Se em 2024 o tema da cannabis medicinal vai aos poucos se estabelecendo no Brasil (foi há dez anos, em abril de 2014, que a Justiça autorizou pela primeira vez a importação de um remédio à base da substância), o uso recreativo da planta, liberado em outros países, encara aqui uma trilha bem mais tortuosa.
Em abril, por exemplo, o Senado aprovou uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que criminaliza a posse e o porte de qualquer quantidade de maconha — o projeto hoje tramita na Câmara dos Deputados. No sentido oposto, o Supremo Tribunal Federal descriminalizou, em junho, o porte de maconha para uso pessoal.
Nesse cenário extremamente incerto, são poucos os veículos que fazem da cannabis o seu foco principal. Uma exceção recente é a Breeza. Com apenas oito meses de atividade, a revista online chegou a pautar a mídia mainstream (como Folha de S.Paulo, O Globo, UOL e Veja) graças a seus conteúdos sobre cannabis e psicodélicos.
À Breeza, Ney Matogrosso criticou a hipocrisia da sociedade em relação ao uso de drogas. A atriz Luana Piovani contou que a primeira coisa que faz quando acorda é fumar um baseado, enquanto Gilberto Gil admitiu que, aos 82 anos, ainda “dá um tapa” de vez em quando.
Cofundador e editor-chefe da revista, Filipe Vilicic, 39, afirma:
“A gente tem um olhar canábico, psicodélico, brisado para o mundo e faz um jornalismo com essa visão. Achamos que demoraria anos para as pessoas entenderem, mas elas estão entendendo muito rápido”
O líder indígena Ailton Krenak, o rapper Rincon Sapiência e as chefs Helena Rizzo, do restaurante Maní e do programa MasterChef, e Janaína Torres, do Bar da Dona Onça, são outras personalidades que deram as caras na Breeza.
Ao lado de Filipe na Breeza está Anita Krepp, 36, que também atua como editora-chefe. A proposta da dupla de apaixonados pelo assunto é abrir o debate sobre psicodélicos no Brasil, trazendo ao público pontos de vista variados e desmistificando a conversa sobre maconha.
Além de entrevistas, a Breeza traz histórias detalhadas de personalidades e anônimos ligados à planta, reportagens a respeito da cultura da cannabis pelo mundo e classificados sobre cursos, eventos e novidades desse universo.
Também há no site a coluna Observatório da Planta, do advogado Murilo Nicolau, que explora o universo jurídico da maconha no Brasil, e o podcast Saindo da Estufa, que traz em áudio a entrevista com a personalidade da semana.
Filipe diz que faz uso da planta para aliviar dores e também, de vez em quando, de forma recreativa — o que trouxe uma proximidade cada vez maior com a cultura canábica.
“A ideia da Breeza é antiga na minha cabeça. Eu tenho uma relação com a maconha desde adolescente. Comecei errado, e aí fui acertando, descobrindo, equilibrando”
O empreendedor acaba de completar o mestrado em ciência da comunicação na USP, e é autor dos livros O Clube dos Youtubers (Gutenberg, 2019) e O Clique de 1 Bilhão de Dólares (Intrínseca, 2015). Como jornalista, ele teve passagens por Veja e O Estado de S. Paulo, atuando como editor e colunista nas áreas de ciência e tecnologia.
Em sua atividade profissional, a maconha despontava ocasionalmente, em textos como o perfil que fez para a revista piauí do cantor Marcelo D2, ativista histórico pela liberação da planta no Brasil. Além disso, Filipe curtia o jornalismo gonzo (ou “brisado” como ele prefere) praticado por gente como o norte-americano Hunter S. Thompson (1937-2005).
“Sempre fui muito apaixonado por um tipo de jornalismo que mergulha bastante nas histórias, um jornalismo normalmente muito brisado”
O jornalista conta que estava atuando como freelancer quando, em 2023, pouco depois de ver sua filha nascer, decidiu enfim dar o pontapé inicial na Breeza.
A ideia para o nome veio de uma conversa com um amigo designer. Em meio a uma série de ideias “ruins”, como admite o próprio Filipe, o colega sugeriu “breeza”, assim mesmo, com dois “e”. E o nome acabou ficando.
Anita, por sua vez, já tinha coberto o tema para o Estadão e a Forbes Brasil, e atuado como colunista sobre o assunto no site Poder360. As visões dos dois rapidamente se conectaram, e a jornalista, que vive a uma hora de distância de Barcelona, entrou para o negócio.
Com o também jornalista Leonardo Martins, sócio e hoje diretor de audiência e produtor executivo de vários projetos da Breeza, o empreendimento começou em outubro de 2023, mas foi lançado oficialmente em março deste ano, com um investimento inicial “perto de 100 mil reais”, segundo Filipe.
Ele diz que de cara chegou a receber uma proposta de investimento, que acabou não indo para frente. Por isso, pôs a grana do próprio bolso, junto com os demais sócios, para rodar as engrenagens. “Foi até melhor, surgimos de forma totalmente independente.”
Como fazer com que artistas e celebridades topem falar abertamente sobre um assunto que ainda está longe de ser unanimidade no país?
O primeiro contato nem sempre é fácil, admite Anita:
“Alguns, como o Ney Matogrosso, topam na hora. Outros, a exemplo do Gil, levam meses”
Ela considera normal esse período mais longo de negociação. E aponta que a abordagem da Breeza aos entrevistados também tem revelado alguns aspectos da desigualdade e do racismo brasileiros.
O rapper Rincon Sapiência, por exemplo, resistiu inicialmente à ideia por ser “um cara preto vindo da periferia” falando sobre drogas. “A gente percebe como as drogas são vistas e sentidas [de forma diferente] de acordo com a questão cultural, o lugar onde cada um vive”, diz Anita. E completa:
“Fico sempre meio apreensiva se a gente vai continuar conseguindo [realizar as entrevistas], mas acho que há um lugar infinito para conversar — e muita gente para falar a respeito. Estamos tirando essas pessoas da estufa”
Por outro lado, Filipe deixa claro que nem todo mundo que aparece na Breeza é usuário de cannabis. “Tem gente que fuma e que não fuma, gente que usa psicodélicos, gente que fala pela proximidade com o nosso público e a cultura que estamos representando.”
Anita dá um exemplo. “Na semana passada, a gente entrevistou [a dupla de irmãos e artistas] Os Gêmeos. Eles apoiam a legalização, defendem que cada um precisa ter suas liberdades — e eles próprios não usam nada.”
A meta da Breeza é também normalizar a discussão sobre maconha e outros psicodélicos, colocando-os na mesma prateleira de drogas legalizadas que ingerimos com frequência, como o álcool.
A cofundadora defende um caminho de mão dupla: um conteúdo que seja capaz de furar a bolha mas também converse com quem está dentro dela.
“A reportagem é para dentro da bolha, para ir mais a fundo com quem já está iniciado nesse universo. As entrevistas são mais para furar essa bolha, porque de fato têm repercutido na grande imprensa”
Todos os textos da revista, com exceção das colunas do advogado Murilo Nicolau, são escritos por Filipe e Anita, com uma linguagem, segundo eles, desenvolvida a partir de extensas pesquisas junto ao público-alvo.
A abordagem solta e literária remete ao modelo do “maconheiro clássico dos anos 1990”, diz o empreendedor, com inspiração em textos de revistas como Playboy, New Yorker e High Times — publicação norte-americana surgida em 1974, ligada à então contracultura da maconha (nas redes, o conteúdo é mais rápido e breve, com destaque para frases impactantes).
“Aquilo era uma mensagem para o mundo e representava um progressismo. É isso que a gente pensa, é isso que a gente é. A nossa essência é ser a referência de informações para as nossas rodas. Esse tipo de olhar não existia no Brasil ainda”
Diferentemente das entrevistas, as reportagens tratam de temas mais internos do setor, enfocando, por exemplo, gente que cultiva a cannabis legalmente no país ou levantando uma discussão sobre a parentalidade psicodélica — mães e pais que usam e combatem o preconceito contra as substâncias.
Segundo Filipe, a repercussão vem ajudando a Breeza a passar sua mensagem de forma positiva. Essa recepção se traduz em parcerias comerciais com marcas como a Bem Bolado, referência no mercado de seda, e a Philip Morris, gigante da indústria do tabaco.
Entre os projetos da empresa, está o Guia da Boa Breeza, campanha recente com informações históricas e científicas sobre redução de danos no uso de substâncias psicodélicas. O projeto tem apoio da Philip Morris e deve virar um ebook sobre o tema às vésperas do Carnaval de 2025.
Em breve, a Breeza deverá ter um estande só dela na segunda edição da ExpoCannabis, evento sobre o universo da maconha agendado para os dias 15 a 17 de novembro, em São Paulo. A expectativa é que a feira ajude a alavancar ainda mais a popularidade da revista digital.
O veículo vem conseguindo, segundo os sócios, aumentar seu público mês a mês. Hoje, são cerca de 15 mil leitores mensais no site e um total de 12 mil ouvintes divididos entre todos os episódios do podcast.
O Instagram é um pouco mais complicado, diz Filipe, já que a rede esconde as postagens do perfil por tratar de temas relacionados às drogas. Mas há picos consideráveis. No mês de maio, por exemplo, mais de 1,8 milhão de pessoas acessaram a página. Um post sobre a entrevista com Luana Piovani chegou a quase 60 mil curtidas.
Além dos três sócios e do colunista Murilo Nicolau, que atua também como advogado da empresa, a Breeza conta com freelancers, para a parte comercial, de design, edição de áudio, tecnologia, administração e contabilidade.
Mesmo separados pelo Oceano Atlântico, Anita e Filipe avaliam que têm conseguido se organizar e dividir bem as atividades entre as obrigações jornalísticas administrativas.
E se a pauta da cannabis hoje parece politicamente estagnada no Brasil, tudo pode mudar de uma hora para outra, diz Anita, com possíveis decisões sobre a liberação do cultivo, do uso industrial ou a fabricação de medicamentos à base da planta por farmácias de manipulação.
Ainda assim, ela vê esse mercado da cannabis ainda um tanto cru no país, com o setor de mídia longe de ser prioridade para investimentos:
“Tem empresa ganhando dinheiro, mas não é a realidade da maioria. Então eles estão ali segurando investimento, e as pessoas não têm essa visão de que investir em mídia é importante. É tudo muito amador ainda”
Um dos desafios é convencer potenciais anunciantes dos mais diversos setores — da alimentação à moda e maquiagem — que eles também flertam com o público canábico. Ainda assim, há razões para otimismo. Segundo Filipe, a revista já tem lucro líquido garantido para o final do ano.
O jornalista está totalmente dedicado à Breeza, e manifesta uma visão positiva da evolução da revista frente à missão de furar a bolha em torno do tema:
“É uma mídia que começou independente, raiz — mas já está atraindo a atenção, inclusive das marcas.”
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