Continuamos a série que explica as principais palavras do vocabulário dos empreendedores da nova economia. São termos e expressões que você precisa saber: seja para conhecer as novas ferramentas que vão impulsionar seus negócios ou para te ajudar a falar a mesma língua de mentores e investidores. O verbete de hoje é…
SPORTWASHING
O que é: Sportwashing ou sportswashing é a junção das palavras, em inglês, sport (esporte) e washing (lavagem). Ou “lavagem esportiva”. De acordo com Ricardo Fort, consultor de Marketing Esportivo e ex-head global de patrocínios da Copa da Visa:
“Sportwashing é tentar contar uma história diferente da opinião comum e dos fatos e mostrar uma imagem melhor da empresa, do país, da organização envolvida por meio do esporte”
Resumindo, trata-se da estratégia de utilizar o esporte para limpar/maquiar a reputação de um indivíduo, grupo, corporação ou nação. O sportwashing — conceito que voltou à tona na Copa do Catar — vai na mesma linha do greenwashing e do vegan washing, Aqui, porém, o foco é usar o esporte como forma de reposicionar sua imagem.
Origem do uso do termo: Em 2008, a Anistia Internacional usou o termo ao acusar o Abu Dhabi United Group (de propriedade do sheik Mansour bin Zayed Al Nahyan) de tentar “lavar” a “imagem manchada” de seu país, os Emirados Árabes. A compra do clube inglês Manchester City pelo grupo teria o objetivo de esconder os crimes de uma monarquia absolutista, em que inimigos políticos são perseguidos e mortos, mulheres têm menos direitos e a população convive com a censura e a discriminação religiosa.
A expressão voltou a circular na imprensa europeia em 2015, quando Baku, a capital do Azerbaijão, foi sede dos Jogos Europeus. Desde 2010, o país já vinha investindo no patrocínio de grandes times de futebol (como o Atlético de Madri) e na promoção de eventos esportivos, incluindo a Fórmula-1 e a final da Europa League. Por trás dessas iniciativas estaria um esforço do governo do Azerbaijão de desvincular sua imagem como um país autoritário, desigual e em conflito com a vizinha Armênia.
O Poder 360 cita mais exemplos de pessoas e organizações que teriam recorrido ao sportwashing como uma estratégia de “soft power”. Em 2003, o russo Roman Abramovich comprou o clube inglês Chelsea supostamente a pedido de Vladimir Putin, para expandir a influência russa no Ocidente. Em 2011, o Qatar Investment Authority adquiriu 70% do PSG, da França; o dono do clube passou a ser o emir Tamim bin Hamad Al Thani, líder supremo do Catar, que assim vincularia a imagem de sua monarquia absolutista a um time que hoje tem jogadores como Messi, Mbappé e Neymar.
Mais recentemente, em outubro de 2021, quando o Newcastle United, da Inglaterra, foi comprado por um fundo de investimento administrado pelo governo da Arábia Saudita (outro país criticado pelo desrespeito aos direitos humanos), a imprensa voltou a aplicar o conceito de sportwashing.
A torcida, porém, não parece se importar muito com isso. Um estudo recente mostrou que as alegações de sportwashing não costuma ter impactos na relação com o clube do coração. De acordo com a pesquisa, os torcedores evitam criticar os jogadores e o clube como “forma de proteger o forte senso de identificação que vem de ser um membro leal de uma base de fãs”.
O sportwashing é mais antigo do que parece…: Segundo uma reportagem da CNN Brasil, o sportwashing já era empregado desde a Roma Antiga, quando os imperadores promoviam combates entre gladiadores no Coliseu para manter sua popularidade em alta — a chamada política do “pão e circo”.
Dando um salto para o século 21, a Copa do Mundo de 1934 (na Itália sob o domínio fascista de Benito Mussolini) e os Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936 (quando a Alemanha era liderada por Adolf Hitler), também podem ser entendidos como exemplos de sportwashing. No caso alemão, a intenção seria ainda propagandear a suposta “superioridade” da raça ariana.
Os anos 1970 também viram exemplos do uso do esporte como peça de propaganda. Foi assim no Zaire (atual República Democrática do Congo), em 1974, quando a histórica luta entre Muhammad Ali e George Foreman serviu para exaltar o governo do ditador Mobutu Sese Seko. E também na Argentina, que sediou — e venceu — a Copa de 1978, durante a ditadura militar.
E não se trata apenas de governos. Segundo Fort, empresas também abusam da vinculação de sua imagem ao esporte para desfazer percepções negativas acerca de seus produtos:
“Se pegar a definição mais ampla de sportwashing — usar o esporte para construir uma imagem diferente da realidade –, a publicidade de cigarro até os anos 1980 era uma forma de fazer isso”
Ainda hoje, esse estratégia é usada. “Muita gente acusa empresas de fast food de fazer sportwashing nos patrocínios de eventos esportivos, para contar uma história diferente dos produtos que oferecem.”
Mais recentemente, os Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008, e a Copa do Mundo da Rússia, em 2018, também foram considerados como episódios de sportwashing, em que países não-democráticos fazem uso de um evento de massa para limpar sua reputação. No caso da Rússia, o impacto da estratégia teve vida curta.
“Não dá para enganar todo mundo por muito tempo”, diz Fort. “A Rússia fez isso, mas depois as ações dela foram desmascaradas com a guerra contra a Ucrânia.”
Futebol x direitos humanos: Durante 12 anos, o Catar investiu mais de 220 bilhões de dólares (o maior valor investido para a estrutura de uma Copa do Mundo) em estádios, rede de metrô, aeroportos, rede hoteleira — e muita propaganda. Para abrir o evento, o governo contratou o astro Morgan Freeman e pagou a viagem de 1 600 influenciadores digitais.
Por baixo dessa montanha de dinheiro há um custo em vidas humanas. Em 2016, a Anistia Internacional acusou o país de usar trabalho forçado de imigrantes para construir o Khalifa International Stadium. Em 2021, o The Guardian publicou que 6 500 trabalhadores de Bangladesh, Índia, Nepal, Paquistão e Sri Lanka teriam morrido no Catar entre 2010 e 2020 (à CNN, o executivo-chefe do comitê organizador da Copa do Mundo no Catar, Nasser al Khatel, afirmou que “apenas” três pessoas teriam morrido nas obras dos estádios).
Ainda segundo a Anistia Internacional, mulheres sofrem discriminações estabelecidas tanto pela lei quanto pela prática no Catar. Seguindo os preceitos do islamismo, elas vivem sob tutela dos homens e precisam pedir permissão para casar, estudar, trabalhar, acessar o tratamento de saúde reprodutiva e de controles ginecológicos básicos (um cenário que algumas mulheres, inclusive a mãe do emir, estariam lutando para mudar).
Relações entre pessoas do mesmo sexo são criminalizadas no Catar e podem render até sete anos de prisão. Em apoio à comunidade LGBTQIAP+, capitães de sete seleções teriam manifestado a intenção de entrar em campo com uma braçadeira com as cores do arco-íris e a expressão One Love, mas recuaram diante da ameaça da FIFA de punir os atletas com cartão amarelo. O time da Alemanha chegou a posar com os jogadores tapando as próprias bocas, em sinal de protesto.
Sediar a Copa não é (só) sobre sportwashing: Antes da decisão do Catar de receber a Copa, muitas das violações permaneciam ocultas do noticiário internacional; outras, como o uso de trabalho forçado na construção dos estádios, são decorrentes da própria escolha do país como sede do Mundial.
Em reportagem da ESPN, Chris Doyle, diretor da ONG Council for Arab-British Understanding, afirma que garantir o direito de sediar a Copa do Mundo nunca foi uma questão de (apenas) “lançar um véu” sobre os problemas — mas sim expor o Catar ao Ocidente, em busca de outros benefícios. Por exemplo, abrir novas portas econômicas por meio do turismo.
“O que o Catar fez se qualifica sim, na minha opinião, como sportwashing, porque eles têm um esforço planejado de mudar a imagem do país através do esporte. A aposta deles é que a associação com o esporte seja tão positiva que todo mundo vai ignorar o resto todo e prestar atenção só nisso”
Simon Chadwick, professor de esportes da SKEMA Business School, na França, por sua vez disse em entrevista à the42 que a relação do Catar com Copa não é só sobre sportwashing; o uso do termo, segundo ele, simplifica o debate. “Fundamentalmente, a Copa do Mundo é sobre a vulnerabilidade estratégica do Catar”, afirmou.
Com vizinhos maiores e mais poderosos (sobretudo Arábia Saudita e Irã), o Catar foi colônia britânica até 1971, recebendo “proteção” do antigo império em troca de gás e petróleo. Com a independência, precisou buscar alianças para reduzir sua vulnerabilidade. O país hoje abriga a maior base aérea do Exército dos EUA no Golfo Pérsico, uma forma de conquistar o apoio de uma superpotência.
Chadwick vê a aposta no esporte como parte desse processo. O Catar, aliás, já abrigou a Copa do Mundo de Clubes da FIFA e o Campeonato Mundial de Atletismo em 2019, o Campeonato Mundial UCI Road de 2016 e o Campeonato Mundial de Handebol de 2015.
Como fica a FIFA no meio disso tudo?: Um país pequeno, inexpressivo no futebol, com infraestrutura mínima, um calor tórrido no verão e um histórico de desrespeito aos direitos humanos. Tudo isso deveria desqualificar a candidatura do Catar.
Mesmo assim, em dezembro de 2010 a FIFA escolheu a monarquia absolutista do Golfo Pérsico, exportadora de petróleo e gás natural, para sede da Copa de 2022, em detrimento das candidaturas de Estados Unidos, Japão, Coreia do Sul e Austrália. A escolha, de forma nada surpreendente, acabou atingida por acusações de suborno; mesmo assim, a decisão se manteve.
Corrupção à parte, por que entidades esportivas se dispõem a organizar eventos em países que violam os direitos humanos?
Segundo o consultor, organizações como a FIFA e o Comitê Olímpico Internacional (COI) assumem posturas “apolíticas” e alegam que seu objetivo é “desenvolver o esporte no mundo” e que todos os países “têm direito a sediar seus eventos”. Um posicionamento que, na visão dele, não se sustenta:
“Isso obviamente não faz sentido nos dias de hoje, porque não existe nada que seja apolítico — ainda mais eventos dessa dimensão. Para o bem do esporte, deveria ser inevitável que essas escolhas fossem tomadas levando em conta fatores extra-campo, que não existiam no passado”
A ONU e a OIT (Organização Internacional do Trabalho) já estão fazendo pressão para que a escolha da sede da Copa leve outros critérios na próxima seleção, incluindo o respeito aos direitos humanos. “A Arábia Saudita já falou que quer ser sede da Copa do Mundo e das Olimpíadas”, diz Fort. “O que a indústria do esporte faz com isso?”
Independentemente das críticas, o futebol preserva uma capacidade de atrair e arrastar multidões que nenhuma mancha de corrupção parece ser capaz de frear.
“A Copa do Mundo tem uma força tão grande que é difícil abalar sua imagem”, diz Fort. “A FIFA pode fazer o que quiser que o interesse vai continuar enorme, as marcas vão continuar apoiando, os governos irão mandar seus dignitários…”
O poder dos eventos esportivos: Há quem defenda que escolher como sede da Copa um país do Oriente Médio, muçulmano, sem tradição no futebol, é uma forma de quebrar preconceitos e universalizar o esporte. Fort destaca ainda impactos sociais positivos que o evento pode trazer para o país-sede a longo prazo.
“Os eventos globais têm um impacto positivo, pois através dessa atenção que despertam, forçam o país a mudar para melhor e até seus vizinhos a começar a se mexer. O esporte tem esse papel, de empurrar a transformação social,”
O consultor acabou de chegar do Catar, que já tinha visitado anteriormente. Ele diz que o país evoluiu desde 2010 (ano em que recebeu o direito de sediar a Copa) no tratamento a trabalhadores, mulheres e minorias. Reconhecer essas melhorias, porém, não é o mesmo que negar a eficiência da estratégia de marketing:
“Eu sou uma vítima do sportwashing. Voltei do Catar no dia 2, passei duas semanas lá e fiquei maravilhado. Doha é linda, os estádios são incríveis, as pessoas são amáveis, tudo funciona… Mesmo sendo crítico, vejo que tiveram uma influência positiva e minha opinião hoje é diferente do que há dez anos…”
Todo país que sedia um grande evento esportivo pretende projetar uma imagem positiva de si mesmo. Nada muito diferente do que fez o Brasil ao abrigar a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos do Rio, em 2016.
“O Brasil tem pouca competência e experiência para abrigar grandes eventos mundiais e histórico olímpico razoável, então é difícil justificar que os Jogos Olímpicos tenham acontecido no Rio…”, diz o consultor. “Investiu-se, foi feito um trabalho decente para mostrar que o país era mais que praia, Carnaval e Amazônia destruída”.
Para saber mais:
1) Leia o artigo “Sportwashing: o marketing imoral”, de Ricardo Fort, no Meio&Mensagem;
2) Confira no The Conversation: “Word Cup 2022: Qatar is accused of ‘sportswashing’, but do the fans really care?”;
3) Leia a newsletter do The Brief sobre o tema aqui;
4) Na CNN Brasil, acesse “Entenda as denúncias sobre direitos humanos contra o Catar”;
5) Saiba como é a vida de brasileiros que vivem no Catar nesta reportagem do Uol;
6) Acesse, no The Athletic, “FIFA want us to see the light – but World Cup in Qatar remains under a dark shadow“;
7) Leia, no DW, “Qatar World Cup the most expensive of all time”.
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