cooperação, que busca compartilhar soluções cooperativas para um mundo em transformação.
Entrei em contato com o Instituto Taturana, que abre portas para a democratização do acesso ao cinema; e com a Casa Chama, que desenvolve projetos e ações para garantir a emancipação, a valorização e qualidade de vida à população trans.
Aprendi muito também com a Bergamía, que promove uma beleza natural e consciente, criando cosméticos sustentáveis; com o Entrelinhas, que usa da facilitação gráfica como ferramenta sociopolítica; e com a Agência Plana, que realiza vivências em comunidades quilombolas.
Atuei em mais de 70 projetos voltados para a Agenda 2030 da ONU. Qualifiquei, através de formações, mais de 400 empreendedores periféricos nos estados de São Paulo, Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro
É uma realização perceber que transformei todo sofrimento no mundo corporativo em algo que faz sentido e contribui para o desenvolvimento de outras pessoas e organizações sociais.
Em fomento ao empreendedorismo na pandemia, realizamos oito apresentações em forma de palestra e lives.
Também participamos de programas de formação e desenvolvimento ao empreendedorismo em território nacional, promovendo conteúdo de precificação, organização, planejamento financeiros e formas de lidar com a burocracia. Essas ações foram realizadas em conjunto com outras organizações e coletivos, como o Blogueiras Negras, Das Pretas, Diverssa, Cieds, Firminas e Rede Nós por Nós.
Além disso, a Burocras foi responsável pela primeira edição de um projeto institucional voltado a mulheres negras, o “Valor e Preço: Quanto vale ou é de graça?”.
O workshop de precificação consistia em estudos decoloniais sobre o histórico do trabalho feminino desde o Brasil colônia até o século XXI e mostrava a permanência da desigualdade salarial em razão de gênero e raça no país.
O objetivo do curso era resgatar o período de ascensão da mulher no mercado de trabalho e aliar esse conteúdo à técnica de cálculo de precificação, para que as participantes pudessem entender melhor o valor de seus serviços e aprender o básico de organização financeira.
O meu trabalho é baseado na responsabilidade social e nos direitos humanos. Isso quer dizer estar conectada com outras organizações sociais que atuam com práticas de consciência política e social para transformar esse mundo.
E por que não dizer que somos organizações que, juntas, propõem, através das nossas habilidades e competências, ações de reparação histórica?
O meu propósito com a Burocras é que a transformação chegue através de impacto, que não é só positivo, mas real, gerido de ponta a ponta.
Em palavras parece bonito, mas na realidade não é nada fácil. É preciso estar atento e forte — e sempre se atualizando.
Para quem segue ou busca seguir a mesma jornada, minha dica é: concentre-se no que você deseja manifestar para o mundo.
Há quem nos faça perder o ânimo. A visão é não desistir e seguir em frente, sabendo que há caminhos possíveis sim, mesmo que não sejam simples.
Gisele Rocha é fundadora e CEO da Burocras. Sua proposta é facilitar o tempo de empreendedores que dedicam seus negócios à responsabilidade social. Pesquisa desenvolvimento humano e política com um olhar decolonial para o afroempreendedorismo e para a tecnologia social, seguindo a linha da mão de obra da mulher negra no período colonial até os dias atuais. É criadora do curso “Valor e Preço: Quanto vale ou é de graça?”.
Filha de missionários, a colombiana Lina Maria Useche Kempf veio viver em Curitiba aos 12 anos. Ela conta como cofundou a Aliança Empreendedora para impulsionar a prosperidade por meio do estímulo a microempreendedores de baixa renda.
Lettycia Vidal empreendeu a Gestar para combater a violência obstétrica, mas esbarrou na escassez de investimentos em negócios fundados por mulheres. Ela conta o que aprendeu nessa jornada — e fala sobre sua nova etapa profissional.
Grávida no começo da pandemia, Thais Lopes resolveu ajudar a construir um país melhor para a sua filha. Deixou a carreira corporativa e fundou a Mães Negras do Brasil, negócio de impacto com foco no desenvolvimento desse grupo de mulheres.