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Ela deixou a estabilidade do emprego para perseguir o sonho de montar sua própria queijaria

Pâmela Carbonari - 16 dez 2024
Martina Sgarbi, fundadora da Qjo Martina (reprodução Instagram).
Pâmela Carbonari - 16 dez 2024
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Em 2016, Martina Sgarbi não se sentia bem. Tentava manter uma vida saudável, mas ainda assim seus exames anuais mostravam níveis insatisfatórios de colesterol, triglicérides e afins. “Eu gastava todo meu dinheiro na farmácia, não é possível!”, lembra. 

Ela decidiu se dedicar mais a fazer a própria comida, de maneira saudável. E resolveu se aventurar produzindo queijo – um alimento presente em sua memória afetiva desde o tempo em que seu avô ia comprar na feira e, ao ver a neta comendo com gosto, a chamava carinhosamente de “ratinha”.

Embalada por essa lembrança, Martina partiu em 2017 para fazer um curso em Serro, cidade mineira famosa por sua variedade de queijo. Na volta, ela aproveitou que os pais têm um sítio na beira da Represa de Guarapiranga, em São Paulo (SP), construiu uma câmara de maturação natural “debaixo da goiabeira da mamãe”, pegava leite na cidade vizinha de Embu-Guaçu e começou a “brincar de fazer queijo”.

A brincadeira foi ficando séria. Martina fez outros cursos e, em 2018, inscreveu o Cremoso, o único queijo que produzia até então, na quarta edição do Prêmio Brasil de Queijos Artesanais. Surpreendeu-se com a medalha de bronze – e percebeu que um novo caminho se descortinava em sua vida.

ELA LARGOU O EMPREGO E FOI FAZER CURSOS NA EUROPA PARA PERSEGUIR O SONHO DE PRODUZIR QUEIJOS DE ALTA QUALIDADE

Em 2019, Martina abandonou definitivamente o mundo corporativo. Deixou o cargo de gerente financeira na grife de enxovais Trousseau, onde havia trabalhado por 20 anos, e viajou para a França e a Itália a fim de mergulhar em duas das culturas queijeiras mais tradicionais do mundo. 

Lá, fez cursos na Maison Mons, no Vale do Loire, e no Italian Culinary Institute, na Calábria. Aprendeu a fazer queijos a mão, conheceu caves em túneis abandonados repletos de queijos, descobriu maturações e inúmeros processos de produção artesanal diferentes.

Ao voltar ao Brasil, ela estava determinada a viver de sua paixão. A empreendedora realizou seu sonho e hoje está à frente da Qjo Martina

“Antigamente, eu ficava atrás de um computador ‘fazendo números’ dos outros. Agora, quero ser feliz com o que eu faço – e eu fico feliz fazendo queijo”

Os produtos da Qjo Martina estão à venda no site e no Whatsapp. Martina diz que, no momento, seus principais clientes são lojas de vinhos e empórios, que oferecem os kits e tábuas de degustação com queijos fracionados que ela e sua única funcionária montam. 

Além disso, ela fornece produtos para eventos e para quem quer que queira consumir queijos artesanais – “alimentos vivos e saudáveis”, como define. Os preços variam de 70 reais o quilo do Frescal (queijo fresco, com sabor natural do leite) a 196 reais o quilo do Giggio (de inspiração italiana, com aroma frutado e notas de nozes).

NO COMEÇO, PARA SEGUIR A LEGISLAÇÃO, MARTINA INSTALOU SUA QUEIJARIA NO INTERIOR, MAS A DISTÂNCIA SE MOSTROU UM PROBLEMA

O caminho, porém, não foi simples. Na hora de criar sua queijaria na capital paulista, Martina esbarrou nas limitações da legislação: não conseguiu se enquadrar nas exigências do Serviço de Inspeção Municipal (SIM) nem nas do Serviço de Inspeção de Produtos de Origem Animal do Estado de São Paulo (Sisp).

Produtores artesanais viam essas regras como entraves, determinações obsoletas que faziam sentido em um contexto industrial e para um público consumidor desinteressado por produtos regionais. Para obter o Sisp, por exemplo, Martina deveria produzir pelo menos 50% do leite usado em seus queijos. 

Variedades produzidas pela Qjo Martina.

Como o sítio dos pais não tinha vacas, ela precisou de outra solução para transformar seu sonho em realidade. Mapeou regiões ao redor da capital enquanto, paralelamente, engrossava o coro dos queijeiros artesanais, atuando para que a lei fosse alterada.

“Eu fiz uma lista de cidades próximas de São Paulo para onde poderia levar a produção e acabei escolhendo Boituva, a 120 quilômetros. Um amigo tinha um sítio lá, onde faz iogurte, tudo regularizado pelo SIM de Boituva. Então uma parte do laticínio ficou com ele e a outra, comigo.”

Uma hora bateu o cansaço. Foram mais de quatro anos indo e voltando duas vezes por semana, de São Paulo até o sítio, de Boituva para casa. Martina queria uma forma menos desgastante para continuar trilhando esse sonho. Fora os custos embutidos na distância. 

“Eu fazia 800 litros por semana, o que dava uns 400 quilos por mês de queijo. E eu sempre no vermelho, a conta nunca fechava! Era custo com aluguel, gasolina, revisão do carro…”

Até que a mudança na lei facilitou o processo para Martina e outros pequenos produtores. Regulamentada em 2022, a legislação atendeu antigos pedidos das queijarias artesanais, como o uso de leite cru e o aumento do limite diário de 300 para 1 500 litros (o que rende cerca de quatro toneladas de queijo mensais). Isso permitiria que eles crescessem e ainda se enquadrassem na categoria de artesanais.

“Não precisa mais ter leite próprio: posso fazer 100% do meu queijo com leite de terceiros”, comemorou Martina. Com essa nova realidade, ela decidiu voltar a São Paulo.

PRESTES A INAUGURAR SEU ESPAÇO NA CAPITAL, ELA PLANEJA INSERIR A QUEIJARIA NO POLO DE ECOTURISMO DE PARELHEIROS

Martina voltou para onde teve suas primeiras experiências na fabricação de queijo. Começou a construir sua queijaria no sítio da família. Conseguiu a licença prévia e acredita que, no começo de 2025, tudo esteja pronto para iniciar a produção em São Paulo.

“Estive no Palácio dos Bandeirantes [sede do governo paulista] com o Secretário de Agricultura, Guilherme Piai, e ele pediu para ser convidado para a inauguração. Quer estar lá. Afinal, é a primeira queijaria da capital de São Paulo”, conta, orgulhosa. E prossegue:

“Por enquanto, continuo me virando em Boituva porque preciso seguir fazendo para ter uma renda. Estou fazendo uma vez por semana, 300 litros, o que dá 120 quilos de queijo por mês. Não é ‘nada’, mas agora pelo menos estou pagando as contas”

A ideia para o futuro, quando estiver regularizada, é dobrar a produção e expandir para outros serviços, mantendo o queijo no centro do negócio. Martina aposta na harmonização de um queijinho com turismo. “Eu bati na porta da CAE, a Casa da Agricultura Ecológica, em Parelheiros, apresentei o projeto, eles adoraram”, diz. “Vou fazer parte do Polo de Ecoturismo de Parelheiros.”

Parelheiros é a região no extremo sul de São Paulo onde fica a Represa de Guarapiranga. Localizado a 37 quilômetros do centro da cidade, uma viagem de mais de uma hora de carro, o distrito representa um lado da metrópole pouco conhecido no resto do Brasil, com aldeia indígena, área de proteção ambiental, trilhas e cachoeiras. Nos últimos anos, o local vem investindo na agricultura sustentável e no ecoturismo. 

De olho nesse movimento, Martina pretende fazer da área em torno da queijaria um espaço de lazer para amantes de queijos, turistas curiosos e paulistanos curtindo um dia de folga. Algo difícil de imaginar em São Paulo até pouco tempo atrás.

“Quero receber as pessoas nos fins de semana, fazer brunch ou day use, fazer eventos relacionados a queijo, a harmonização, dar cursos, aproveitar as pessoas que poderão vir de barco do Yacht Club Santo Amaro ou do Clube de Campo do Castelo [empreendimentos de alto padrão às margens da represa]. Não quero ter minha renda só com a produção, mas com esses serviços relacionados ao queijo.”

A FALTA DE TRADIÇÃO QUEIJEIRA DE SÃO PAULO É VISTA COMO UMA VANTAGEM E UM ESTÍMULO À INOVAÇÃO

De maneira geral, diz Martina, a qualidade do queijo brasileiro melhorou bastante nos últimos anos. E muito disso é resultado de experiências compartilhadas no setor. 

“É uma dinâmica super colaborativa, a pessoa não fica isolada no cantinho dela, nós aprendemos constantemente uns com os outros”

Essas trocas são úteis inclusive para situações mais práticas da labuta. “Até na hora de comprar material: por exemplo, embalagem. Na única empresa que faz papel perfurado, aquele em que o queijo respira, o pedido mínimo é de 50 quilos de papel, o que dá 20 mil reais. Eu não vou gastar 20 mil em papel, então fazemos uma compra coletiva.”

Atualmente, Martina também atua como tesoureira do Caminho do Queijo Artesanal Paulista, uma iniciativa que uniu queijarias artesanais do estado para mostrar ao público que existem bons queijos feitos em São Paulo. Ela tem uma posição alinhada com a do grupo, que defende que os produtores paulistas costumam apostar mais na inovação se comparados aos de outros lugares do país.

A falta de tradição queijeira em São Paulo não é uma desvantagem, pois, além de não restringir os profissionais a um produto específico, estimula os queijeiros artesanais a buscarem novas receitas. “Os 16 produtores envolvidos no projeto oferecem mais de cem tipos de variedades diferentes”, informa o site do projeto. “Há queijos de vaca, búfala, cabra, ovelha e mistos, em variedades frescas, curadas (em câmaras de maturação ou cavernas subterrâneas), temperadas e feitas à base de leite cru ou pasteurizado.” Martina complementa:

“O meu Marmoratto, por exemplo, é um queijo que eu lavo em uma cachaça envelhecida e urucum. Eu criei esse queijo, não existe em outro lugar. Gosto muito também do meu Flora Azul, que é um desafio. Tem mofo, tipo gorgonzola, mas não tem muito sal, então você sente o gosto do mofo”

Dos nove queijos diferentes que ela produz, o Cremoso, aquele que começou tudo, é o mais reconhecido. Extremamente macio, úmido por dentro e com casca crocante, ele ganhou duas medalhas de bronze no Prêmio Queijo Brasil.

Para Martina, mais do que medalhas e premiações, a maior satisfação dessa nova vida é ver as pessoas se deliciando com seus queijos. “Falam coisas como ‘não acredito, você que fez? Isso é maravilhoso, diferente!’…”, festeja.

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