“Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanto coisa, tudo…”. Foi assim que o míope Miguilim, personagem de Guimarães Rosa que vivia nos sertões de Minas Gerais, descreveu as maravilhas que enxergou pela primeira vez, ao colocar óculos, na obra “Campo de Geral”.
O médico Celso Takashi Nakano, de 46 anos, sabe exatamente o que significa a poesia viva de presenciar uma cena dessas. Desde 2016, quando fundou a Associação Médicos da Floresta (AMDF), ele leva para as populações das áreas mais remotas do país a oportunidade de recuperar a visão. Especialista em catarata – lesão ocular que, se não for tratada, pode causar cegueira, Takashi, como é conhecido, decidiu se juntar a um grupo multidisciplinar e transportar seus bisturis, lentes e óculos para a população indígena da Amazônia que não tem acesso à saúde.
A organização, que iniciou sua trajetória no Parque Indígena do Xingu, atendeu etnias em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Roraima, Maranhão, Amazonas, Pará e Bahia. Entre os povos isolados, estão os sanumás e os yekuanas, na Terra Indígena Ianomâmi. Em pouco mais de cinco anos de atuação, a Médicos da Floresta, que capta recursos a partir de doações de pessoas físicas e empresas, fez mais de 9 mil consultas, distribuiu mais de 500 óculos, e realizou mais de 300 cirurgias.
Graduado pela Universidade de São Paulo (USP), Takashi conta que, quando ainda estava na residência, no Hospital das Clínicas, foi tocado pelas profundas desigualdades da sociedade brasileira e pela importância de atendimento de saúde para a população mais carente. “Meu objetivo profissional vai muito além da oftalmologia e da cirurgia de catarata. Hoje, penso muito mais em saúde pública. Justamente porque não dá para fechar os olhos para as condições da população”, diz ele.
Na entrevista a seguir, Takashi, que é filho de um também médico oftalmologista, conta por que decidiu sair do conforto dos consultórios envidraçados na capital paulista, para trocar olhares e saberes com os povos nativos do país.
“Aprendo muito mais com eles do que eles comigo. O que eu vou ensinar para um indígena que cuida da família bem, vive de maneira sustentável na floresta, em harmonia? Tento apenas levar a saúde, que é um direito universal”.
NETZERO: De onde veio a idéia de uma organização médica para atender a população indígena?
Takashi: Dentro da própria universidade tive boas oportunidades de atuar na parte educacional, ministrando aulas, cursos e congressos, no Brasil e fora. Tive a sorte de, bem no início da carreira, ser relativamente conhecido. Por conta dessa exposição, uma organização chamada Expedicionários da Saúde me convidou como voluntário, pois eu era especialista em casos difíceis e delicados e tinha um perfil mais aventureiro. Não é todo mundo que fica confortável de operar no meio de uma barraca na Amazônia. Logo na primeira expedição cirúrgica, gostei demais. E, por familiaridade com trabalho em grupo e liderança, fui chamado para coordenar o setor de oftalmologia. Fiquei cerca de cinco anos na função, viajando por várias regiões, principalmente da Amazônia brasileira, onde fui conhecendo pessoas, lideranças indígenas e servidores da saúde indígena do Ministério da Saúde. Nesse período, ganhei uma visão mais sólida e experiência, para entender quais as reais necessidades das regiões remotas. O grande desafio era levar a técnica dos grandes centros cirúrgicos para uma região isolada. Foi um desafio. Criei um relacionamento com os principais laboratórios do mundo para obter apoio, empréstimos de equipamentos e insumos. A experiência me ajudou e motivou a criar a Associação Médicos da Floresta, tempos depois.
Conte um pouco sobre esta motivação que você sente. Isso sempre esteve presente em você ou é algo que surgiu com o tempo e suas experiências?
Trata-se de algo que foi sendo construído. A maioria dos médicos do Brasil se forma nos grandes centros. Existe uma má distribuição. Há grandes vazios de médicos, principalmente para as regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte. Durante a formação, não temos essa vivência. Não temos noção da real carência que existe. Por outro lado, na residência no Hospital das Clínicas, tratamos muitas pessoas mais carentes, pelo SUS, às vezes que vieram de muito longe. Estamos inseridos em um ambiente de atendimento gratuito. Esta experiência me agregou bastante.
Saímos com esse desejo de ajudar o máximo possível de pessoas. Mas, foi na minha primeira expedição, quando tive contato com uma realidade totalmente diferente, observei e entendi os desafios, que a mentalidade virou outra.
Como foi essa virada?
Meu objetivo profissional passou a ir muito além da oftalmologia e da cirurgia de catarata. Hoje, penso muito mais em saúde pública. Justamente porque não dá para fechar os olhos para as condições da população brasileira, desde oculares até de saúde como um todo. São pessoas que não têm nenhum acesso à saúde. Os desafios para os governos proverem atendimento em um país tão vasto, com tantas desigualdades, são enormes. Organizações como a Médicos da Floresta e a Expedicionários se complementam e ajudam a Secretaria Especial de Saúde Indígena nesta missão. Nosso trabalho é tentar amenizar essas discrepâncias regionais e sociais. Eu não tinha essa visão. Mas, hoje, ela é muito forte. Virou a chave. Tenho muito mais responsabilidade com a saúde pública do que com minha área de origem.
Como você decidiu criar a Médicos da Floresta?
Quando estava na outra organização, fui entendendo que existem várias regiões e realidades diferentes, principalmente nos locais mais isolados. Comunidades de 50, 100, 150 habitantes, muito pequenas para justificar uma mobilização de uma equipe gigantesca e de um centro cirúrgico. Estas 50 pessoas que moram numa comunidade, elas nunca vão sair de lá. Tem muitas assim no país: se não formos até eles, nunca vão ter atendimento. Eu acreditava que tendo um pouco mais de leveza, estruturas e equipes menores, mais sustentáveis, pois até financeiramente o custo é menor, era possível ir até esses locais. Antes estava inserido em um modelo super eficiente, só que maior, onde não conseguiria levar o modelo para regiões muito isoladas. Essa foi a premissa para criar uma nova organização.
De que forma funciona este modelo?
Em nossas missões, vamos até as aldeias, atendemos todo mundo, e trazemos os pacientes com diagnóstico de cirurgia para uma cidade próxima, com alguma estrutura já existente, em vez de operar na floresta, o que é algo muito pesado e oneroso. Com menos verba, conseguimos fazer as mesmas cirurgias. É mais barato realizar as cirurgias em uma cidade satélite do que mobilizar um hospital para o meio da floresta.
Temos a expectativa de atender todas as aldeias do Xingu, que é do tamanho da Bélgica e onde moram 9 mil pessoas. É muito espalhado. Tem que ir de barquinho, avião, caminhonete, de aldeia em aldeia. Já cobrimos cerca de 60% do território. A tendência é chegar a quase 100% no ano que vem.
Ao longo dos anos, surgiram outras demandas. Como fizemos um trabalho reconhecido, até pelo próprio Ministério da Saúde, lideranças indígenas de todo o país passaram a convocar nossa ajuda, principalmente em regiões muito isoladas. Além da oftalmologia, levamos pediatria, odontologia, clínicos de diversas especialidades, a partir das demandas locais. Formamos equipes específicas, de voluntários, para combater determinadas enfermidades, como verminoses e doenças de pele, por exemplo.
Conte um pouco como é a troca de experiências com os indígenas e como isso te transforma.
Tenho certeza de que mudei como pessoa. A gente acaba convivendo em lugares totalmente diferentes do que vivemos nas cidades, com poucos recursos, desde água potável até comida e bens de consumo. A gente começa a valorizar mais a conversa, estar presente com os amigos de trabalho, e os próprios habitantes. Mesmo que os contatos sejam rápidos e exista a barreira da linguagem, isso acaba te transformando. Experimentamos alimentos, danças, pinturas no corpo, ouvimos histórias. É uma troca muito grande. Tenho certeza de que a gente aprende muito mais com eles, do que eles com a gente. Quase todo mundo que participa das ações tem esse sentimento, até parece ensaiado. O que eu vou ensinar para um indígena que cuida da família bem, vive de maneira sustentável na floresta, em harmonia? Qual o conhecimento da cidade que é tão melhor do que eles têm hoje? O que tentamos trazer é a saúde, que é um direito universal. Mas, no final das contas, na balança, saio com mais aprendizado do que eles.
E para o futuro, quais os planos da organização?
Existem regiões do Brasil que não tem água potável. Pode parecer impossível que na Amazônia, com um monte de rios, chuvas, não tenha água de qualidade. Mas não é assim. Há locais em que só existem alguns riachos, que podem estar contaminados. Estamos investindo para levar água potável para essas comunidades, cavar poços, prover placas fotovoltáicas para bombas puxarem a água. Sem água de qualidade, não se tem nada, não adianta tratamento médico de qualidade. Essa carência gera desnutrição e provoca diarréia, verminoses e muitas doenças. O projeto é fruto de uma maturidade que fomos adquirindo ao longo do tempo, vivenciando as dificuldades, mudando rotas conforme abrangemos mais realidades. Nas terras Ianomâmis, por exemplo, é difícil achar água boa. Além disso, criamos um projeto para identificação de tracoma [doença inflamatória ocular de maior incidência em locais sem saneamento, que pode levar à cegueira]. Capacitamos 15 enfermeiros que trabalham no distrito de saúde Ianômami para identificar a doença. Não existiam capacitações havia anos, pois na maior parte do Brasil não tem tracoma. Insistimos nisso e identificamos alta incidência de tracoma na Amazônia. Só essas 15 pessoas realizaram cerca de 10 mil exames. Agora estamos organizando uma força-tarefa para tratamento das pessoas que tiveram diagnóstico positivo. Em áreas urbanas e rurais mais acessíveis o tracoma foi erradicado, mas ainda existem bolsões com alta incidência da doença. A OMS estabelece como meta a erradicação do tracoma – e o Brasil está longe disso.
O bagaço de malte e a borra do café são mais valiosos do que você imagina. A cientista de alimentos Natasha Pádua fundou com o marido a Upcycling Solutions, consultoria dedicada a descobrir como transformar resíduos em novos produtos.
O descarte incorreto de redes de pesca ameaça a vida marinha. Cofundada pela oceanógrafa Beatriz Mattiuzzo, a Marulho mobiliza redeiras e costureiras caiçaras para converter esse resíduo de nylon em sacolas, fruteiras e outros produtos.
Aos 16, Fernanda Stefani ficou impactada por uma reportagem sobre biopirataria. Hoje, ela lidera a 100% Amazonia, que transforma ativos produzidos por comunidades tradicionais em matéria-prima para as indústrias alimentícia e de cosméticos.