Nem só de futebol vive o Catar. Depois de se tornar uma das escolhas mais contestadas para a sede da Copa do Mundo de 2022, agora há muitos debates questionando o desrespeito do país aos direitos humanos, segurança do trabalho, diversidade e ainda colocando em dúvida as ações de sustentabilidade propostas pela Fifa e pelo Comitê Supremo para Entrega e Legado, grupo responsável pela organização do torneio no país.
Todos esses assuntos são pautas relevantes na agenda de ESG.
A poucos dias da final do mais importante torneio de futebol do mundo, o que foi posto em prática e o que ficou só no papel?
A PRIMEIRA COPA CARBONO NEUTRO. SERÁ?
Em grandes eventos como a Copa do Mundo, é comum haver um aumento significativo na quantidade de emissão gases de efeito estufa na atmosfera. Isso vem da construção de estádios (7 novos para este torneio), maior uso de energia elétrica e de transportes (aviões, carros e ônibus usados nos deslocamentos de torcedores, jogadores, imprensa).
Para 2022, a organização e a Fifa prometeram a primeira Copa do Mundo da FIFA neutra em carbono, compensando ou eliminando as emissões que contribuem para o aquecimento global. A estimativa feita é de que o Mundial gere 3,6 milhões de megatoneladas de CO2 na atmosfera, considerando o período de abril de 2011, quando as preparações para o torneio começaram, até junho de 2023, após o torneio, e usa como base o Protocolo GHG, referência internacional para medir gases do efeito estufa.
A construção dos sete estádios gerou 644.000 toneladas de CO2, incluindo 438.000 toneladas apenas para o temporário Estádio 974, feito com a montagem de contêineres (a arena colorida foi construída para a Copa e será desmontada logo após o torneio). Os números são da Fifa.
Várias iniciativas foram apresentadas para alcançar essa compensação: construção de estádios sustentáveis (que serão desmontados e terão os materiais doados a outros países); uso de fontes renováveis, como iluminação movida a energia solar nos estacionamentos dos estádios; criação de parques e áreas verdes perto dos locais de jogos, irrigados com água reciclada; além de incentivar o uso do transporte público, eliminando a necessidade de voos, e mudar 25% da frota de ônibus públicos para ônibus elétricos.
“O cerne dos nossos planos era oferecer alternativas ecológicas às opções de transporte tradicionais, o que ajudará no nosso objetivo de entregar a edição mais sustentável da Copa do Mundo da história. A transformação pela qual o Catar passou beneficiará sua população muito depois da Copa do Mundo, seja oferecendo alternativas de transporte acessíveis e sustentáveis ou incentivando diferentes opções que ajudarão o país a reduzir suas emissões de carbono”, disse Thani Al Zarraa, Diretor de Operações de Mobilidade do Comitê.
Na prática, foram 900 ônibus elétricos colocados nas ruas, a curta distância entre as cidades eliminou a necessidade do uso de aviões, e foi construído um viveiro, em que foram plantadas mais de 16 mil árvores e 679 mil arbustos de espécies acostumadas ao clima local. Mas ambientalistas questionam o cálculo feito pelo Comitê da emissão de gases total, prevendo falta de exatidão na compensação.
Um desses grupos é o Carbon Market Watch (CMW), organização sem fins lucrativos que trabalha em colaboração com a União Europeia. Ao examinar os planos dos organizadores, a CMW avaliou que as emissões projetadas, especialmente na construção dos sete estádios, “provavelmente foram subnotificadas”.
“As evidências sugerem que as emissões desta Copa do Mundo serão consideravelmente maiores do que o esperado pelos organizadores, e é improvável que os créditos de carbono adquiridos para compensar essas emissões tenham um impacto suficientemente positivo no clima”, disse Gilles Dufrasne, da CMW e autor da análise, divulgada pouco antes do início do torneio.
A avaliação é de que as emissões de carbono geradas nas obras dos novos estádios podem ser até oito vezes maiores do que os números divulgados pela organização.
TRANSPARÊNCIA: PONTO FUNDAMENTAL DA GOVERNANÇA
Quando falamos em governança, estamos falando de boas práticas de gestão. E elas incluem valores considerados chaves, como transparência e confiança. Dois pontos críticos da organização da Copa do Mundo.
Em seu relatório, o CMW ainda apontou dúvidas sobre a qualidade e a integridade ambiental dos créditos de carbono anunciados até agora pelo país. Isso porque um novo padrão foi criado especialmente para o torneio, questionando a credibilidade e independência da certificação.
A falta de transparência levanta questões também sobre os estádios. O comitê destaca que todos os estádios têm certificados de quatro a cinco estrelas no sistema de avaliação Global Sustainability Assessment System (GSAS), adotado pela Fifa para o Mundial e que avalia pontos como conectividade urbana, energia, uso da água e material usado.
O conflito de interesse estaria no fato de que esse sistema é administrado pela Organização do Golfo para Pesquisa & Desenvolvimento (GORD), órgão ligado à companhia de investimento Qatari Diar, que pertence à Autoridade de Investimento do Catar.
DIREITOS HUMANOS E SEGURANÇA DO TRABALHO
O Catar foi escolhido como sede da Copa do Mundo em 2010 em uma escolha cercada de questionamentos. Uma investigação de 2014 do jornal inglês The Sunday Times afirmou que o país árabe teria pago mais de US$ 5 milhões (R$ 25,7 milhões aproximadamente) em propinas para garantir apoio à sua candidatura, acusação o que o governo do país nega.
Sete anos depois, em 2017, a Fifa criou uma Política de Direitos Humanos comprometendo-se a adotar “medidas para promover a proteção dos direitos humanos” e “inclusive usando sua influência junto às autoridades relevantes”. Apesar de ser uma posição posterior à escolha do Catar, o órgão foi criticado por não realizar a devida diligência de direitos humanos, não considerar as preocupações com a discriminação que mulheres, pessoas LGBTQIA+ e outros enfrentam no país e não estabelecer condições para a segurança dos trabalhadores migrantes, este um ponto essencial da agenda ESG e principal alvo das críticas ao governo do Catar.
Foi só no final de novembro, com o torneio em curso, que Hassan al-Thawadi, secretário-geral do Comitê Supremo de Entrega e Legado do Catar, admitiu em uma entrevista que houve “entre 400 e 500” mortes de trabalhadores migrantes nos últimos 12 anos em obras relacionadas à Copa do Mundo.
O número divulgado pelo secretário ainda é muito inferior ao sugerido pela Anistia Internacional, de 15.021 mortes, e da apuração do jornal britânico The Guardian, que aponta a morte de 6.500 trabalhadores migrantes em obras da Copa. O principal questionamento leva em conta as estatísticas do Catar, que mostram que 15.021 estrangeiros morreram entre 2010 e 2019, mas sem detalhar idades, ocupações e causas. A imprecisão dos registros disponíveis torna impossível uma avaliação conclusiva.
A situação reflete ainda um dos principais desafios do setor da construção civil – além do controle e redução das emissões de carbono: a segurança dos trabalhadores. De acordo com números divulgados pela Associação Nacional de Medicina do Trabalho, a taxa de mortalidade no trabalho no Brasil é de 5,21 óbitos para cada 100 mil vínculos. Na construção civil, essa taxa chega a 11,76 casos para cada grupo de 100 mil pessoas. Uma tendência observada não só no Brasil, mas em todo o mundo.
ESG NOS ESPORTES: UMA AGENDA DE DESAFIOS
“O esporte, e principalmente o futebol, é provavelmente o melhor terreno comum que temos disponível para causar um impacto positivo na sociedade por meio do conceito de unidade, para testar e implementar tecnologias que possam melhorar a forma como cuidamos do ambiente e promover a boa governança em nossas instituições. É por isso que parece surpreendente que, pelo menos até agora, o investimento ESG tenha recebido tão pouca atenção nesta área específica”. O comentário de Luis Garcia Alvarez, gestor da carteira de ações, em entrevista ao MarketWatch, publicação do grupo Dow Jones, sobre falta de processos e iniciativas concretas aliando a agenda ESG ao Mundial traz uma reflexão que faz sentido avaliando o contexto dos últimos anfitriões do torneio.
O relatório elaborado pela Maplecroft, consultoria britânica de estratégica e de risco global, apontou que o nível de escrutínio sobre o perfil ESG do Catar foi muito mais intenso do que para os anfitriões anteriores, e isso devido a dois fatores principais: à morte de um número desconhecido de trabalhadores migrantes e à ascensão da pauta ESG.
Na avaliação, o perfil ESG geral do Catar (-3) é semelhante ao do Brasil (-3), melhor que o da Rússia (-2) e apenas um pouco atrás do da África do Sul (3). A Alemanha, com 5 pontos, se destaca entre os últimos anfitriões. O estudo aponta que grande parte do desafio para o Catar é, embora as violações dos direitos trabalhistas atraiam atenção e críticas internacionais, acelerar a implementação das reformas dos direitos trabalhistas, vista como oportunidade única para melhorar o legado do evento para o país.
A situação do Catar mostra a relevância da agenda ESG para grandes eventos, sejam esportivos ou de outros setores, e as mudanças que eles podem (ou poderiam) provocar. É o caso de festivais como o Rock In Rio, que há anos tem a sustentabilidade como item fundamental para a realização do evento. Esse alinhamento com o ESG, como avalia Roberta Medina, vice-presidente executiva do Rock in Rio, traz impacto tanto para a marca quanto para a sociedade.
“O Rock in Rio é um dos poucos eventos do mundo que detém a certificação ISO 20121 de sustentabilidade. Está no nosso DNA assumir a responsabilidade sobre o espaço que vivemos e acreditamos muito em usar a força do festival para seguir promovendo o desenvolvimento de impactos positivos para a sociedade. Por isso, desde 1985 que o festival assume um compromisso: o de sermos agentes ativos na construção de um mundo melhor e levarmos isso conosco para qualquer lugar”.
O bagaço de malte e a borra do café são mais valiosos do que você imagina. A cientista de alimentos Natasha Pádua fundou com o marido a Upcycling Solutions, consultoria dedicada a descobrir como transformar resíduos em novos produtos.
O descarte incorreto de redes de pesca ameaça a vida marinha. Cofundada pela oceanógrafa Beatriz Mattiuzzo, a Marulho mobiliza redeiras e costureiras caiçaras para converter esse resíduo de nylon em sacolas, fruteiras e outros produtos.
Aos 16, Fernanda Stefani ficou impactada por uma reportagem sobre biopirataria. Hoje, ela lidera a 100% Amazonia, que transforma ativos produzidos por comunidades tradicionais em matéria-prima para as indústrias alimentícia e de cosméticos.