De 1974 a 2021, a produção anual de leite no Brasil saltou de 5,2 milhões de toneladas por ano para 35,5 milhões. Esse aumento se deve, em parte, ao avanço de práticas e tecnologias como a pecuária de precisão. E foi neste campo que os irmãos Leonardo Guedes, 37, e Thiago Martins, 35, resolveram se aventurar.
O termo “se aventurar” cabe aqui porque, até então, nenhum deles tinha familiaridade com o ramo. “Eu nunca tinha tocado em uma vaca, só conhecia leite na caixinha”, diz Leonardo.
A ideia de empreender uma startup surgiu em 2010 quando eles, ainda estudantes de engenharia — Leonardo cursou a elétrica, e Thiago, engenharia mecânica — na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), participaram de um projeto para desenvolver aparelhos de monitoramento de animais e pessoas.
“Na época, a tecnologia na agricultura estava se desenvolvendo, mas ainda era incipiente. Tanto que se você colocasse no Google ‘pecuária de precisão’ só aparecia um blog, de uma pessoa, dizendo que esse seria o futuro”
Essa escassez despertou a atenção dos irmãos que enxergaram, na tecnologia, uma oportunidade de realizar um sonho antigo de terem a própria empresa. Assim, naquele mesmo ano eles fundaram a COWMED (inicialmente, com o nome de Chip Inside).
Por meio de uma coleira inteligente, a agtech possibilita aos produtores acompanhar, em tempo real, o bem-estar de suas vacas, analisando comportamentos como ruminação, tempo de atividade e ócio, picos de consumo e até mesmo se elas estão doentes ou perto de parir.
Hoje, são mais de 35 mil vacas monitoradas em cerca de 400 fazendas de seis países: Brasil, Bolívia, Canadá, Estados Unidos, Paraguai e Uruguai. Recentemente, a COWMED levantou 5,9 milhões de reais na Captable, plataforma de financiamento coletivo para startups. A quantia lhes rendeu o recorde brasileiro na categoria.
À primeira vista, pode parecer que o caminho para o sucesso foi fácil. Leonardo, porém, garante que esses 12 anos foram repletos de erros e acertos. A começar pelo core do negócio.
Antes de fundar a startup, a dupla se arriscou em diversas áreas. “Nós queríamos ser uma empresa de tecnologia e começamos a tocar vários projetos, de castração de porco a lançamento de foguete…. No fim, percebemos que, dessa forma, não íamos sair do lugar. Precisávamos de um foco muito bem definido.”
Foi aí que eles decidiram desenvolver uma coleira monitora para vacas; vacas leiteiras, mais especificamente. Leonardo explica que, até chegar na versão atual, foram necessárias cinco tentativas.
“O colar é um eletrônico, que nem um celular. A diferença é que ele ia ser usado por um animal de 500 quilos, que bate todo dia em um canzil, espécie de grade de metal ou madeira que limita o espaço da vaca no comedouro. Ou seja, tínhamos que desenvolver um produto que, se encostasse, não podia quebrar, e se molhasse, não podia estragar… Foi desafiador”
Durante este processo, além de entender a importância de estabelecer um foco, os empreendedores aprenderam outra lição: às vezes, o simples não é óbvio, mas resolve.
Inicialmente, eles pensaram em desenvolver uma máquina específica para simular cada condição sob a qual a coleira seria submetida. Até que o Thiago disse para o irmão: “Leo, você quer molhar, bater e agitar a coleira. Por que tu não coloca ela em uma máquina de lavar, cara?” Foi isso que eles fizeram.
Após chegar à versão final, em 2014, a dupla teve que enfrentar um novo desafio. Como nenhum dos irmãos tinha experiência prévia no agronegócio, eles não conheciam nenhum produtor de leite, o que acabou dificultando a aderência do produto ao mercado.
“Nós lançamos o colar e, em um ano, vendemos apenas 100 unidades, é muito pouco”, diz Leonardo. Ao mesmo tempo, o dinheiro disponível estava se esgotando.
Como acontece na trajetória de muitos empreendedores, o momento de dificuldade pelo qual a startup estava enfrentando acabou se tornando a virada de chave para o negócio.
No início, a Chip Inside monetizava apenas com a venda de cada unidade da coleira. A interpretação dos dados coletados pelo dispositivo era feita pelo próprio produtor. Até que algo mudou.
“Um dia, acessei o computador de um parceiro no Uruguai via Team Viewer e observei que duas vacas dele não estavam ruminando como de costume”, diz Leonardo.
Logo em seguida, ele ligou para o produtor para repassar a informação. Passado um tempo, Leonardo foi visitá-lo na fazenda e recebeu o seguinte comentário:
“Ele disse: ‘O produto é bom, funciona bem, mas o sensacional foi o dia que você me avisou, aí do Brasil, que as vacas estavam mal… De fato, eu fui lá e elas estavam doentes, e eu que estava aqui do lado nem tinha notado’…”
Nesse dia, os irmãos perceberam que o modelo de negócio não era vender o produto, mas sim entregar valor para o cliente, uma recomendação do que fazer com base no comportamento do animal, segundo Leonardo.
“A partir daí, nós criamos um serviço, pois acreditávamos que o produtor tinha dificuldade em interpretar a ‘opinião’ das vacas sozinho, apenas lendo os dados”, diz Leonardo.
De Chip Inside, a startup passou a se chamar COWMED, um trocadilho com Unimed. A ideia era ser “o plano de saúde da vaca”.
Entre tropeços e aprendizados, Leonardo e Thiago seguiram apostando no negócio, até que receberam um investimento anjo de 60 mil reais — montante que lhes daria mais seis meses de vida.
Para ajudar a pagar o salário dos colaboradores e manter a empresa funcionando, os irmãos começaram a dar aula à noite.
Três anos depois, em 2017, a agtech recebeu um novo aporte, de 4 milhões reais, do Fundo Criatec 3, criado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES) e gerido pela INSEED Investimentos.
Apesar das conquistas, Leonardo afirma que o período turbulento foi essencial para o amadurecimento da COWMED.
“Nós nos renovamos a cada dificuldade que encontramos ao longo do caminho até chegar, no dia de hoje, a sermos a maior empresa de monitoramento de animais do Brasil. Tudo isso foi graças à cultura que nós temos, voltada ao cliente e à vaca.”
O grande diferencial da COWMED, diz Leonardo, é, justamente, colocar a vaca no centro da tomada de decisão do produtor. “Quando a pessoa olha o animal doente, muitas vezes ele já está em um estágio avançado de dor, deitado no chão”, diz Leonardo.
Ele explica como o dispositivo municia o produtor com informações valiosas para o bem-estar do animal:
“O colar monitora e mensura o estado da vaca em um número. Por exemplo, se ela ruminava oito horas e agora está ruminando cinco horas, a coleira detecta essa queda e avisa o produtor que ela está começando a ficar mal”
Todos os dados coletados são enviados, em tempo real, para uma nuvem e analisados pela Virtual Interpreter of Cows (VIC) — inteligência artificial criada pela startup para “dar voz” às vacas — que sugere um diagnóstico, notificando o fazendeiro via aplicativo e plataforma.
Atualmente, o banco possui cerca de 500 milhões de horas/vaca (número de horas de vacas monitoradas) categorizadas por espécie, região, tipo produtivo, dentre outras características. Leonardo afirma:
“Uma vaca Jersey é diferente de uma Holandesa; um animal que está no pasto é diferente de um que está confinado. Nós fazemos essa divisão para entender a resposta da vaca a cada um desses aspectos”
Essa especificação permite que o produtor detecte uma doença logo no início, reduzindo a probabilidade de óbito e aumentando o lucro, além de proporcionar maior assertividade na tomada de decisões.
“Uma vaca leiteira de alta produção custa entre 10 mil e 12 mil reais”, diz Leonardo. “Se ela morrer da noite para o dia, o impacto financeiro dela para o produtor é muito significativo.”
O empreendedor acrescenta ainda que a redução média do descarte involuntário (morte de animais) em todas as fazendas monitoradas pela COWMED é de 30% nos primeiros seis meses.
Em uma fazenda localizada na região nordeste do Rio Grande do Sul, em que mil vacas eram monitoradas, o resultado obtido foi ainda maior. Após 12 meses da aquisição do serviço da agtech, o produtor reduziu o índice de mortalidade de 15% para 3% — uma queda de 80%.
A assinatura mensal custa, em média, 20 reais por coleira. Esse valor pode variar de acordo com a fazenda e a quantidade de animais.
Além do dispositivo, o serviço inclui capacitação, instalação de antenas e o acompanhamento de um time especializado de zootecnistas e veterinários que auxiliam os produtores frente a cada desafio, como troca de dietas, manejo, inseminações, protocolos reprodutivos e problemas de saúde.
O colar é feito de poliéster e nylon, para não machucar o animal, e dura de quatro a cinco anos; para funcionar, o produtor precisa apenas de um ponto de internet. A comunicação entre a coleira e o sistema é feita por rádio frequência, sendo assim, a conectividade não é uma barreira para o negócio.
“A nossa instalação é toda plug and play. Nós enviamos uma caixinha para o cliente com instruções, ele liga na tomada, coloca a coleira na vaca e pronto. Caso ele precise de mais repetidores de sinal, nós enviamos”
Leonardo é otimista quando fala sobre o futuro. A expectativa é que, até o final de 2023, a startup dobre o número de animais monitorados de 35 mil para 70 mil. Além disso, eles pretendem fortalecer a presença da COWMED na América Latina, ampliando a atuação para outros países.
Quanto a olhar para outros mercados, o empreendedor já é mais comedido.
“Muitas pessoas já nos procuraram para desenvolvermos coleiras para cavalos e pets”, diz Leonardo. “Não é algo tão impossível de acontecer; mas, por enquanto, nosso foco é no leite.”
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