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Como uma chocolateria artesanal de Belém resiste à falta de infraestrutura e impulsiona a economia ribeirinha

Aline Scherer - 27 fev 2025 Aline Scherer - 27 fev 2025
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Em novembro deste ano, Belém do Pará receberá a COP 30, a Conferência das Partes sobre Mudanças Climáticas da ONU. Durante o encontro, líderes e negociadores climáticos de quase 200 países vão passar quase duas semanas, entre os dias 10 e 21, discutindo medidas para frear o aquecimento global.

Em 15 minutos de lancha rápida da capital paraense, chega-se à Ilha do Combu, ocupada por cinco comunidades ribeirinhas. Ali, no Igarapé do Combu fica a fábrica de chocolates agroflorestais e orgânicos Filha do Combu e, mais recentemente, o Café da Dona Nena. 

Chefes de Estado como o presidente Lula e o presidente da França, Emmanuel Macron, já passaram por ali, entre outras figuras ilustres. “E neste ano a gente recebeu mais pessoas, averiguando o espaço para visitações na COP 30, vendo o que a gente tinha para oferecer”, conta Izete Santos Costa, 60, mais conhecida como Dona Nena, fundadora da Filha do Combu.

O passeio padrão inclui uma volta entre os quase 3 mil cacaueiros nativos, entre os pés de cupuaçu e açaí. E, claro, um momento para compras na loja de produtos amazônicos junto à Casa do Chocolate da Dona Nena, que também funciona como um museu. 

O CACAU CULTIVADO EM SISTEMA AGROFLORESTAL É A MATÉRIA-PRIMA PRINCIPAL DOS PRODUTOS DA FILHA DO COMBU

A estrutura montada, a partir de 2017, pela fundadora da Filha do Combu em parceria com o CEO da empresa, Mário Carvalho, vem estimulando o desenvolvimento socioeconômico da ilha.

A partir dali, surgiram restaurantes e outros comércios, e foram criadas duas associações de barqueiros no Igarapé do Combu, o que beneficiou também os moradores, com a melhoria do serviço de transporte. “Antes não havia nenhuma [associação na ilha]. Elas ficavam somente na margem”, diz dona Nena. 

Para quem não sabe: um igarapé é um pequeno curso de água típico da região amazônica, geralmente estreito e raso, servindo como importante (e muitas vezes única) via de locomoção fluvial para comunidades ribeirinhas. 

O sistema agroflorestal contém árvores frutíferas, como cupuaçu, banana, araçá, taperebá e pupunha, plantadas em consórcio, nos espaços disponíveis entre o cacau nativo, para diversificar as receitas, já que são insumos sazonais. Como todo o cacau de Dona Nena não dá conta de toda a demanda da fábrica, ela compra o cacau da comunidade, cultivado em condições semelhantes. 

“A história do cacau amazônico vem desde a Cordilheira dos Andes, no Peru, Chile… Através das correntes, as sementes chegaram nas áreas baixas, de várzea, e foram se adaptando. Então, por isso que é natural. Quando a gente chegou, [o cacau] já tinha sido plantado pela natureza, ou por outro, a gente não sabe. E a gente o mantém”

Dona Nena e Mário se conheceram em 2012, por intermédio de uma prima dele. Doutor em Administração e professor universitário, ele começou a atendê-la em projetos de consultoria júnior com seus alunos. 

Além da expertise de gestão, Mário já tinha uma empresa de embalagens, a Ornatos, e experiência como guia de turismo – complementos que ajudaram a fortalecer a marca Filha do Combu e a alavancar o negócio. 

Eles abriram uma empresa de turismo, a Vida Cabocla, que organiza os passeios até a ilha. E são sócios da loja filial, dentro da cidade, em Belém, e de uma segunda marca de chocolate, a Saudoso Cacau, em sociedade também com a prima que apresentou os dois, a partir dos cacaueiros do sítio dela. 

UMA FORMAÇÃO EM CHOCOLATERIA NO RIO GRANDE DO SUL AJUDOU DONA NENA A INCREMENTAR SUA EMPRESA

Em 2017, quando os negócios estavam crescendo, Dona Nena sentiu a necessidade de se profissionalizar ainda mais. Colocou Mario para assumir a gestão da empresa e, ao longo de todo o ano de 2018, passou uma semana por mês em Canela, no Rio Grande do Sul, fazendo um curso de chocolatier. 

“Viagens caras, complicadas e o frio. Peguei todas as estações. A pior foi sete graus”, diz dona Nena, desacostumada às baixas temperaturas do Sul. “Mas depois levei minhas filhas para ver as luzes de Natal. Foi bem legal.”

Até então, o carro-chefe da Filha do Combu era um brigadeiro de cacau (apesar de a sobremesa ser tradicional em todo o Brasil, Dona Nena afirma ter a melhor receita, desenvolvida em parceria com um chef de Belém). 

A formação em Chocolataria permitiu aumentar seu portfólio: 

“Eu me formei na categoria bean-to-bar, que quer dizer ‘da floresta à barra’. Além das barras, realizei meu sonho de fazer os meus bombons com a inclusão de algumas frutas daqui da região, como o cupuaçu, a castanha, o cumaru, o bacuri”

Como um produto menos perecível que o brigadeiro, as barras e bombons de chocolate funcionam melhor como um suvenir (de consumo rápido, claro), para exaltar a boca dos turistas.

Mario exalta o legado de amor ao cacau que dona Nena recebeu do sogro, assim como as técnicas que ela também aprendeu com os pais. “Todo esse conhecimento tradicional que se tem de fazer o chocolate rústico está no branding da Filha do Combu.”

Em 2019, a marca lançou uma linha de barras de chocolate com teor de 55% a 100% de cacau orgânico, e o faturamento dobrou de tamanho em apenas um ano. A produção saiu de dentro de casa para um outro imóvel, transformado em fábrica.

A FALTA DE ÁGUA POTÁVEL AFETA AS COMUNIDADES RIBEIRINHAS E OS NEGÓCIOS NA REGIÃO

Dona Nena diz que, quando começou os negócios, por volta de 2006, havia somente um restaurante na Ilha do Combu, hoje são cerca de 60 comércios, a maioria restaurantes, cada um com pelo menos duas pessoas trabalhando. 

Além disso, o negócio mobiliza especialistas locais em manejo de floresta nativa, para a manutenção dos pés de cacaus, e de outras árvores frutíferas, bem como a produção de licores e artesanato vendidos na loja. As encomendas são feitas pela empresária para a associação de mulheres ribeirinhas, da qual também faz parte, e de outras regiões do Pará. 

Para viver e empreender na Ilha do Combu, é preciso driblar obstáculos. Um deles é a falta de água potável. Dona Nena reclama:

“Aqui a gente precisa comprar toda a água para beber, para cozinhar… Hoje, usamos a do rio somente para limpeza e para tomar banho, porque não tem condição de comprar para tudo… Mas a maior parte da água é comprada. Ou do poço, ou mineral” 

A água do rio, que costumava ser potável, perdeu sua qualidade devido ao crescimento populacional de Belém. O problema afeta toda a população ribeirinha e, para os negócios, gera riscos e eleva o custo de produção. 

Essa situação também impacta a logística. O açaí, por exemplo, exige muita água para a higienização, então é um produto que a empresa não consegue beneficiar totalmente na Ilha

PARA GARANTIR SEGURANÇA ENERGÉTICA, É PRECISO IMPROVISAR

Serviços públicos de infraestrutura apresentam outros desafios que precisam ser resolvidos pelos empreendedores locais: 

“Água, energia, telefonia, internet… Em alguns momentos, a gente consegue ficar bem, mas oscila muito”, diz Mário. “A energia, por exemplo: temos problemas com a distribuidora e outros parceiros nossos, também. É cara e de baixa qualidade.”

Para aumentar a segurança energética, a Filha do Combu montou um sistema de energia solar com oito baterias. “Tudo importado, e com dólar alto, a gente sofre muito… Outras soluções são muito pensadas para a cidade, e não atendem a área rural. Isso vem do atraso tecnológico no Brasil”

Mário acredita que a força dos rios e a maré (que todo dia sobe três metros de altura) poderiam estar gerando energia para a ilha, se fossem aplicados a tecnologia e o investimento necessário. E se dedica a pensar em formas de aumentar a segurança energética do seu negócio: 

“Estou bolando um desidratador [a partir] do que vi na internet, trabalhando com chapas de metal para ajudar a secar o cacau com a transferência de calor… Precisamos de apoio, mas se eu for explicar isso para o Secretário, para não sei quem, ele não conhece, não tem sensibilidade para isso…”

Um sistema de captação da água da chuva foi instalado na fábrica recentemente, mas ainda não foi possível utilizá-lo porque a chuva tem sido pouca, mesmo durante o chamado “inverno amazônico” (período de chuvas mais frequentes e intensas na região, que costumava acontecer entre dezembro e maio).

AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS PODEM OBRIGAR A FILHA DO COMBU A FAZER AJUSTES DE FORNECEDORES E PORTFÓLIO

Com formação em técnica florestal e de técnica de enfermagem, as filhas de dona Nena, de 37 e 40 anos, são funcionárias da empresa. Uma coordena a cozinha quente, dos doces e os licores; a outra trabalha no caixa.

A mãe e empreendedora diz que sonha em montar um mini-auditório para ministrar cursos de chocolataria para a comunidade, e pessoas de fora que queiram participar de uma vivência ribeirinha. 

“É um local lindo, maravilhoso, as pessoas usam muito o espaço aqui para fotos e coisas da COP 30…. Às vezes eu me sinto até um pouco usada, porque temos um trabalho realmente de sustentabilidade, e consegui abrir a porta para o turismo, mas falta muito apoio…” 

Negócios sustentáveis como a Filha do Combu, que ajudam a manter a floresta em pé, são uma força importante. Precisam de financiamento climático, ou seja, recursos para que consigam continuar se adaptando aos efeitos das mudanças do clima, como a falta de água. Temas que devem ser prioritários na COP 30. 

Enquanto o auxílio não vem, o jeito é contornar os problemas e prestar atenção nos sinais que a natureza oferece. Mário afirma: 

“Eu tenho identificado árvores que estão conseguindo reagir ainda bem e outras que estão sentindo mais os dois ciclos de muito calor, 2023 e, bem pior, 2024, o ano mais quente do planeta. A gente vai ter que se adaptar, ajudar a natureza de alguma forma, entender o que a árvore está sentindo”

Por conta dos impactos do aquecimento global, é possível que a Filha do Combu seja obrigada a rever seus fornecedores e portfólio:

“Talvez a gente tenha que, esse ano, começar a comprar cacau de outros produtores um pouco mais distantes, fazendo referência à origem, lançando uma linha de outra região”, diz Mario. “E para não sobrecarregar a produção, ser mais criativo nos doces regionais, nas outras frutas, licores…” 

 

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