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“Muitos funcionários endividados acabam forçando a demissão porque precisam do FGTS”, diz especialista em investimentos

Julia Moioli - 15 fev 2023
Alan Soares, fundador e CSO do Black Money.
Julia Moioli - 15 fev 2023
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A inclusão financeira real vai muito além de oferecer conta em banco ou acesso a crédito para funcionários. É o que defende o especialista em investimentos Alan Soares, fundador e CSO do Black Money, movimento que estimula o mindset inovador em empreendedores e jovens negros. “Para incluir, é preciso gerar autonomia”.

Reconhecido pela ONU como um dos 100 negros mais influentes do mundo, ele crava: “Não dá para ser uma empresa com DNA de simplesmente buscar o lucro e usar a pauta apenas para manter esse lucro – isso é ESG washing, diversity washing e todos os washings que quisermos utilizar”, diz ele. “O principal ponto do S do ESG é as empresas começarem a discutir como se resolve as iniquidades sociais.”

Na entrevista a seguir, Soares fala sobre a necessidade de as companhias reverem suas políticas de contratação para estimular a diversidade, reavaliarem sua política remuneratória para pagar todos os grupos de forma equânime e intercederem para oferecer aos funcionários linhas de crédito mais favoráreis que as do mercado, sob pena de perderem mão de obra.

*

NETZERO:

Como a inclusão financeira se insere no contexto de ESG das empresas?

ALAN SOARES:

Primeiro é importante esclarecer conceitos. Hoje em dia, grande parte do que o mercado chama de inclusão financeira está relacionado a oferecer educação financeira, que, na verdade, não é uma educação financeira verdadeira, mas uma educação de mercado. Nós precisamos diferenciar as duas coisas. Educação financeira é uma ferramenta de libertação – se não servir para libertar, não serve para mais nada. Já educação de mercado é uma educação que empresas, principalmente as financeiras, muitas vezes dão à população para torná-la escravizada ao sistema financeiro. Uma artimanha para induzir a acreditarem que é possível ganhar dinheiro fácil. E, quando não é pelo campo de investimento, muitas vezes circunda a ideia da simples acessibilidade a crédito. Essa questão deveria existir como pauta verdadeira dentro das empresas, com interesse real, algo concomitante ao lucro como motivo da sua existência.

Como fazer isso?

Dentro das empresas, a inclusão financeira deve ter dois públicos distintos, o externo, que é a sociedade como um todo, mas também o interno, composto pelos funcionários. Majoritariamente se perde colaboradores, que performam mal em suas atividades porque têm problemas financeiros.

É impossível trabalhar tranquilamente quando, a toda hora, o telefone toca porque a prestação da casa está atrasada, porque, de repente, o carro foi apreendido para ser leiloado ou há ameaça de despejo ou conflitos extrajudiciais.

Nesse sentido, oferecer cursos e realizar ações de letramento em educação financeira são boas iniciativas que, muitas vezes, evitam gastos desnecessários e turn over – é comum que funcionários com a corda no pescoço peçam ou forcem demissão para pegar seguro desemprego ou FGTS e quitar dívidas.

Porém, não podemos esquecer que o problema não é resultante simplesmente da má educação financeira. A má educação financeira é um problema que deriva de outro, que é a má remuneração. Então, antes de as empresas discutirem educação financeira, elas deveriam discutir primeiro por que mulheres e homens não têm os mesmos salários nos mesmos cargos, por que pessoas negras ganham diferente de pessoas brancas e por que é difícil ter um política remuneratória compensatória e digna ali dentro.

Educação financeira é necessária? Sim, mas primeiro a empresa tem que rever política de contratação, ter mais diversidade se fazer perguntas como: ‘Por que estou contratando alguém que mora no extremo da cidade e não ofereço trabalho híbrido, forçando-o a ter duas, três horas de viagem por dia.’ Meu medo é justamente quando as empresas começam a maquiar e florear demais sem discutir a raiz do problema, que é a desigualdade social. O principal ponto do S do ESG é as empresas começarem a discutir como é que se resolve as iniquidades sociais – o restante é tergiversar.

Vamos esquecer a falácia que dizia que era preciso fazer o bolo crescer para depois dividi-lo. O bolo cresceu, não foi dividido, e gerou mais concentração de renda. Então, temos que fazer o bolo crescer e, ao mesmo tempo, fazer sua divisão de forma mais equânime. Assim, a própria educação financeira, não a de mercado, deve ser entregue à população de forma concomitante com que estou refazendo as políticas de remuneração da minha empresa.

A discussão sobre inclusão financeira dentro das empresas já é levada a sério?

São casos muito raros e majoritariamente não vêm de grandes empresas, mas de empresas onde a teoria de impacto já é preponderante, onde o lucro não é o principal motivo da sua existência. Porque, em última instância, as empresas seriam beneficiadas pela inclusão financeira, mas não manteriam as mesmas margens.

Vou dar alguns exemplos que funcionam de verdade: o Instituto Casa Chama, que auxilia a comunidade LGBTQIA+, lançou um fundo endowment focado em captar para a causa de pessoas trans e para auxiliar essa comunidade; e o Grupo Gaia fomenta um CRA [Certificados de Recebíveis do Agronegócio] para o MST. É isso que eu chamo de inclusão financeira.

Para a inclusão financeira ter impacto, a teoria de mudança da empresa precisa ser de impacto. Ela não pode ser uma empresa com DNA de simplesmente buscar o lucro e usar a pauta apenas para manter o lucro. Isso é ESG washing, diversity washing e todos os washings que quisermos utilizar. Um caso clássico é o das Lojas Americanas, que lesou o pequeno investidor e os fornecedores. Não somente porque vai dar o calote e deixar de pagar agora, mas porque há algum tempo vem espremendo essas pessoas com promessas de pagamento em 30, 60, 90 dias.

Oferta de crédito não ajuda?

Não vejo empresas fazendo isso como forma de trazer recursos para a população. O que verifico é que todo mundo concorre com todo mundo. Você tem empresas de fora do sistema financeiro tradicional que também começam a oferecer crédito para pegar um negócio que era do banco. Elas querem aumentar sua fatia de mercado dentro da classe C, das comunidades mais periféricas, de grupos minoritários e minorizados e aproveitar melhor o cliente de seu ecossistema. Eu sou muito crítico a isso porque a empresa veste essa roupa de que está incentivando o crédito e a inserção financeira, mas oferece crédito por praticamente as mesmas regras e custos do banco e acabam aumentando o endividamento.

Eu acho que a inclusão financeira tem que vir acompanhada de uma política de geração de autonomia para essas comunidades minoritárias. É gerar oportunidade de crédito, mas crédito com acessibilidade, que possa ser pago de verdade.

Como você vê a criação cada vez mais frequente de hubs de tecnologia, inovação e incentivo a startups dentro das empresas?

Com bons olhos porque, apesar de a empresa não realizar a inclusão diretamente, acaba contribuindo para que outros membros do ecossistema que pensam em ações consigam executar seus planos. Isso é muito mais importante para a inclusão financeira do que os créditos que escravizam.

A maioria dos fundadores de ONGs e de negócios de impactos não têm muito contato com o ecossistema de inovação e gestão. Muitas vezes, têm apenas uma boa ideia na cabeça. Esses hubs e projetos de open innovation, com os quais trabalhamos bastante no movimento Black Money, entrega aos empreendedores conteúdo de inovação e ferramentas de ponta que eles não têm em outro local e cultura de inovação, além de networking. Outra ferramenta importante que oferecem é um prêmio em dinheiro ao final do processo ou a contratação para o desenvolvimento de uma solução. Nesses casos, as empresas dão oxigênio a esses indivíduos.

Um exemplo bom nesse sentido é a startup Trampay, um ecosistema de benefícios aos entregadores de delivery, que faz adiantamento de recebíveis a taxas muito mais baixas do que as do mercado. Isso permite que os trabalhadores coloquem gasolina para continuar entregando ou comprem a própria comida, já que só costumam receber de 15 em 15 dias e não têm crédito no banco. A Trampay passou por uma série de iniciativas de open innovation.

Uma grande empresa em não precisa ser o agente direto da inclusão financeira. Ela pode fazer isso por meio de investimento em open innovation e em startups.

Qual o papel dos líderes na inclusão financeira?

A maioria das empresas que passou a fazer processos de contratação afirmativa, por exemplo, o fez porque o gestor tomou a frente da situação. Um exemplo é a Bayer, quando Theo van der Loo era presidente. Ele foi um dos primeiros CEOs a concretizar esse tipo de ação. Eu diria que a mudança, invariavelmente, tem que partir de cima para baixo. A liderança se compromete, faz com que toda a média gerência também se comprometa e cobra. O conselho da empresa deve estar comprometido não só a curto prazo, mas como estratégia do negócio. E isso tem a ver com a pressão social. É melhor mudar antes do que ser lembrado lá na frente pela sociedade como alguém que destruiu um ecossistema ou uma sociedade, como é o caso da Vale em Brumadinho ou agora das Lojas Americanas, que deixa um rastro de destruição financeira em vários fornecedores. Sem sombra de dúvida é de cima para baixo.

Qual é a lição de casa das empresas para contribuir com uma inclusão financeira real?

A primeira de todas é equidade salarial: rever sua politica remuneratória e se responsabilizar por pagar todos os grupos de forma equânime.

Será que é realmente justo o CEO ganhar 50 vezes mais do que a média da empresa? Esse é um ponto a ser questionado.

É preciso olhar também para toda a supply chain, que também é público da empresa. É comum acabar arrochando o fornecedor e pagar muito pouco pelos serviços prestadores ou ainda sufocá-lo com um prazo de pagamento muito dilatado, que o leva a se endividar com o banco para sobreviver. Outro ponto importante é que o letramento financeiro – e não de mercado – venha acompanhado de algum pacote de benefícios no campo educacional. Por fim, dependendo do tamanho da empresa e do quanto o RH consegue funcionar, interceder ou oferecer linhas de crédito com taxas mais baixas com instituições parceiras quando o funcionário precisa pegar dinheiro emprestado. No caso da inclusão financeira, isso representaria realmente o S do ESG, sem qualquer “washing”.

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