Moldar a argila para produzir um objeto de cerâmica não é simples. Se nada der errado no meio do processo, são mais de 30 dias para a peça ficar pronta.
A matéria-prima que Elainy Mota Pereira quer moldar, no entanto, é outra e exige muito mais tempo, disposição e carinho para ser trabalhada.
Desde 2007, Nany, como é conhecida, toca o Projeto Ser Âmica, que usa a arteterapia e a cerâmica como ferramentas socioeducacionais para impulsionar jovens em situação de vulnerabilidade social da Zona Leste de São Paulo.
As oficinas do projeto ajudam os participantes a fortalecer a autoestima e aprofundar o autoconhecimento. Além disso, cada aluno recebe 50% do valor da venda das peças que produz.
Natural do Paraná, Nany se mudou ainda nova para cursar Artes Visuais na Universidade Federal do Mato Grosso Sul.
Ainda na faculdade, quando nem imaginava que um dia trabalharia na área socioeducacional, começou um estágio como professora de artes no projeto Bem Viver, da prefeitura de Campo Grande.
A proposta era apresentar atividades manuais, como pintura, trabalho com papel reciclado e pano de prato a jovens em situação de rua, e gerar renda para essas pessoas por meio da venda dos produtos criados.
Nany conta que começou a trabalhar a cerâmica com os jovens de forma despretensiosa:
“Comecei a perceber que — ainda que muito ingênua e imatura profissionalmente — aquela atividade trazia melhorias para a vida deles. Muitos se envolviam [com a cerâmica] a ponto de deixar de lado o álcool e as drogas”
Com o tempo, outras atividades manuais que eram realizadas no espaço foram deixando de acontecer, mas artista plástica continuou firme com a cerâmica e permaneceu atuando no projeto por seis anos.
A experiência levou Nany a querer se aprofundar no tema. Assim, em 2001, ela se mudou para São Paulo com o plano de cursar pós-graduação em Arteterapia.
(Mais tarde vieram o mestrado e o doutorado, nos quais estudou o impacto da argila na saúde e da arte na cura e na transformação pessoal.)
Nany conta que, quando chegou a São Paulo, se sentiu “engolida” pela cidade. “Fiquei um tempo trabalhando em escritório para conseguir sobreviver, pagar os estudos.”
Ela só engatou na pós-graduação em Arteterapia em 2005. Durante a pós, estagiou em instituições sociais como a Casa Taiguara e Casa do Joselito. “Nesses lugares, não consegui trabalhar com cerâmica porque a gente não tinha o forno.”
Em 2007, Nany resolveu iniciar seu próprio projeto, o Ser Âmica. A proposta era semelhante ao que ela já havia feito em Campo Grande, mas com foco em jovens em situação de vulnerabilidade entre 12 e 17 anos.
“Eu já sabia que daquela forma funcionava, que conseguiria bons resultados por meio da cerâmica. Consegui fazer o projeto pela lei Rouanet, mas o patrocínio mesmo só veio 2010”
A Gerdau, diz Nany, foi a primeira empresa a apostar no projeto. Depois vieram outras. Entre 2011 a 2019, a Panco foi a patrocinadora exclusiva por meio de um edital do Proac no qual Nany se inscreveu.
Desde 2011, a iniciativa também é parceira do Instituto Movere, que encaminha jovens atendidos para Nany (segundo ela, porém, muitos chegam a partir de indicações dos próprios alunos).
Até 2019, cerca de 1 200 alunos passaram pelas oficinas do Projeto Ser Âmica, realizadas num espaço cedido pela Associação de Amigos do Bairro de Artur Alvim, com um forno e um torno.
A ideia do projeto não é a profissionalização. Mesmo assim, Nany sabe que pelo menos 12 alunos se tornaram ceramistas de fato. Alguns foram trabalhar em ateliês famosos, como Mara Lozano, Serafine e Fika.
As aulas ocorriam de duas a três vezes por semana, ao longo de um semestre. Nesses encontros, os alunos eram guiados por uma metodologia desenvolvida por Nany durante o mestrado.
“Na primeira oficina, por exemplo, os jovens trabalham a questão da identidade, criando um crachá a partir do nome deles, que depois vira um totem de poder”
Segundo a artista, a reflexão gira em torno de perguntas como “quem sou eu?, “onde estou nesse momento?”, “o que eu busco pra minha vida?”.
Na oficina “Meu mundo”, os participantes pegam uma bolinha de argila e, através de uma técnica chamada pinching, vão moldando peças e abrindo as possibilidades de seu “mundo simbólico”.
Outra oficina é a “Quem me toca e quem eu toco?”. Nela, os alunos desenvolvem o torso humano. Nany afirma:
“Hoje, os jovens estão cada vez mais sexualizados, e muito cedo. Então, a ideia da oficina é fazer que primeiro olhem para o próprio corpo, respeitando-o como um canto sagrado, e [só] depois olhem o corpo do outro”
Há ainda outros módulos em que os jovens desenvolvem mandalas, máscaras e até uma bandeira estilizada do Brasil. Todas buscam trabalhar os valores e origens dos participantes.
”Já percebi de muitos jovens não se reconhecem como da periferia”, diz Nany. “Então, é muito importante que eles superem essas barreiras, honrem e reconheçam suas origens.”
Criar uma peça de cerâmica é um processo demorado. Uma vez modelado, o objeto passa por uma primeira secagem (coberta com plástico, por exemplo), para depois secar em um pano e ir para o forno em sua primeira queima e, enfim, para a esmaltação.
“São uns 30 dias até a peça ir para o forno”, diz Nany. “Nesse tempo, a gente vai aprendendo a ter resiliência, a lidar com a ansiedade e com as frustrações.”
E as frustrações podem mesmo aparecer no meio do caminho, com peças que racham, por exemplo, por questões técnicas ou emocionais.
“Às vezes a gente transfere para a peça o que está sentindo. É o que Jung e Bachelard falam — jogamos no gestual tudo aquilo que a palavra não pode explicar”
Muitos dos jovens que passaram pelo projeto têm histórico de abusos e de violência em casa, e/ou vivem longe do seu núcleo familiar mais íntimo. “Então, às vezes, a vida e os sentimentos deles refletem direto nas peças que fazem.”
Nany conta que isso já aconteceu com ela mesma quando enfrentava problemas pessoais. “Coloquei a mão em 22 peças, as 22 racharam. Não tinha nada errado com as peças, mas comigo.”
Ao longo dos anos, os participantes do Ser Âmica conseguiram criar peças para serem vendidas em feiras e bazares e até atender pedidos de restaurantes como o ultraconcorrido A Casa do Porco, de Janaína e Jefferson Rueda (eleito em 2023 como o 12º melhor do mundo no ranking The World’s 50 Best Restaurants), e o Esther Rooftop, do chef Olivier Anquier.
Por encomenda da dona de outro restaurante paulistano, o MoDi, os alunos da Ser Âmica produziram peças inspiradas na obra de Modigliani (em 2018), Picasso (em 2019) e Tarsila do Amaral. Os objetos em homenagem à pintora brasileira foram leiloados em um jantar celebrando o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922; por conta dos efeitos da pandemia, o jantar acabou só acontecendo em 2023.
Nany diz que foi durante a pandemia que o Projeto Ser Âmica se expandiu do ponto de vista comercial, ganhando mais atenção e divulgação.
“As pessoas começaram a cozinhar em casa, fazer pão, e queriam postar nas redes sociais o que tinham feito, mas precisavam de um suporte bonito para colocar a comida”
O Ser Âmica estava com as portas fechadas por conta do coronavírus, mas a artista plástica começou a receber encomendas e mandar as peças já produzidas pelos alunos para o Brasil inteiro pelos Correios.
Por outro lado, na mesma época. as mudanças nas leis de incentivo promovidas pelo governo Bolsonaro acabaram prejudicando a o projeto. “Ele [o ex-presidente] fez uma demonização das leis de incentivo e principalmente do produtor cultural a ponto de as empresas não toparem mais investir em projetos em que a captação era feita por pessoa física, como o nosso.”
Com a necessidade de isolamento e a dificuldade de captar por meio de editais, o Ser Âmica passou então a operar com capacidade mínima. Hoje, apenas oito jovens (que já eram atendidos há anos pelo projeto) seguem participando.
Para continuar operando, ainda que com a capacidade reduzida, o Ser Âmica aposta na venda das peças dos alunos.
Do valor vendido, 50% ficam com o jovem que produziu a peça (antes, com o patrocínio, eram 100%); muitos dos participantes, diz Nany, são o principal responsável por botar dinheiro em casa.
Os outros 50% são utilizado hoje pelo projeto para cobrir os gastos do ateliê com material, conta de luz e o lanche oferecido desde sempre aos jovens — afinal, sovar a argila exige força.
Mesmo nesse modelo, as contas ficam apertadas. “Como a cerâmica, de repente, virou moda — tanto das pessoas quererem comprar peças como fazer cursos –, o custo da matéria-prima aumentou demais”, diz Nany. “Sempre foram itens caros, na verdade. Antes, o esmalte de pigmento do cobalto era 900 reais o quilo; agora, custa 2 300 reais.”
Pelo menos a argila chega de graça para o projeto.
“Usamos um material 100% reciclado, argila de grandes ateliês que nos doam porque não têm espaço para armazenar a matéria-prima — ou iriam jogá-la fora, porque já colocam essa perda no custo [final] das suas peças”
Esse reaproveitamento gera sustentabilidade. “Estamos falando de um material não renovável, que simplesmente iria para a caçamba do lixo, mas que a gente ressignifica.”
Atualmente, as vendas das peças são feitas online, em algumas feiras das quais o projeto participa — como a Jardim Secreto, que foi pauta aqui no Draft –, por encomenda e esporadicamente em bazares realizados na sede do Ser Âmica.
Além do projeto, Nany divide seu tempo como professora de pós-graduação no curso de Arteterapia em três instituições.
Em novembro passado, ela virou sócia do Central Ateliê, na República, centro de São Paulo. O convite para embarcar no negócio veio de Sergio Campos, jovem que no passado foi atendido pelo projeto e seguiu carreira na área, trabalhando no ateliê da artista Paula Unger, que faleceu há cerca de um ano.
Nany conta que, após a morte de Paula, o viúvo dela doou um forno e outros equipamentos para Sergio, e ofereceu a ele a possibilidade de comercializar algumas peças exclusivas de Paula.
Assim, Sergio conseguiu um impulso para abrir o seu próprio espaço e Nany embarcou na empreitada. Aproveitando o “modismo” em torno da cerâmica, a ideia da dupla é atender, no Central Ateliê, o público que buscava o Ser Âmica para fazer aulas, mas não se encaixava no perfil de jovens em vulnerabilidade social.
Mesmo envolvida com o ensino em várias frentes, Nany diz que pretende seguir firme com o Ser Âmica. O caminho agora é correr atrás de editais para que o projeto volte a operar com capacidade máxima.
“Infelizmente, hoje temos um número muito pequeno de participantes pelo espaço que a gente tem, que é muito grande e poderia estar cheio — mas, sem subsídios, não é possível. Vamos ver se conseguimos mudar isso”
Ela diz que já vem conversando com empresas para ver se consegue um investimento. “Agora que percebi a dificuldade de captar como pessoa física, vou tentar um patrocínio como pessoa jurídica. E vamos ver como será 2024.”
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