Se você passar os olhos rapidamente no seu guarda-roupa vai confirmar os dados a seguir: estima-se que usamos cada peça que está ali dentro no máximo 7 vezes por ano – e que, portanto, 80 bilhões de novas peças de roupas sejam produzidas anualmente.
Só essa montanha de roupas já seria motivo suficiente para que a indústria têxtil se empenhasse no desenvolvimento sustentável – algo que o Grupo Malwee vem trabalhando com vontade há alguns anos. Depois do golaço marcado em 2021, com o jeans feito com apenas um copo d’água, a empresa lançou no ano passado o “fio do futuro”, projeto feito a partir de peças de pós-uso, que iriam parar em lixões e aterros sanitários.
Criada nos anos 1950, em Jaraguá do Sul (SC), a empresa é pioneira em diversas iniciativas sustentáveis. O grupo foi o primeiro do setor a lançar um Plano Estratégico ESG em 2015 (na época, o termo usado ainda era apenas sustentabilidade) e desde então vem apostando pesado em inovação para tentar reverter o quadro que aponta a indústria têxtil como a segunda mais poluente do mundo, atrás apenas do setor petrolífero, sendo responsável por cerca de 10% da emissão global de CO2.
“Não adianta ser sustentável sozinho”, lembra Guilherme Weege, CEO do Grupo Malwee há 15 anos, uma gestão marcada pelo investimento na sustentabilidade. “A saída é inovação. A gente precisa produzir de maneira diferente e se comunicar melhor com o consumidor. Se o consumidor não questionar, a indústria não tem motivos para mudar”.
Na entrevista a seguir, Weege dá uma verdadeira aula de liderança pautada em valores ESG e traz uma certeza: estes valores já estão tão dentro da alma da Malwee que são capazes de prosseguir sozinhos.
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O Grupo Malwee foi pioneiro em algumas ações ligadas à sustentabilidade na indústria têxtil, que é uma das mais poluentes do mundo. Como você vê os esforços desse setor na pauta ESG?
O setor de moda em si é muito bom de contar história. Tem muita iniciativa que gera pouco resultado e muitas empresas começam a sua jornada ESG pelo departamento de marketing. Mas o ponto positivo é que o assunto virou pauta. Enxergo boas ideias, boas iniciativas, o mercado está trabalhando junto nesse tema, uns tateando, outros com mais empenho, e outros menos.
Como tirar mais resultados dessas iniciativas no setor têxtil?
Essas iniciativas dão alguma voz, mas trazem poucos retornos em prol da sustentabilidade de fato. Por exemplo, uma empresa lança uma camiseta sustentável. A iniciativa é bacana, mas muitas vezes a camiseta é 0,1% do mix daquela companhia. Então, por um lado tem um tom mais marqueteiro, para dizer que a companhia está na agenda, mas na prática ainda é algo pequeno. Nossa estratégia sempre foi muito focada em “o que eu consigo fazer em alto volume?”. Por exemplo, quando veio o uso das garrafas PET. Quando uma empresa lança uma camiseta PET, 50% algodão e 50% de fibra poliéster reciclada (vinda do material do PET), a camiseta acaba ficando ruim e as pessoas não querem usar. O que a gente faz é uma camiseta com 10% PET e 90% de algodão, onde eu quase não sinto a diferença entre um produto e outro. Assim, o produto fica melhor, vende mais, e eu consigo fazer mais modelos. Em 10 anos, já transformamos mais de 85 milhões de garrafas plásticas em moda sustentável.
A indústria da moda é considerada o segundo setor que mais polui no mundo. Como começar a reverter este cenário?
A saída é inovação. A gente precisa produzir de uma maneira diferente. Requer um investimento inicial e muito trabalho em inovação, esse é um ponto. O outro é o consumidor. A gente tem que se comunicar melhor com o consumidor, porque é muito difícil fazer aquele consumidor que compra uma peça de vestuário para melhorar a autoestima, dar um presente, imaginar o que tem por trás dessa indústria.
Temos que estimular o questionamento sobre as nossas marcas de preferência. Se o consumidor não questionar, a indústria não tem motivos para mudar.
Em que pontos você vê o Grupo Malwee pioneiro na pauta ESG?
Fomos a primeira empresa a lançar um Plano Estratégico de ESG em 2015, construído com a participação de umas 150 pessoas, desde o consumidor, clientes, investidores, fornecedores. Era um plano 2015-2020. A meta era reduzir 20% as emissões e conseguimos reduzir 75%. Quando idealizamos esse plano, tínhamos um desenho do que era possível fazer para melhorar os nossos índices, mas engajando a cadeia como um todo conseguimos resultados melhores. Quando começamos o plano, tínhamos 10% dos nossos modelos feitos com matéria-prima de menor impacto ambiental. Hoje são 92%. Fomos carbono livre lá em 2007, quando nem se falava do tema.
Hoje muitas empresas falam que são carbono zero, mas não adianta ter uma cadeia que polui e no final do ano pagar R$500 mil de compensação para zerar as emissões. Se todo mundo pagar para zerar as emissões, continuam poluindo do mesmo jeito.
Você falou do diálogo com o consumidor. Qual o melhor caminho para fazer o consumidor refletir mais sobre seus hábitos e sobre o que consome?
Esse é o grande desafio, o ponto mais difícil de responder o que podemos fazer. Temos que colocar mais luz sobre o assunto, comunicar como a indústria funciona, seus impactos, e a imprensa tem um papel crucial nisso quando mostra aquelas imagens do deserto do Atacama, no Chile, por exemplo, com um aterro cheio de roupas. Isso causa impacto, reflexão. Hoje a média de uso de uma roupa é de 7 vezes no ano. Algumas são usadas e descartadas, outras usadas e doadas.
O que mais vai economizar recursos é a não fabricação de uma roupa nova que vai ficar parada no guarda-roupa. O ponto é mostrar que existem alternativas. Há 15 anos, se eu falasse isso para o consumidor eu não teria alternativas para dar. Hoje, eu falo do jeans feito com um copo d’água.
Muitos concorrentes falam sobre o tema, mas não tem um mix de produtos para oferecer. Então começa-se pela conscientização. A base é essa, informação e transparência.
O que você destaca do que foi feito na sua gestão?
Em 2021, lançamos o jeans feito com um copo d’água. Foram dois anos, talvez mais, de pesquisa global sobre como a gente conseguiria fazer um jeans que usa 98% a menos de água. Na lavanderia de uma calça jeans usa-se 100 litros de água em média, e a gente faz com um copo de água. Temos uma fábrica para fazer esse jeans, na época a primeira fábrica do mundo, ainda a única no Brasil. A fábrica não tem nenhuma ligação com o rio. Hoje, no nosso portfólio normal, utilizamos 25% menos água do que qualquer outro vestuário do país nas peças. Estamos tentando ampliar esse número. Em 2022 lançamos o fio do futuro, projeto feito a partir de peças de pós-uso. Hoje temos em média um caminhão de lixo por segundo, no mundo, despejando produtos de vestuário nos aterros. Usamos umas 30 mil peças de pós-uso nesse projeto, garantindo a circularidade desses produtos. E ano passado, no Egito, apresentamos na COP 27 o Desafio Lab, uma plataforma que reúne iniciativas, seja do mercado ou nossas, em busca de fomentar projetos de menor impacto ao meio ambiente. Tudo é muito feito buscando inovação. Não é ir em uma feira, ver um maquinário novo e comprar. Isso seria o mais simples. A gente pensa em como pode criar algo e gerar um tipo de resultado.
Recentemente foi descoberto um caso de trabalho análogo à escravidão em vinícolas no Rio Grande do Sul. Que lições casos assim deixam para as empresas?
O trabalho da nossa indústria aqui é bastante complicado. Você tem regiões melhores e regiões piores nesse sentido. Se eu tenho uma terceirização de costura que tem 40 costureiras, muitas vezes o que essas empresas fazem é passar os serviços dessas marcas para 150 costureiras, ou seja, quarteirizam essa produção. Isso a gente não permite, na prática nenhuma empresa permite, mas nem todas auditam. Por exemplo, como ele está pegando 50 mil peças por mês se ele tem capacidade para produzir 5 mil? A gente tem uma linha de terceirização de costura e auditamos essas empresas duas vezes por semana.
Nessa questão do trabalho digno, acho que o principal problema é a quarteirização, quando estou auditando o meu terceirizado, mas as peças que eu mandei para ele estão em outro lugar. A resposta rápida é auditoria, que é essencial, e não uma vez por mês.
Houve também o rombo fiscal nas Americanas, que colocou em xeque as ações de governança das empresas. O que ainda é necessário fazer para que empresas estejam alinhadas de fato à agenda ESG?
Isso envolve política e outras questões. Mas, por exemplo, quando a gente importa produtos que envolvem trabalho menos digno, trabalho escravo, ou infantil, isso vem sem imposto. Então seria necessária uma discussão tributária sobre o que é fair ou não, sobre empresas que são de fato ESG e sobre como beneficiar quem tem isso na agenda e penalizar quem não tem. Eu sempre prefiro o lado do incentivo. A Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) tem um papel fundamental nisso. Tem muitos projetos nos quais usamos a Finep para ações de inovação, mas é um processo muito moroso, principalmente para quem está começando.
Outro ponto hoje é como se atesta uma empresa ESG? Temos uma quantidade grande de selos e fundos de investimento focados em ESG que tem empresas de petróleo entre investidores. Muitos desses fundos tiveram retornos bem piores do que a média e começaram a abrir o leque.
Hoje, algo que me interessa são os fundos ativistas. Eles não vão investir na Malwee, e sim no concorrente para obrigá-lo a fazer algo diferente e assim provocam mais impacto no setor.
Como você trabalha esse tema com novas gerações de empreendedores? É uma preocupação sua passar essa agenda para novas lideranças?
Com meu papel global na ONU, tenho não só essa preocupação, mas essa responsabilidade. Tenho que fazer um papel que para uns é chato, pois em uma empresa que atua direto com o consumidor é mais fácil, porque já estão sofrendo esse impacto, questionamento do consumidor. Com empresas B2B é diferente.
Pense em uma empresa que vende fios. O que falar de ESG? A empresa vende fios para alguém que está produzindo a malha para outra marca, que vai mandar tingir em outro lugar, produzir em outro lugar. Como você vai garantir rastreabilidade? Como você vai impactar esse cara? Quanto mais para trás na cadeia, mais difícil é impactar e influenciar.
Mas estou direto brigando com associações e uma porção de gente para dar voz ao tema. Antes era mais difícil. De novo, a mudança está no consumidor. Eu não vou precisar fazer nada se o consumidor não estiver cobrando.
São 15 anos como CEO do Grupo Malwee. Qual a sensação quando olha para trás e vê a sua trajetória?
Hoje eu me sinto realizado. Eu consigo olhar para trás e ver que deu para deixar uma marca. O número de pessoas que a gente já conseguiu influenciar, seja de concorrentes, para trás da cadeia, já é algo que dá para me orgulhar. Os próprios números das inovações que trouxemos e que tem várias pessoas usando.
Eu tenho uma empresa hoje que, se eu não estiver aqui amanhã, este tema vai continuar prioritário independentemente de mim.
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