Largar a vida corporativa e se reinventar em uma nova profissão, correndo atrás dos seus sonhos, já exige um tanto de coragem…
Agora, imagine realizar essa guinada ao mesmo tempo em que você deixa para trás sua identidade masculina e se assume como uma mulher trans.
Duda Henriques, 53, empreendeu essa dupla reviravolta. Com graduação em engenharia, ela passou quase três décadas batendo ponto na mesma empresa. Estava iniciando sua transição de gênero quando deixou a companhia. E, sem conseguir voltar ao mercado de trabalho, se uniu a sua filha, Helena, e transformou um hobby em negócio.
Em 2020, as duas fundaram a Mina. O portfólio hoje se divide em três frentes: joias produzidas por Duda; caleidoscópios (uma paixão antiga dela, que aprendeu a construí-los manualmente nos EUA); e estampas que decoram produtos diversos, com padronagens que derivam dos desenhos lisérgicos formados pelos caleidoscópios.
“Construímos o caleidoscópio, fotografamos a imagem que ele forma e aí eu mexo um pouquinho num aplicativo de design gráfico”, explica Helena, 23. “A partir disso a gente aplica não só no tecido, mas em qualquer coisa: já fizemos caderno, acrílico, metal estampado…”
Essa frente envolve parcerias B2B, como uma collab recente com a Linus, marca de sandálias de plástico veganas (que já foi pauta aqui no Draft). “Nesse caso a gente desenhou a mandala à mão para depois transferir para as peças”, diz Helena.
Além do talento, Duda e Helena puderam contar com dois fatores decisivos para colocar a Mina de pé: as economias que Duda juntou durante a vida corporativa, e o carinho e a aceitação de toda a família (inclusive a ex-mulher de Duda, que só se refere a ela no feminino).
Ainda neste ano a Mina deverá inaugurar seu primeiro espaço físico, um misto de loja e ateliê em Pinheiros, na Zona Oeste de São Paulo. A seguir, Duda e Helena falam sobre os desafios e delicadezas dessa jornada – e como a transição de gênero aproximou as duas ainda mais.
Como e quando surgiu a Mina? Qual era o contexto?
HELENA: A história da Mina surgiu de uma forma muito orgânica e conciliada ao nosso momento de vida pessoal e familiar.
No finzinho de 2018, a Duda comunicou pra família sobre o início da transição de gênero dela: então, toda a questão de suplementação hormonal, de alguns procedimentos estéticos, como depilação…
Em paralelo ela se desligou do último emprego dela, no qual ela já estava há muito tempo, e passou a focar em alguns hobbies: começou nos caleidoscópios, aprendeu a construir essas peças.
Aí em 2019 eu fui fazer intercâmbio na Califórnia. Não estava na minha cabeça empreender, mas coincidentemente fui para o empreendedorismo. E ela foi estudar caleidoscópios nos EUA também, aprender sobre as etapas de construção — a Duda é engenheira de formação, então ela tem essa parte processual muito forte.
Quando voltei, em 2020, ela tinha alguns produtos [prontos] e a possibilidade de participar de um evento – mas não tinha uma marca. A gente não sabia como ela ia comunicar esse produto…
Sempre achei que era muito importante que ela aliasse essa questão [da transição de gênero] ao produto, para a gente ter um storytelling, uma mensagem mais aprofundada
Foi aí que entrei com esse meu lado desse curso de empreendedorismo – e também fiz Publicidade –, e decidi criar uma marca. Comecei fazendo só posts para o Instagram; o nome Mina surgiu automaticamente na primeira conversa que a gente teve.
Começamos de um jeito bem leve. E do nada a gente foi engolida pela Mina. Parece que tudo fez muito sentido, eram produtos que a gente sempre gostou muito, e eu sempre quis trabalhar com esse tipo de marca com um apelo visual… Ao mesmo tempo, [a marca] falava muito sobre a nossa família.
Tudo conspirou para que ficássemos 100% imersas na Mina. E foi assim que aconteceu, de um jeito muito despretensioso. Do nada, virou o que a gente faz 24 horas por dia.
Duda, sobre a sua transição de gênero: quando foi que começou a se entender pela primeira vez como mulher?
DUDA: Vivi dentro de conflitos desde a minha infância, passando pela adolescência e fase adulta… E esses conflitos estavam ali e ao mesmo tempo eu não entendia o que eu era, por que eles aconteciam.
Aquilo incomodava demais, atrapalhava o meu dia a dia. Era bastante angustiante sentir algo que pra mim era difícil de compreender.
Procurei ajuda de um psiquiatra em 2018 e comecei a entender alguns conceitos, a refletir o que sempre aconteceu comigo, comecei a ter contato com experiências de outras pessoas.
Isso foi me ajudando a me entender e a compreender o conceito de transgênero, que era algo bastante distante de mim. Foi a partir daí que comecei a entender o quanto tudo aquilo fazia sentido
Não foi assim tão “de imediato”. Através desse tratamento, dessa reflexão, foi se estabelecendo comigo esse autoconhecimento. E cheguei à conclusão dessa minha autopercepção e de como eu gostaria de ser percebida pela sociedade, como uma mulher.
Helena, como foi a sua reação na primeira vez que vocês falaram sobre a transição de gênero da Duda?
HELENA: Ela estava anunciando há alguns dias que tinha que conversar comigo. E aí eu já estava nervosa. Perguntei se era bom ou ruim, ela falou: “ah, depende da sua reação…”.
Teve um domingo em que a gente sentou no tapete do meu quarto e ela começou a explicar sobre disforia de gênero, que era um conceito que eu não conhecia… Começou a me explicar sobre o que ela sentia, as mudanças que ela gostaria de fazer devido ao fato de ela não se reconhecer naquele formato…
A nossa conversa foi muito carinhosa e muito voltada para as preocupações que ela tinha em relação à nossa relação a partir daquele momento. Desde o primeiro momento, pra mim nunca foi um problema ela estar passando por isso, nem uma dor
Desde o primeiro dia, falei que eu ia estar com ela pra tudo que fosse necessário, várias coisas legais que eu estava animada pra viver com ela… Ela falou sobre as roupas que gostaria de usar, e que eu sempre amei… E aí falei nossa, vamos fazer compras juntas…
O único sentimento negativo que senti foi medo de ela ser agredida, porque todas as informações acerca dessa causa são muito “engatilháveis”, um monte de coisa horrível acontecendo; [quase] nunca se vê uma história positiva, é sempre alguém que foi expulsa, estuprada, assassinada…
Desde muito pequenininha eu me sinto responsável pelas pessoas da minha família, por conta do Rafa – ele é meu irmão mais novo, tem Síndrome de Down, então já me sentia responsável por ele. A partir do momento que a Duda se colocou como uma mulher trans pra mim, passei a me sentir muito responsável por ela também.
Então, esse medo foi muito forte e me blindei de qualquer tipo de informação. A gente vive num país em que infelizmente esse é o contexto. Teve esse lado mais sombrio que me deixou triste, e a forma como lidei com isso foi ficar introspectiva, quieta… mas também teve esse outro lado, esse redescobrimento, essa libertação acompanhada de algumas coisas muito legais. E foi muito prazeroso viver junto com ela.
A partir do momento em que ela se tornou, aos meus olhos, uma mulher trans, consegui me aprofundar mais nesses temas, que antes eram importantes mas não faziam parte da minha vida. Não eram tão tangíveis. E a nossa relação se estreitou muito, também
Antes dessa conversa ela era pra mim o meu “oposto”, um homem cis, hétero. Eu sempre fui muito feminista, então de certa forma isso era a imagem daquilo que me ameaça, e ameaça a minha causa de uma forma muito forte.
A partir do momento em que ela se torna uma mulher trans, ela meio que entra pro “meu time”. Hoje temos conversas que a gente não teria se fosse diferente.
Mudou completamente sua relação com ela…
HELENA: Completamente. Antes a gente era muito pai e filha, e agora a gente é pai, amiga e filha [risos]. Então foi muito legal pra gente.
Duda, além da transição de gênero você deu uma guinada profissional, migrando da engenharia para a produção de joias e de caleidoscópios… Como foi conduzir, pra você, essa dupla transformação?
DUDA: Minha migração profissional, para uma área tão distinta daquilo que eu fazia, foi uma consequência devido à minha transição de gênero.
Comecei a fazer a transição logo quando saí da empresa onde trabalhava há quase 27 anos — na verdade, enquanto eu estava trabalhando lá eu já tinha iniciado algumas fases pouco visíveis, do ponto de vista estético, como depilações… então ninguém percebia o que estava acontecendo
Quando saí da empresa, vi que precisava intensificar essas mudanças, e senti também dificuldade de retornar ao mercado de trabalho ou de procurar outro emprego, porque eu precisava deixar isso de uma forma compreensível para quem estivesse me contratando. Para que depois aquilo não fosse uma surpresa.
E, claro, quando você fala de transição de gênero para alguém que pouco conhece sobre isso, e pouco conhece sua competência profissional, isso gera incertezas para quem quer te contratar…
Senti durante algumas entrevistas [de emprego] que isso incomodava. E eu não recrimino isso, porque a pessoa não sabe muito bem o que é uma transição [de gênero], não me conhece, então ela tem as suas dúvidas
E foi aí que decidi dar um tempo na minha carreira profissional e me dedicar às artes plásticas, que no meu caso foi primeiramente aos caleidoscópios.
Por que caleidoscópios?
DUDA: Sempre colecionei caleidoscópios, acho algo mágico, algo que traz paz, serenidade. E é uma coisa bonita, que remete à arte, não é aquele caleidoscópio infantil, feito de papelão; ele utiliza muitas mídias diferentes, artísticas, que trazem uma complexidade grande na hora de finalizar e montar um caleidoscópio. E foi aí que pensei: vou procurar conhecer mais sobre isso.
Viajei até os Estados Unidos, tive vários cursos em Phoenix com ajuda de uma associação internacional de colecionadores e artistas para caleidoscópios, e aprendi realmente a técnica de como fazer um instrumento como esse.
Para que ficasse realmente um caleidoscópio bonito, atrativo, comecei a trabalhar também com cerâmica e cobre pintado com chama de alta temperatura; lá nos EUA mesmo fiz um curso dessa técnica de pintura de cobre com um artista que basicamente criou essa técnica.
Ele e a esposa foram muito acolhedores, me ensinaram a técnica em detalhes de forma incrível, e disseram “nossa, você tem todo o jeito pra continuar com isso, tem talento, vai ter sucesso…”. Aquilo me deixou muito motivada
Quando cheguei no Brasil montei um ateliê para fazer pintura de cobre, associei essa pintura à confecção de caleidoscópios, me aprofundei no trabalho com cerâmica artística…
E tudo isso no meio da pandemia, procurando emprego… eram muito raras as oportunidades de entrevistas, eu já sentia que existia um preconceito velado em relação ao que eu era, e que seria muito difícil voltar ao mundo corporativo.
A coisa foi crescendo, a pandemia foi dando uma folga… No começo deste ano começamos a participar de feiras artísticas, e a aceitação do trabalho foi fantástica, excepcional – até hoje, trabalho de domingo a domingo pra repor estoques –, e isso foi trazendo motivação.
E veio essa vontade de fazer com que a Mina realmente desse certo. Acabei não priorizando mais a minha volta pro mercado de trabalho, e comecei a apostar sempre na Mina de forma mais intensa, profissional. Deixando de ser algo transitório, um hobby, pra virar uma profissão.
Além de caleidoscópios, você produz as joias da Mina. De onde vem a inspiração? E quanto tempo você leva para produzir cada peça?
DUDA: Quando começo a confeccionar uma joia, a primeira coisa que me vem é que preciso fazer algo que inspire as pessoas, que faça com que elas tenham um olhar de paixão por aquilo. Que no primeiro olhar elas já sejam capturadas.
O que importa pra mim é a beleza da peça que eu fiz. A inspiração vem daí, de sempre fazer cada vez melhor.
Pratico muito, e com o tempo essa técnica vai se aperfeiçoando, e vou amadurecendo esse estilo. A técnica eu conheço, mas o estilo é algo que vai se modificando com o tempo, é fruto de muitas interferências, que estão muito conectadas ao sentimento das pessoas com quem eu converso
Trabalho com lotes de cinco, dez, quinze, vinte peças. E isso acaba interferindo no tempo, que pode ser de um dia ou mais. Depende muito da peça, do meu estado de espírito… Tem uma parte mais mecânica, que envolve montagem, soldas, limpezas, cortes, recortes…
Algumas peças são mais complexas. A pintura é o mais importante, isso leva às vezes alguns minutos ou até uma hora ou mais. E às vezes refaço uma peça dez, quinze vezes… Sempre buscando o objetivo de encantar a pessoa.
O posicionamento a favor da causa LGBTQIA+ transparece nas redes da Mina. Considerando o contexto brasileiro de polarização, feminicídio, LGBTfobia, transfobia… Vocês já sofreram algum tipo de ameaça ou mesmo agressão? E por outro lado que tipo de feedbacks positivos vocês recebem?
HELENA: Já recebemos alguns ataques. É pouco, porque a gente consegue nichar o nosso público e se manter dentro de uma “bolhinha”. E isso é bom e ruim. Bom porque a gente constrói uma comunidade muito legal; e ruim porque a nossa mensagem se mantém limitada a pessoas que já concordam com a gente, né?
A gente já recebeu alguns comentários negativos, pessoas atacando principalmente o nosso formato de família, falando “coitada da sua mãe”. Coisas assim, sabe? A Duda ficou triste, e eu falei: você não vai mais ler, deixa que eu leio. Não sei se é uma questão geracional, mas pra mim as coisas não me afetam muito na internet.
E sobre os pontos positivos, é o que realmente faz que a gente tenha essa força pra lidar com essas coisinhas negativas que acontecem, porque o positivo é infinitamente maior.
Durante um tempo, quando estávamos menos sobrecarregadas, a gente tinha um quadro que chamava Mina Call: toda semana ligávamos para alguém que queria conversar com a Duda sobre a causa – seja mãe de uma pessoa trans, amiga, a pessoa trans em si. A gente ficava conversando um tempão pelo telefone
Foi assim que fomos construindo relações próximas com nosso público. Então hoje elas querem saber se a gente está bem, se estamos trabalhando muito, vendendo bem, como estão as próximas coleções… Elas se interessam pela nossa vida.
Acabamos envolvendo o resto da nossa família [nas comunicações da Mina]. Então a minha avó, mãe da Duda, e o Rafa, meu irmão, aparecem sempre [nas redes], as pessoas surtam… é clara a diferença de envolvimento que as pessoas têm quando aparecemos eu, a Duda e a minha família – e quando aparece uma modelo.
Vocês estão prestes a inaugurar um novo espaço físico, com loja e ateliê, em Pinheiros, São Paulo. Como veem o futuro da Mina daqui pra frente?
HELENA: Como eu não imaginava que a Mina ia chegar aonde está agora, não consigo imaginar aonde a Mina vai chegar daqui a um ano. Sei exatamente o que eu não quero. Mas o que eu quero está aberto.
Hoje a gente fecha projetos diferentes a qualquer momento. Pode ser que a Mina seja uma marca de roupas, pode ser que a Mina seja uma produtora de conteúdos, uma agência, pode ser que a Mina seja um milhão de coisas…!
Então não sei dizer como enxergo o futuro da Mina. Mas sei que vai ter muita arte, a causa vai ser sempre nossa principal mensagem, o principal vínculo com nosso público. E sempre vamos ser uma empresa próxima das pessoas, como hoje.
DUDA: Estamos indo passo a passo. Algumas pessoas talvez percebam até rapidez nisso, e isso tem a ver com o quanto as oportunidades estão aparecendo, o quanto eu consigo mobilizar economias que acumulei durante anos de trabalho.
A gente defende muito a questão do quanto uma pessoa transgênero pode ser o que ela quiser. O quanto ela precisa de apoio, respeito – e o quanto a família é importante pra tudo isso. A minha história de vida transmite uma série de possibilidades. E essa história está muito conectada com a empresa.
O que vejo para a Mina é o quanto ela pode continuar levando esse tipo de otimismo para as pessoas. Sem ficar naquilo que a gente sempre vê quando se fala na questão transgênero – a violência, a rejeição… Tudo isso existe. Mas por que não falar também da parte boa, da parte possível? Que é aquilo que eu vivo, com intensidade, junto com a minha família
A minha história e a da empresa caminham juntas dentro do propósito de fazer isso se fortalecer, e quem sabe no futuro dar oportunidade de emprego para outras pessoas, para pessoas que tenham essa abertura à diversidade, quem sabe para pessoas que sejam transgênero também – eu adoraria ter pessoas trabalhando comigo e a Helena que possam, através das suas habilidades, estar com a gente dentro desse projeto.
Vejo o futuro da Mina como algo a ser aproveitado por muita gente. Procuramos fazer as coisas com carinho, dedicação, e certamente vou ficar feliz se isso for algo que possa transmitir esse otimismo e ser cada vez mais consolidado, cada vez maior.
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