Pense em uma grande empresa, como uma multinacional. Quando você imagina quem ocupa os cargos de CEO, de diretores e de alto escalão, como são essas pessoas? Se você pensou em homens (cis e heterossexuais) de pele branca, acertou. De acordo com uma pesquisa da Page Executive em parceria com a Fundação Dom Cabral, 90% dos CEOs no Brasil têm esse perfil.
Os negros são 54% da população brasileira, as mulheres representam 51,8% do total demográfico, de acordo com dados do IBGE. Mesmo assim, apenas uma mulher ou pessoa negra é líder a cada 10 pessoas no topo das empresas. É essa realidade embranquecida, heteronormativa e cisgênera que a Carambola Tech vem mudando.
Quando a empresa nasceu, em 2017, ela era outra coisa. “A gente era uma fábrica de software que fazia projetos para startups. Foi dando muito certo, e a gente foi pegando um monte de trabalho. Como eu e meu sócio estávamos começando, não tínhamos dinheiro e fomos contratando pessoas periféricas, que o mercado não queria e não contratava”, conta o fundador Gustavo Glasser, de 39 anos, ele mesmo periférico, nascido em uma família de classe média baixa, no Grajaú, em São Paulo.
Acontece que esses profissionais que eram rejeitados pelo mercado ganhavam experiência na Carambola e, depois, acabavam saindo de lá para trabalhar em empresas maiores, com salários melhores. Foi a partir dessa percepção que veio a virada de chave.
“O mercado de tecnologia tem uma escassez de mão de obra muito grande, e aí percebemos que talvez fôssemos uma empresa que podia formar pessoas diferentes daquelas que o mercado estava acostumado a contratar.”
Veio assim a ideia de criar um modelo de negócio voltado para a profissionalização em tecnologia de minorias: pretos, deficientes, LGBTQs, todos periféricos, com foco em alta empregabilidade.
“A gente não queria cobrar as pessoas que participassem e também não queria que fosse gratuito. Porque, como alguém que veio da periferia, sei que, mesmo com a gratuidade, é difícil conseguir se manter estudando quando você tem que ganhar dinheiro. Então a ideia era pagar para as pessoas estudarem”, conta ele. O valor pago era de R$ 2,5 mil por mês, durante um período de quatro meses de formação.
E quem financiava isso? Empresas como Itaú, Ambev, Microsoft e Ame. Interessadas em diversificar seus quadros de funcionários, grandes corporações investem no modelo de negócios da Carambola. Em 2017, a discussão sobre diversidade começava a crescer, junto com a demanda do trabalho oferecido por Gustavo.
“As corporações conseguiam pagar para que a gente fizesse esse processo e o nível de empregabilidade é de 97% dos funcionários, que são contratados com salários médios entre R$ 4.700 e R$ 6.200”, diz ele.
EDUCAR OS EDUCADOS, EIS O DESAFIO
Gustavo conta que, no início, muita gente pensava que o grande desafio da Carambola seria preparar os grupos mais vulneráveis, como as mulheres pretas ou trans, para o mercado. A realidade, ele garante, é bem diferente.
“O mais difícil é educar os educados, ou seja, preparar a empresa para lidar com a diversidade que ela vai receber. Acho injusto deixar a responsabilidade pela integração para a pessoa trans, a mulher negra ou o deficiente.”
Na prática, para que haja um processo de inclusão, não basta colocar uma pessoa periférica capacitada em um contexto empresarial. A cultura da empresa precisa ter consciência da importância daquela pessoa ali e a equipe precisa estar preparada para entender aquele profissional, suas peculiaridades e o lugar do qual aquela pessoa parte.
“Pensa em uma sala com 40 alunos na escola, que tem uma menina trans. Ela não aguenta a zoação, a opressão e acaba deixando de estudar. Ela vem para a Carambola, se capacita e está pronta para entrar em uma empresa. Só que, se você não prepara o grupo, você joga ela de novo junto com aquelas outras 39 pessoas que foram o motivo dela sair da escola.”
É PRECISO PREPARAR A EMPRESA PARA RECEBER A DIVERSIDADE
Mudar a sensibilidade da empresa para receber esses novos membros é essencial para o sucesso do processo. Isso porque a vivência de uma mulher negra e periférica não é a mesma de um homem branco de classe média alta. Para Gustavo, não faz sentido, então, avaliar os dois funcionários da mesma forma. É preciso que as percepções sejam personalizadas e levem em conta diferentes vivências.
“Criamos um tipo de avaliação para as empresas de acordo com quem é cada funcionário. A régua não é a mesma para todo mundo, o que não quer dizer que vamos diminuir a régua, cair com o padrão, vamos mudar a régua. É preciso gerar sensibilização.”
Vem dando certo. Com a avaliação diferenciada, houve um aumento de diversidade de raça e de sexualidade e uma diminuição de mais de 30% da saída de funcionários formados pela Carambola das empresas. Além disso, o tempo médio para que pessoas de grupos minoritários recebam uma promoção diminuiu.
Mudar a lógica pela qual as grandes instituições operam é o caminho. “Uma gestora do Itaú me contou uma vez depois do processo que a gente fez com ela que, em 23 anos de empresa, ela nunca tinha entrevistado uma pessoa negra e nem sequer pensado sobre isso. Isso é sobre educar os educados”, diz ele.
NO MEIO DO CAMINHO, TINHA UMA TRANSIÇÃO
Gustavo é um cara de fala ágil, direta, que fala com muita paixão sobre o que faz. E a história de sua vida está muito conectada às causas que defende em sua empresa. Ele é um homem trans e se reconheceu assim a vida inteira. Mas foi em 2019, já à frente da Carambola, que ele começou seu processo de transição.
Um caminho que havia começado há muito tempo. “A Carambola é consequência da minha transição, que vem acontecendo há 20 anos, quando eu contei pros meus pais que eu era ‘esquisito’. Mas muito antes disso, eu sempre soube, sempre me senti um homem”, diz ele.
A conversa com os pais, aos 19 anos de idade, não foi boa. “Meu pai disse que era culpa da minha mãe por ter me deixado jogar futebol e usar fantasia do Batman.” Os pais saíram de casa e o deixaram lá, por rejeitarem sua identidade de gênero, e ele ficou quatro anos sem contato com a família, até mesmo com a irmã mais nova. Quando o contato foi retomado, seguiu morno, sem afeto.
“Tive muitos pensamentos suicidas. Meus pais queriam me internar, falaram que era como se eu fosse viciado em droga. Na época, eu era uma mulher lésbica, era tipo uma super lésbica que de tão lésbica, queria virar homem. Não me relacionei com ninguém até os 19 anos e aí eu conheci uma moça. Sempre falei que eu era homem, mas usava um nome feminino”, lembra ele.
Em 2019, depois que sua mãe disse que sabia desde os seus dois anos que ele era um homem trans e que queria apoiá-lo, Gustavo finalmente começou seu processo de hormonização, troca de documentos e tudo o mais que uma transição de gênero pode envolver. Sua vida se encaminhou para onde parecia que desde sempre deveria ter estado.
“Eu acho que eu não tinha a dimensão do que eu estava fazendo comigo mesmo. Para uma pessoa trans conseguir viver sem fazer a transição é preciso se anestesiar e colocar aquilo numa caixinha, senão você enlouquece. Então, com a transição, ficou mais fácil, encaixou, as pessoas olharam para mim e naturalmente fez sentido”, conta ele.
MANOBRAR O TRANSATLÂNTICO
Sobre a onda recente de ESG, que faz com que mais empresas busquem quadros inclusivos e diversos, Gustavo prefere agir com cautela.
“Não pode ser uma coisa tipo paleta mexicana, que todo mundo amava, todo lugar tinha, todo mundo comeu até que enjoou e hoje em dia você não encontra em mais lugar nenhum. A inclusão não pode ser uma moda, uma onda, é algo que precisa se estabelecer, ficar. Não é passageiro, não pode ser.”
Enquanto isso, segue fazendo seu trabalho. “Existem muitas pessoas e grandes empresas que estão trabalhando para isso, mas elas são transatlânticos, daqueles imensos, que demoram para virar. Tem empresa que demora um ano e meio para fechar com a gente. A empresa não pode querer mostrar o que ela não é. Mas as lideranças em geral têm estado mais abertas a discutir de forma mais densa essas mudanças e não de forma rasa”, comemora ele. Uma virada por vez.
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